23.12.07

Precisamos do vazio para respirar

Aqui há uns anos, uma das personagens do filme "Contacto" (baseado na obra homónima de Carl Sagan), perguntava - e cito de cor - para quê tanto espaço se não há mais vida inteligente para além da que existe no planeta terra?

A pergunta, que surge sob a forma de argumento (visando provar a necessidade de admitir, como hipótese racionalmente legítima, a existência de vida extraterrestre), releva, na verdade, de um típico "horror do vazio" que caracteriza, nomeadamente, a civilização ocidental. O homem ocidental é, basicamente, alguém que não sabe o que fazer, ou como fazer, com o vazio.

O espaço é, deste modo, concebido como algo que tem de ser conquistado, preenchido, colonizado. De preferência, com seres criados à nossa imagem e semelhança, mesmo quando diferentes. Desse ponto de vista, causa impressão e vertigem que haja tanto espaço vazio.

É neste contexto que fazem sentido (um sentido novo, como só os poetas são capazes) as palavras que tive a felicidade de escutar recentemente de um grande pensador e "amigo dos poetas", Eduardo Lourenço, num dos encontros subordinados ao tema "Café com Letras", que decorre uma vez por mês, salvo erro, na Biblioteca Municipal de Loures, e onde onde já estiveram igualmente outros grandes escritores, tais como Saramago ou Lobo Antunes, para referir apenas dois.

A certa altura, Eduardo Lourenço pediu aos assistentes que imaginassem o que aconteceria se de repente soubéssemos que o espaço acima da nossa cabeça tinha, por exemplo, um limite de 100, 1000, ou até mesmo 10000 Km, ou seja, que estávamos, literalmente, confinados a uma redoma.

A esta pergunta, respondeu o autor: teríamos dificuldade em respirar. Precisamos de todo o espaço do mundo, do cosmos, do infinito, para respirar bem.

Mesmo se poética, esta resposta não deixa de ser um belo contraponto à visão "americana" (e redutora) do espaço, vinda de alguém que já tem idade suficiente para brincar com a sua própria vida: "pertenço à geração, disse ele, dos que nunca mais acabam de morrer". Naturalmente, esta pequena ironia provocou uma gargalhada geral.

Que belo presente de Natal!

12.12.07

A importância da caixa

Num filme de 1994, "A Caixa", o conhecido cineasta Manoel de Oliveira mostra como uma simples caixa de esmolas pode ser o núcleo central e desencadeador de toda uma série de situações e acontecimentos.

Não me proponho recordar este filme. Simplesmente, ao ouvir, hoje, numa reunião de encerrramento das actividades lectivas, para a celebração do Natal, o educador do meu filho (alguém com ideias apararentemente lúcidas e bem arrumadas), dizer algo sobre as caixas de brinquedos, veio-me à memória este filme de Oliveira.

Dizia ele que os pais deveriam preocupar-se com o tipo de brinquedos que davam aos seus filhos, nesta época de Natal, uma vez que, mal aberta a "caixa", rapidamente o entusiasmo inicial pelo brinquedo desaparecia. O seu pensamento procurava vincar a ideia de que não vale a pena oferecer brinquedos muito caros ou sofisticados se todos eles estão condenados a ter uma vida efémera nas mãos das crianças. Mais vale, por isso, usar a imaginação e oferecer brinquedos porventura mais simples, mas com um efeito mais duradouro e imaginativo.

Tem razão, a meu ver, no essencial do que disse. Só faltou acrescentar o seguinte: em última análise, todos os brinquedos, do mais simples ao mais complexo, são indiferentes, porque aquilo que conta mais, para uma criança, não é tanto o brinquedo em si, mas antes o gesto e o momento de...abrir a caixa: aquele lapso de tempo, que pode ser mais ou menos demorado - pois não tem a ver com o tempo dos relógios -, em que tudo é ainda possível. Quando se abre a caixa, em vez da "coisa" esperada, o que se obtém é sempre pouco, apenas mais um "objecto" entre objectos. O efeito da "surpresa", como perceberam algumas marcas consagradas, resulta desse "tempo lógico" da abertura da caixa ou de um envólucro semelhante. Veja-se o caso, por exemplo, dos famosos "kinder surpresa": mais importante do que aquilo que acaba por ser aí colocado (sempre uma coisa de nada), é o facto de "isso" estar envolto em..mistério.

É por isso que a avó do anúncio (como se fosse outra vez criança) tem mais razão que o neto que lhe oferece um presente quando diz: "Uma caixa com um laço; obrigado, netinho". Claro que o neto também tem razão quando acrescenta: "Ó avó, tem de abrir a caixa!" Mesmo querendo dizer outra coisa, ambos dizem o essencial: fechada ou aberta, o importante é a caixa.

11.12.07

O riso de Saramago

Segundo uma afirmação recorrente do próprio, o conhecido Nobel da literatura , José Saramago, "não tem um riso fácil", sem que isso signifique, de modo algum, que não se emocione.

Foi a este propósito que eu o ouvi mais uma vez, um dias destes, num programa de rádio, repetir algo sobre a actual educação das crianças: toda ela parece apostada em fazer desaparecer a tristeza quanto antes. Ao primeiro sinal de tristeza, é preciso fazer algo: calar sem escutar o que ela tem a dizer, sem dar tempo.

Na verdade, é também de uma relação com o tempo que aqui se trata : não há tempo para escutar, por isso se (re)produzem e tomam em abundância, para gáudio das empresas farmacêuticas, pequenas pílulas mágicas, cada vez mais disseminados tanto por adultos como por jovens e, até, por crianças.

Um dos paradoxos é que, em vez de apaziguar a tristeza, uma tal postura parece estar a transformar-se, pelo contrário, numa bola de neve que vai arrastando tudo o que encontra pelo caminho.

É verdade que já os antigos diziam que a tristeza (a acédia) é um pecado; mas não seria de equacionar igualmente que o "riso fácil" (que se tenta promover a todo o custo) é, hoje, um pecado ainda maior?

Com efeito, na era do simulacro generalizado em que vivemos, a tristeza é, para alguns, uma das poucas formas de aceder, de tocar no "real". Consigam eles tirar partido disso.

9.12.07

Cilício e disciplina

Na edição de 6 a 12 de Dezembro de 2007, a revista Sábado dedicou um artigo à conhecida organização da igreja católica "Opus Dei" (pp. 52-64). A ocasião não deixa de ser propícia, devido ao avolumar de escândalos que têm envolvido, nos últimos tempos, pessoas directa ou indirectamente ligadas a esta organização.

À primeira vista, o que move estas pessoas é uma renúncia ao gozo (traduzida numa disciplina da mortificação do corpo e do prazer) em prol do trabalho (ou, nos termos do seu fundador, Josemaría Escrivá de Balaguer, da "santificação pelo trabalho"). Não é de estranhar que uma tal organização conviva tão bem com o capitalismo: no fundo, trata-se aqui da relação do sujeito capitalista com o gozo.

Com efeito, a disciplina da renúncia ao gozo em prol do trabalho, não vai sem um "lucro", uma -mais-valia, um suplemento de gozo. Prova disso, é, por exemplo, o uso instrumental - enquanto "objecto"- da "disciplina": um chicote de cordas que deve atingir as nádegas - porquê as nádegas? - enquanto o numerário, isto é, o membro interno da organização, reza uma oração à escolha, despido, uma vez por semana.

Um dos paradoxos da "renúncia ao gozo", como assinalava algures o velho Freud, é que ela é voraz e exige sempre mais, o que leva alguns, por exemplo, a acrescentar sempre novas formas de mortificação à sua "dieta".

O que acontece, não obstante, é esse "plus-de-jouir" (como diria Lacan) já não parece suficiente para apaziguar alguns ânimos...

26.11.07

Dos feios não rezava a história...

Sempre houve, na história do ocidente, um sem número de reflexões sobre o belo, em particular como mola para elevar a alma à contemplação do bem. Pelo contrário, sobre o feio escasseou a reflexão, como se este fosse algo a evitar, rejeitar, excluir. O parente pobre. Ou, como diz Umberto Eco na sua História do Feio (Difel, 2007), a abundância da reflexão sobre o belo contrastou com a penúria das formulações sobre o feio.

Hoje em dia, assiste-se a um fenómeno paradoxal: ao mesmo tempo que o feio subiu definitivamente ao palco das preocupações dos artistas, como o retorno de um recalcado (já ninguém se preocupa em fazer arte bonita, a não ser os cabotinos), assiste-se a uma mediatização cada maior da beleza. O que se celebra, de um lado, exorciza-se do outro.

No fundo, o belo e o feio não passam de caretas (imaginárias) do real: em si mesmo, nem belo, nem feio. Mais do que o verso e o anverso da moeda, são os dois "lados aparentes" de uma superfície que tem, na realidade, um só lado.

Assim, tal como a modernidade soube encontrar beleza até nas coisas feias, há que descobrir fealdade nas coisas (aparentemente) belas. É um trabalho de civilização.

17.11.07

Sicko-logica-mente

Num certo sentido, grande parte do cinema que se faz actualmente deixou de intervir na realidade, rodopiando cada vez mais sobre si próprio, a sua história e os seus maneirismos formais. No entanto, há um conjunto de realizadores que teima em "rimar contra a maré" (retomo aqui a expressão feliz de Miguel Mota).

É o caso, por exemplo, do polémico "documentarista" americano Michael Moore. Decididamente interventivo (é disso prova não apenas o filme-documentário agora em exibição, Sicko, como igualmente o canal que o mesmo criou no Youtube, em que o público é convidado a partilhar as suas histórias sobre os "maus encontros" com o sistema de saúde americano), os seus "documentários" são um verdadeiro acto político, no sentido genuíno do termo. Na verdade, ele "interpreta" de tal modo o cinema e o documentário, que não sabemos verdadeiramente se estamos perante documentários elevados à DIGNIDADE do cinema ou este elevado à DIGNIDADE do documentário.

Tendo como pano de fundo o sistema de saúde americano, em particular as más experiências de uma série infindável de concidadãos com as poderosas e lucrativas seguradoras, ele tenta mostrar, à sua maneira, que não há clínica justa do sujeito sem uma ajustada clínica da civilização. Neste caso, da "civilização" americana. E, já agora, porque a "aldeia global" tende a "americanizar-se" a todo o gás, à "civilização" tout court.

No país do "sonho americano", o que este filme-documentário mostra é o seu reverso: um pesadelo. Nessa medida, ele dá que pensar. Já seria motivo suficiente, mesmo que não houvesse outros, para ir dar uma olhadela, não fosse a grande "paixão da ignorância" que vai por aí.

Um aparte:Quando assisti a este documentário fabuloso , havia apenas sete pessoa na sala. Repito: sete. Era Sexta-feira à noite. O cinema tinha nome: chamava-se Nimas. Já tive oportunidade de assistir, neste mesmo cinema, a verdadeiras obras primas. Por este andar - ou por esta inércia - ainda vamos acabar todos a gramar, sexta-à-noite, os "Morangos com Acúçar". Valha-nos Deus!)

15.11.07

Dia internacional...

Em dois mil e dois a Unesco decidiu dedicar um dia internacional à Filosofia. Em Portugal, este dia celebra-se hoje, 15 de Novembro.

Não consigo deixar de pensar que a existência de um Dia Internacional da Filosofia (tal como o dia da água ou da árvore) significa o reconhecimento "oficial", de uma forma mais ou menos envergonhada, de que aquela perdeu importância ou está em risco.

Não existem dias internacionais (ou nacionais) para aquilo que conserva pujança vital. Os gregos, por exemplo, tinham mais que fazer do que celebrar o dia internacional da filosofia: ocupavam-se, por exemplo, a filosofar.

12.11.07

Pulsão de morte

Perante um massacre como o ocorrido há poucos dias numa escola da Finlândia, um país considerado exemplar em matéria de ensino e educação por muito boa gente, a reacção imediata, após o choque inicial, é perguntar-se porquê. Perguntar-se porquê é buscar compreender, procurar razões que justifiquem o acto cometido pelo jovem de dezoito anos que, num gesto tresloucado, matou uma série de colegas, entre outros agentes educativos. O problema é que, neste caso, o aluno em questão parecia bem integrado, normal, com uma inteligência acima da média, com uma família...

Haverá, sem dúvida, outras razões, pois, a acreditar nos velhos pensadores, nada é sem razão. É certo que poderá haver razões de natureza familiar, social, escolar, etc., mas o que faz estremecer, desde logo, é que por mais razões que haja ou possa haver para explicar este acto, elas serão sempre insuficientes, ainda que necessárias, para dar conta do que há nele de profundamente desmedido, excessivo, desproporcionado.

Nem todo o real deste acto é racional. Ou então, é a própria racionalidade da razão (parece que todo este acto foi meticulosamente preparado, calculado e divulgado) que se revela aqui irracional. Uma razão fria, como diria Damásio; sem com-paixão ou receio das consequências (como diria, curiosamente, o próprio Kant).

Como pode combater-se alguém que está disposto não só a matar como a morrer? Vale a pena reler "O Mal-Estar na Civilização", de Freud, para ver por que era ele tão pessimista sobre a natureza humana... Na verdade, por mais "inumano" que ele nos pareça, este acto é filho do humano.

4.11.07

O corpo e o objecto

Desde há vários anos, a Antena do Campo Freudiano, através do seu Centro de Estudos de Psicanálise, tem prosseguido uma investigação em torno de alguns dos conceitos fundamentais que Freud e Lacan puseram em circulação. A base das operações é um Seminário animado por José Martinho e que este ano se realiza na Biblioteca Victor de Sá, Universidade Lusófona, sala 2.3, e é subordinado ao tema: "O Corpo e o Objecto na Clínica Psicanalítica". Procura-se, desta forma, uma consonância com o trabalho proposto e realizado ao nível quer da Associação Mundial de Psicanálise, quer da New Lacanian School/Nouvelle École Lacanienne.

No "Mercador De Veneza", de Shakespeare, é celebrado um estranho contrato entre Shylock, um judeu, e António, um importante mercador de Veneza. Para ajudar o seu amigo, Bassânio, a conquistar o coração da bela e rica Pórcia, ele pede emprestado a Shylock três mil ducados. Este acaba por aceder ao pedido sob a estrita condição de que António lhe pague a dívida no prazo de três meses; caso contrário, terá direito a cortar "uma libra de carne" junto ao coração daquele. Eis um estranho objecto que se destaca do corpo e, já agora, das leis do mercado: para que é que isso serve a Shylock, o judeu?

Quando Marcel Duchamp descobriu que um objecto qualquer da indústria humana (quer seja um pá, uma roda de bicicleta ou um simples urinol) pode ser elevado à dignidade de Objecto artístico, mostrou, por exemplo, que mesmo quando uma coisa já não serve para nada (daquilo para que foi criada), ela continua, apesar de tudo, a ter uma função. Qual é a função, cultural e artística, destes estranhos objectos cada vez mais disseminados?

Para um fetichista, por exemplo (veja-se o caso referido por Freud num texto dedicado ao tema), a presença ou ausência de um simples "brilho sobre o nariz" pode ser razão necessária e suficiente para atear ou extinguir todo e qualquer desejo sexual.

Num outro domínio, ao nível dos novos sintomas que não cessam de aumentar, o "nada" que a anoréctica se obstina em (não) comer, revela que o objecto e o modo de satisfação que aí estão em causa não dizem respeito à necessidade natural, mas a outra coisa, quer esta se reporte ao amor (na sua exigência incondicional), ao desejo (que é sempre desejo de outra coisa) ou ao gozo (enquanto este põe em causa o princípio de prazer).

Também o esquizofrénico, por exemplo, que ouve realmente vozes (que mais ninguém ouve), mostra, à sua maneira, que o objecto de que se trata não é o objecto natural, da percepção..., mas aquilo a que Lacan vai chamar objecto a.

São apenas alguns exemplos deste estranho objecto que Freud - e após ele Lacan - deram um relevo especial. É em torno dele que irão prosseguir as investigações do seminário ao longo deste ano.

1.11.07

O cão vadio (parte II)


Não gosto de repetir os mesmo temas, ainda que, como diria Deleuze, haja, em toda a repetição genuína, uma diferença. Volto, por isso, ao tema do "cão vadio" que morreu de fome e sede numa exposição de Guillermo Vargas.

A pergunta que eu gostaria de colocar é a seguinte: por que causou este acontecimento tanto escândalo, gerou tanta polémica e levou a tamanha reacção? É verdade que é um acto (e gostava de realçar esta dimensão do acto) aparentemente bárbaro, de um "cinismo" ou provocação a rondar o mau gosto. Além disso, a minha primeira reacção foi igual à de toda a gente. Mas é necessário, por vezes, um segundo tempo para colocar o primeiro no devido lugar.

Na verdade, todos os dias morrem no mundo, nas ruas, à vista desarmada inúmeros cães vadios (bastaria, como diz o meu amigo Fernando Borges de Moraes, "recortar" isso com a sensibilidade do olhar). De igual modo, todos os dias morrem no mundo inúmeras pessoas como cães vadios. Acontece que isto já faz parte da realidade a que estamos habituados. E o hábito é uma espécie de carapaça que encobre o "real" que habita a "realidade".

Quando, de repente, alguém se lembra de expor, num lugar determinado, levando até às últimas e trágicas consequências, por meio de um acto discutível (mas qual é o verdadeiro acto que não é discutível?) algo que, na verdade, já está "exposto"...toda a gente se escandaliza.

E não é motivo para menos, visto que a artista descobre, isto é, põe a nu, o que gostaríamos de continuar a encobrir.

Eis onde a petição que circula pela Internet tem uma função sedativa, tranquilizante: ao assinar, podemos ir à nossa vida, de todos os dias, e continuar a dormir descansados. É como aquelas pessoas que, em certas organizações, se "mortificam" com um cilício durante algum tempo, limitado, para não andarem constantemente mortificadas. Ou como aquelas que preferem ter medo (disto ou daquilo) para não andarem permanentemente angustiadas. Ou, enfim, como aquelas que preferem esfolar o joelho (em Fátima, por exemplo) a ter de esfolar a alma...

Afinal de contas, dá jeito e não é mal pensado!

27.10.07

O cão vadio

Outrora, uma coisa era a arte, outra coisa, a vida; mesmo se a arte se propunha "imitar" a vida.

Hoje, e desde há algum tempo, a arte confunde-se cada vez mais com a vida, de tal forma que esta, em certos casos, parece (querer) imitar a própria arte. Na medida em que "tudo vale", qualquer coisa, mesmo insignificante, pode ser olhada como objecto artístico. Desse modo, a própria "coisa", no seu real, torna-se invisível.

A não ser que um gesto desesperado, mas consequente, tire as devidas consequências de um tal estado de coisas, como foi caso recente de Gillermo Habacuc Vargas, um artista da Costa Rica que decidiu expor um cão vadio faminto numa galeria de arte. Tal como os ready-made de Marcel Duchamp, também este "cão" foi encontrado por aí, a vadiar, e elevado à dignidade da "coisa" artística por meio de um gesto que não deixou de causar escândalo.

O artista foi o escolhido para representar o seu país na "Bienal Centroamericana Honduras", correndo uma petição, on line, para que o prémio não lhe seja atribuído.

Na verdade, porém, o que fez ele? Limitou-se a "expor", a revelar, não só aquilo em que a arte se tornou (não um outro olhar sobre a vida, mas uma nova forma de cegueira) como aquilo em que nos tornamos todos nós: olhando para a vida como se ela fosse uma questão estética. É como se o poder das imagens, por mais devastadoras ou cruéis que se apresentem, nos paralisasse ou impedisse de agir. A prova é que ninguém rompeu o círculo mágico da arte para se aproximar do cão , dando-lhe comida ou água e impedindo-o de morrer. Nem sequer este poderá dizer (se um cão dissesse alguma coisa...depois de morto), como a personagem de Kafka, que morreu como um cão, pois os cães não costumam morrer em galerias de arte, a não ser que a moda pegue.

Não obstante, na "época sem vergonha" em que vivemos, este gesto "desavergonhado" não deixa de ter mérito, ao pôr a nu a coisa terrível em que arte se pode (nos pode) tornar. Desse modo, escandaloso, ele atravessou a barreira, o torpor do bem e do belo, fazendo-nos entrar num limiar de maldade essencial que nos abala, que abala tanta gente, porque é a nossa própria maldade que aí nos toca e perturba, como um cão vadio escanzelado.

24.10.07

A fórmula


Todos os dias sai um novo livro que promete finalmente revelar o segredo, a fórmula ou a receita do sucesso e da felicidade. A acreditar no marketing promocional, nunca foi tão fácil, como agora, ser feliz.

Porém, se todos os dias sai um novo livro é porque aquilo que prometia o velho não funcionou. Ou seja: cada novo livro que promete revelar a fórmula, é, paradoxalmente, a prova de que não há fórmula.

Por que se vendem tão bem?...



22.10.07

Como é da praxe!

Todos os anos é assim, pelo menos neste país à beira mar plantado: a entrada na universidade é acompanhada por estranhos rituais que alguém baptizou de praxe. A praxe escandaliza porque é, ou parece ser, o avesso da Universidade.

O que parece comandar o discurso universitário é um saber despojado de paixão. Contudo, é possível descortinar, sob as vestes de um tal despojamento, uma paixão que o inflama: o poder. Como já admitia Platão, saber é poder.

Deste ponto de vista, o discurso universitário é, fundamentalmente, um dispositivo de poder. Entrar na universidade é, ao mesmo tempo, acomodar-se a um tal discurso e submeter-se a um tal dispositivo.

Eis o que vem à tona, para escândalo de muitos, na altura em que a verdade fala pela bocas dos excessos que são cometidos por uns sobre os outros, os praxantes sobre os praxados, na época da praxe.

A praxe
arremeda o discurso do poder, levando até ao limite e virando do avesso o seu dispositivo. Ela é, por assim dizer, o seu avesso pulsional: a caricatura ritualizada de todas as formas de domínio de uns sobre os outros, dos mais velhos sobre os mais novos (caloiros) infligindo-lhes sevícias morais (e até físicas, cada vez mais físicas) e obrigando-os a comportamentos degradantes.

Apesar de tudo, no calor do excesso se revela que o objecto que por ali circula não é todo subsumido pelo dispositivo académico e deixa restos... difíceis de engolir...

20.10.07

um grão de real

Por vezes, é preciso afastarmo-nos um pouco do objecto para que ele possa brilhar (ou ofuscar-se) a uma outra luz. Escrevi há algum tempo, neste mesmo blog, algumas considerações sobre o filme de Carlos Saura, intitulado "Fados". Nessa altura, procurei sobretudo destacar um conjunto de singularidades ( e mesmo virtualidades) que, a meu ver, o caracterizavam.

Não retiro o que disse, mas gostaria de acrescentar algo a partir do que considero, hoje, a sua "limitação". Essa limitação não reside, por exemplo, na falta de beleza. É um filme bonito, de diversos pontos de vista. Uma bem sucedida coreografia.

Porém, da dança das imagens e do sons, bem como da pose dos músicos convidados, fica-nos a impressão de um "final" - como se diz da prova dos vinhos - em que falta, por assim dizer, um grão de real.

Um grão de real não torna o objecto mais belo, mas, pelo contrário, mais rugoso, áspero, irregular ou até mesmo dissonante. É aquilo que não se encontra jamais num postal ilustrado: o que está antes ou depois da beleza e, por isso, mais perto da vida.

13.10.07

Maturidade

A civilização inventou um disparate que se chama "maturidade". Ser maduro significa, essencialmente, não ter comportamentos de criança e guiar-se, única e exclusivamente, pela luz da razão. Acontece que é nos momentos em que esta luz se apaga e voltamos a ser crianças que é possível "tropeçar na felicidade".

Foi, porventura, com este raciocínio que "os idiotas"(idioterne) do filme de Lars Von Trier (1998) se dedicaram a redescobrir uma série de comportamentos próprios de crianças ou deficientes (babando-se, por exemplo, ou passando em público por verdadeiros deficientes mentais) a fim de alcançar uma naturalidade ou genuinidade que a civilização (burguesa) teria "recalcado".

De um certo ponto de vista, este filme é paradigmático de toda uma corrente de ideias que alimenta a "cultura" actual: é preciso, por todos os meios, travar o curso do tempo, do amadurecimento, e recuperar a infância (ou juventude) perdidas.

Porém, tal como mostra o filme de Lars Von Trier, este processo de "idiotização" ou infantilização tem um limite (real) e acaba por revelar, de um modo ou de outro, a sua artificialidade: a busca de pureza e naturalidade revela-se, no fim, como pura fantasia. Excepto para aqueles que a vivem a céu aberto, tal como é representado por Karen, uma das personagens.

9.10.07

Paradoxo


Num certo sentido, nunca estivemos tão dependentes das contrariedades do real como agora: desde as alterações climáticas às flutuações do petróleo ou das taxas de juro, que condicionam a nossa vida até ao mais ínfimo do quotidiano, tudo parece enovelar-se numa teia de circunstâncias que nos tornam a vida cada vez mais difícil.

Ao mesmo tempo, porém, nunca houve tanta literatura, apologia, discurso ... apelando à libertação interior. Estão neste caso, por exemplo, os livros que enchem cada vez mais as livrarias, reais ou virtuais, os cursos ou seminários, os filmes...sobre auto-ajuda (nome genérico e algo vago para uma série de coisas distintas, uma espécie de salada onde cabe quase tudo).

Será que estamos perante uma "revolução interior" (uma "nova era" de espiritualidade) ou tão só perante uma nova forma de consolação, compensação, alienação (profundamente narcísica) para a nossa cada vez maior dificuldade, impossibilidade de agir no real?

8.10.07

Ainda a (des)propósito do último filme de David. Lynch

O que este filme nos dá a ver parece inteiramente descabido, sem lógica ou sentido algum.

Se há, apesar de tudo, uma lógica do sentido, com diria Deleuze, ela é a da própria vida ( e não apenas do sonho ou do cinema).

Com efeito, pensamos que a vida caminha linearmente, em linha recta por assim dizer, em que os tempos sucedem uns aos outros, numa acumulação progressiva, e os espaços se harmonizam por contiguidade. Segundo esta lógica, vamos ganhando cada vez mais (experiência, maturidade, juízo...) e aproximando-nos cada vez mais (da verdade, do belo ou do bom).

Porém, tudo o que ganhamos de um lado, perdemos do outro. A vida anda às voltas, confundindo o tempo e o espaço no mesmo vórtice. Quando pensamos ter aprendido a lição, o dia do exame já passou.

Parafraseando Freud (O Humor), a vida é apenas "um bom tema para uma piada". Mesmo se houve quem não tivesse achado muita piada ao filme de Lynch... ou haja quem não ache grande piada ao próprio Freud.

5.10.07

Fados

"Fados", de Carlos Saura, a que hoje tive oportunidade assistir, é um filme que tem várias particularidades. Para começar, o título: é uma aposta na pluralidade impura dos "fados" em vez de na pureza do "fado", como pretenderiam alguns. Reside aqui a sua grandeza, mas também alguma da sua fragilidade, visto que não contempla, por exemplo, o fado de Coimbra.

Além do título, também o realizador é particular: um espanhol que decide dirigir um filme sobre algo genuinamente português. Isto não deixa de colocar algumas questões, por exemplo a de saber por que tem de ser um estrangeiro a permitir-nos ver, com o seu olhar, algo que é nosso, como se houvesse necessidade de um ponto de fuga exterior, situado no Outro, para que aquilo que somos venha à luz do dia ou, como é neste caso, à luz do cinema.

Terceira particularidade: aos olhos de Carlos Saura, os fados não são vozes descarnadas, mas espaços em que a voz, o som das guitarras (ou outros instrumentos) se casam harmoniosamente com a dança. Neste aspecto, ele recupera - diz quem sabe - uma das características originais do "fado".

Quarta particularidade: em vez de concentrar-se exclusivamente no "fado" tradicional cantado por portugueses e em português de Portugal, o filme de Carlos Saura aposta corajosa (e em meu entender conseguidamente) na lusofonia. É saboroso escutar os sons do fado em várias sonoridades, estilos (que vão desde a morna ao rap...) e mesmo sotaques. É impossível, hoje, não reparar como o fado contaminou outras formas musicais (no grande espaço da lusofonia) e foi igualmente contaminado por algumas delas. Carlos Saura percebeu-o bem.

Quinta particularidade: não há protagonistas neste filme (nem mesmo os fadistas mais requisitados, como Carlos do Carmo, Mariza ou Camané podem ser vistos como tal) nem história ou narrativa. Os únicos protagonistas são os "fados", isto é, a própria música; o resto são breves notas ou apontamentos.

Pode discutir-se o que falta (não só o fado de Coimbra, como inúmeros fadistas consagrados) ou o que está descolorido neste filme(como o caso de Amália Rodrigues), mas o que é certo é que, em si mesmo, ele tem uma consistência interna, uma beleza formal assinalável e uma selecção musical (ainda que discutível) que dá gosto ouvir.

Ao decidir chamar-lhe "fados", Carlos Saura, mais do que apenas fazer um filme, abriu uma porta. Espera-se que outros fados possam irromper por essa porta.

1.10.07

Descascando a cebola da culpa


A ideia não é nova: gozamos mal porque sentimos culpa. Daí que haja uma tendência, cada vez mais acentuada, de desculpabilização. Não se trata exactamente de pedir desculpa (pois quem pede desculpa ainda se sente culpado) ou de expiá-la, mas de apagar, rasurar, fazer desaparecer a culpa. No limite, o sonho é poder agir sem culpa. Fazem-se terapias para dormir melhor e, de preferência, sem culpa.

Porém, não é certo que a culpa seja um obstáculo ao gozo, antes uma das suas formas mais sofisticadas. Talvez seja este um dos "paradoxos do cristianismo", como diria Chesterton.
Em vez de ter criado um obstáculo, o cristianismo teria inventado um novo modo de gozar (Cf. ZizeK, A Marioneta e o Anão) para além do tédio da existência pagã.

Por outro lado, há uma diferença entre apagar a culpa (como se pretende cada vez mais) e assumi-la: neste caso, há um sujeito que responde (mesmo que inconscientemente) por um acto. E como o inconsciente não conhece o tempo (cronológico), há coisas que insistem, na nossa vida, até serem integralmente, subjectivamente assumidas.

Que o diga Günter Grass, o aclamado escritor alemão , que decidiu quebrar o silêncio (sobre a sua participação, no final da segunda guerra mundial, nas Waffen-SS, uma força militar especial do Partido Nazi, condenada nos tribunais de Nuremberga) após sessenta anos (Cf. Descascando a Cebola - Autobiografia 1939-1959).

Não é a culpa uma das provas de que somos humanos?

25.9.07

Um nada que é tudo


O meu filho tem um gosto aparentemente bizarro: colecciona pedras. Toda a pedrinha que encontra no chão é objecto do seu interesse.

Mas será um gosto assim tão bizarro?

A minha tese é que ele já apreendeu o "o segredo"de toda a arte pós-Duchamp: qualquer coisa serve - um urinol, uma pá, uma roda, uma pedra...não interessa.

Qualquer coisa serve para ocupar provisoriamente o vazio da Coisa: essa coisa que perdemos quando começamos a falar.

Aliás, este gosto, aparentemente infantil, é afinal o que move grande parte das realizações humanas. Caso contrário, não se perceberia o entusiasmo, a paixão com que a tecnociência contemporânea não cessa de produzir, num ritmo alucinante, novos objectos. Já não se chamam pedras, mas telemóveis, computadores, ipods... e um sem número de outras nomes.

Dei por mim a pensar nestas coisas quando assistia, ontem, ao programa "Prós e Contras" (RTP1) e ao entusiasmo "infantil" com que os participantes falavam do admirável mundo novo da tecnologia.

Pedras, pedras no caminho...

24.9.07

Arte da prudência

Descartes acreditava ser necessário um método para bem conduzir o pensamento e a vida. O que fazer, porém, quando o barco da vida perdeu o Norte e navega agora num mar de incerteza e contingência, sem um Grande Outro (seja Deus ou a Razão) que lhe sirva guia?

Talvez a resposta seja aquilo a que Baltasar Gracián chamava a "Arte da Prudência". Ser "prudente" significa, neste caso, saber-fazer com a incerteza e a contingência. "Saber-fazer" não é a mesma coisa que "saber". Contrariamente à fantasia hegeliana de um "saber absoluto", há algo que é impossível de saber; não porque o fechemos à chave ou lhe dificultemos o acesso (é a nossa fantasia), mas porque há, estruturalmente, um saber que não se sabe. Que ninguém sabe.

Trata-se, então, de saber-fazer com o não saber. E como as razões se acabam depressa, como diria Wittgenstein, temos de agir sem elas.

22.9.07

Tropeçar na felicidade

Vivemos um tempo extremamente paradoxal: ao mesmo tempo que se fala, como nunca, na "sociedade de consumo" (segundo a expressão, já consagrada, de Baudrillard) ou "hiperconsumo" (Lipovetsky), não paramos de assistir a fenómenos em que parece haver, cada vez mais, um medo ou um receio de consumir. Abundam os produtos "light: a cerveja sem álcool, o café sem cafeína...e por aí adiante. Produtos leves que nos mantêm leves, cada vez mais leves.

Aliás, este fenómeno é geral: não diz apenas respeito à comida, para o estômago, mas também ao alimento para o espírito. Queremos livros, por exemplo, que não cansem demasiado, que sejam fáceis de digerir. Devem poder ler-se de um só fôlego, sem demasiadas pausas para respirar, e sobretudo não provocar insónias.

Nesta cultura "light", uma das ideias mais extraordinárias que frutificou e se expandiu, como uma praga, foi a de que a felicidade é algo que está aí ao abrir da mão. Mais : só não é feliz quem não quer. Mais ainda: é obrigatório ser feliz. Da mesma forma que podemos beber um café sem cafeína ou uma cerveja sem álcool, podemos ser felizes se quisermos.

Um dos preços a pagar por esta ideia é que andamos todos cada vez mais deprimidos, mais infelizes. A prova é o consumo, sempre crescente, de medicamentos. Se eu não sou verdadeiramente feliz, devo ter um problema. Se às vezes me sinto profundamente triste é porque ainda estou pesado e devo, quanto antes, libertar-me desse peso. Se o peso se mantém, apesar de tudo, é porque...não fiz a "dieta" indicada.

Trata-se, no fundo, de uma mudança assinalável em relação a toda a tradição do pensamento ocidental. Com efeito, se para Aristóteles, por exemplo, a felicidade era um desejo de todo o homem, para nós ela tornou-se uma obrigação. A felicidade tornou-se numa espécie de "escolaridade obrigatória": tal como somos obrigados a frequentar a escola, durante x anos, também somos obrigados a a ser felizes.

O problema é que a felicidade é um pouco como Deus: estás em toda a parte, diz-se, mas nunca o vemos em parte alguma. Como diz Daniel Gilbert, o autor de Tropeçar na Felicidade (Stumbling on Hapiness), "quando aquilo que tínhamos projectado finalmente se realiza, o nosso bom humor não dura tanto como esperávamos. E, apesar da nossa obsessão com a felicidade, nunca seremos tão felizes como a nossa imaginação nos promete" (Estrela Polar, 2007).

Segundo o autor, tal deve-se ao facto, cientificamente demonstrado, que a nossa imaginação sofre uma espécie de "ilusão de óptica" quando projecta o futuro.

Ora, para uma "ilusão de óptica", não seria melhor consultar o oftalmologista em vez de mergulhar, de cabeça, na literatura "light" da auto-ajuda e afins?

É uma proposta "light"...para um tempo "light".

16.9.07

A novela do real

O real é traumático, impossível de suportar. Quando uma criança "desaparece" do mundo (por morte, rapto ou outra razão qualquer) somos confrontados, de um modo ou de outro, com esse real. Nada é mais difícil de suportar do que este súbito e brutal congelamento do futuro que a vida de uma criança representa.

Acontece que hoje, graças aos media, este real traumático acaba por ser banalizado. A força da repetição enfraquece progressivamente os sentimentos. O que havia de "real", impossível, transforma-se em "realidade" fabricada, insignificante, inofensiva. Ouvimos e vemos a novela do real como quem bebe um café...descafeinado.

Tal como em outras novelas, também nesta o amor cede rapidamente lugar ao ódio. E há, sobretudo, uma velha equação, de raiz grega, que continua a funcionar: a equivalência entre o belo e o bom. Com efeito, se o caso da menina "desaparecida" no Algarve levou a uma tal "identificação" por parte das pessoas relativamente aos pais da criança (contrariamente ao que acontecera em milhares e milhares de outros casos) é porque se tratava de "gente bonita", como se diz. E gente bonita não faz coisas feias. Até o santo padre continua afectado por esta equação de raiz grega entre o bom e o belo, a ética e a estética.

A função do belo (que as televisões mediatizam até à exaustão) é poupar-nos o confronto com o impossível de suportar, com o real. Porém, tal como pode haver beleza no mal (como mostrou Baudelaire), também existe "maldade" na beleza.

A gente bonita também é capaz de coisas feias.

10.9.07

O que fazer com o nariz


Há um livro fantástico de Luigi Pirandello, Um, Ninguém, Cem Mil, cuja personagem principal, Vitangelo Moscarda, acaba progressivamente por enlouquecer com base num pormenor aparentemente insignificante: graças a um reparo da sua mulher, descobre, espantado, que o seu nariz tem uma ligeira inclinação para a direita.

Esta simples constatação torna-se num espécie de bola de neve que vai arrastando, à medida que rebola, todo o tipo de certezas subjectivas e desencadeando um autêntica revolução interior no protagonista. Toda a percepção de si mesmo e dos outros fica irremediavelmente abalada.

Claro que isto é um romance (mesmo se a vida está lá toda) e a moral da história é que a criação implica uma certa forma de "loucura" ou histerização do sujeito, no sentido em que as certezas e os baluartes que o protegem quotidianamente são de alguma forma abalados.

Dei por mim a pensar neste livro de Pirandello (tal é a lógica da associação de ideias) quando lia um artigo na última edição da revista Sábado sobre "as loucuras no mundo das plásticas" (cf. nº 175 - 6 a 12 de Setembro de 2007). Pensei: hoje, em vez de meditar ou filosofar sobre o ligeira inclinação do nariz para a direita, Vitangelo Moscarda teria simplesmente pedido uma plástica para corrigir a imperfeição.

Aliás, a ideia habitual que nós temos da cirurgia plástica é simplesmente essa: corrigir as imperfeições. Mesmo se, no limite, um tal desejo se revele impossível de satisfazer, como mostra o caso de alguém que já fez 16 cirurgias e pretende continuar (p. 42-43). Mesmo assim, isso ainda parece normal: trata-se de corrigir, por meio da arte, certas imperfeições da natureza. Ou perfazer o trabalho que a natureza começou. Num certo sentido, como diria Aristóteles, trata-se ainda, de alguma forma, de imitar a perfeição que a natureza poderia ter produzido se levasse a bom porto o seu trabalho.

Mas o que dizer de alguém que pede, não um aperfeiçoamento ou uma correcção desta ou daquela parte do corpo, mas antes um "desvio lateral do nariz" (p. 43), o mesmo que custara a sanidade mental à personagem de Pirandello?

Um e outro caso demonstram, embora por caminhos diametralmente opostos, que o corpo do sujeito que fala e que é falado (para o qual Lacan inventou o termo de parlêtre) é irremediavelmente um corpo pervertido, desnaturado, incómodo.

7.9.07

Aqui há rato...


Tem-se falado ultimamente de ratos a propósito da praga que assola a vizinha Espanha e que, segundo alguns, pode chegar a Portugal. Seria uma variação interessante do velho ditado: de Espanha, nem bons ventos, nem bons...ratos!

Veio mesmo a calhar o filme "Ratatouille", actualmente em exibição nas salas de cinema. Não que o significado do termo tenha algo a ver com ratos, pois o ratatouille é um prato rústico, típico da região de Provence. Pouco importa: o que conta, independentemente do significado, é que quando ouvimos o significante, em português, não conseguimos deixar de pensar em ratos. E com razão, pois os protagonistas do filme são, na verdade, ratos, em especial um que se chama Rémy. Eu sei disso porque fui "obrigado" a ver o filme duas vezes por causa da paixão que o meu filho, de cinco anos, lhe consagrou. Aliás, por causa disso (a função paterna?) tenho visto inúmeros filmes para "crianças", mas raramente com tanto prazer como este último.

O argumento poderia resumir-se da seguinte maneira: trata-se do encontro, improvável, entre duas coisas que não podem estar mais afastadas entre si: ratos e cozinha. Seguindo a máxima do malogrado chef Auguste Gusteau, segundo a qual "todos podem cozinhar" (até um rato), Remy, um rato "atópico", isto é, desenquadrado do seu meio natural, torna-se num verdadeiro criador da arte culinária. De tal forma que até o maior crítico do meio, Anton Ego, fica rendido.

A cena é comovente: quando o crítico, reticente, após ter pedido algo que o surpreenda, prova o "ratatouille" feito pelo pequeno Remy (embora não sabendo que está a comer comida feita por um rato), é tomado por uma espécie de vertigem do espaço-tempo que o leva de regresso à infância. O que vemos, então, é a súmula de todo o filme e resume-se numa frase: não há cozinhados como os da mamã.

Com efeito, o que vemos nesse flash retrospectivo é o pequeno Anton Ego a ser alimentado pela sua mamã, saboreando, com todo o prazer, o seu (primeiro?) "ratatouille". Que possamos deliciar-nos, também nós (e não só as crianças...) com esse espectáculo de "imagens", é a prova de que há, para além da mera necessidade, uma outra satisfação que é igualmente alimentada.

4.9.07

O "segredo" do segredo


Após ler imensos disparates sobre o último best seller a nível mundial, "O segredo", dei comigo a perguntar: estaremos nós tão desesperados que até a merda nos parece luzidia como o ouro?

Deixando de lado o oportunismo da autora, Rhonda Byrne, que já encheu os cofres à custa do desespero humano, creio que eu mesmo descobri o "segredo" do segredo. Mesmo se não há sentido do sentido ou verdade da verdade (pois tanto o sentido como a verdade deixam sempre um resto), há "segredo" do segredo. E qual é então, o segredo do segredo?

O segredo do segredo é a abolição do real. O real é o que oferece resistência ao pensamento. Aquilo a que o psicanalista francês Jacques Lacan (cujos escritos são também da ordem do real porque oferecem resistência ao pensamento) chamava: forclusion. Na verdade, ele usava este termo para falar do mecanismo envolvido em certos distúrbios psiquiátricos, enquanto abolição de um significante no simbólico. No caso presente, trata-se de uma abolição do próprio real, isto é, do que oferece resistência ao pensamento.

Com efeito, o que diz o "segredo"? Que basta acreditar e pensar positivo.

1.9.07

Second Life

Ao ler, algures, um artigo sobre o aumento exponencial do número de utilizadores da chamada "Second life", dei por mim a pensar no seguinte: o que é mais espantoso não é que as pessoas, de uma forma geral, queiram ter uma "segunda vida" (pois, como é costume dizer, a que se tem deixa sempre a desejar), mas antes que essa "segunda vida" seja, afinal, tão parecida com a "primeira".

Aliás, esta parece ser mesmo a filosofia da coisa: que tudo pareça tão "real", isto é, tão parecido com a "realidade" quotidiana, quanto possível.

Isto, sim, dá que pensar!

28.8.07

Inland Empire


Do último filme David Lynch, "Inland Empire"(em exibição hoje e amanhã no cinema Nimas), poder-se-ia dizer, em bom português, que não tem ponta por onde se lhe pegue. Não quero enunciar com isto um problema, mas antes um modo de aceder-lhe. Mesmo se a tentação do sentido é grande, é preciso abandonar, à porta do cinema, toda a esperança de sentido.

Filmes estranhos é algo a que o realizador já nos habituara desde a sua primeira longa metragem (Eraserhead, 1977). Também realizou o filme menos estranho e mais familiar que possa imaginar-se (The Straight Story, 1999). É um filme diverso de tudo o que ele já havia feito até ao momento, sem quase nenhum elemento estranho, a não ser o facto de o protagonista atravessar o país em cima de uma pequena maquineta de cortar a relva para visitar o irmão que se encontra doente e com quem não mantém boas relações desde há vários anos. É uma história familiar de reconciliação.

Este último filme, pelo contrário, retoma a vertente mais bizarra do cinema de Lynch: mal começa, o espectador é imediatamente mergulhado num espaço-tempo absolutamente estranho e descontextualizado. Depois, apercebe-se que se trata de um filme (dentro do filme). Quando julgava, finalmente, que o "pesadelo" ia terminar com o famoso "corta" (o corte simbólico que separa o espaço real do imaginário), apercebe-se, com assombro, que "confusão" entre o real e o imaginário vai continuar, ininterruptamente, até ao fim.

A este esbatimento (ou confusão) do imaginário e do real, poderíamos chamar, com Freud, Das Unheimliche: o sentimento de algo estranhamente familiar. Talvez o filme nos agarre, apesar de tudo, porque vai semeando, aqui e ali, indícios de familiaridade, como se tentasse esboçar um fio de narrativa, de sentido, para logo nos despistar e confundir.

Ele deve ver-se como a "outra cena", inconsciente, que nos povoa os sonhos (com a sua lógica onírica própria) e não como um "retrato", fiel ou infiel, do que quer que seja. A "outra cena" de que aqui se trata é o próprio cinema.

O perigo, não obstante, de filmes deste género, é que eles acabam por ter qualquer coisa de "perverso": criam a ilusão de que há "algo" onde não existe "nada".

27.8.07

A nossa necessidade de consolo é (im)possível de satisfazer

Por vezes, basta fazer um simples corte ou uma suspensão numa palavra para que ela ganhe um sentido completamente novo e até mesmo oposto.

Stig Dagerman é um autor sueco nascido em 5 de Outubro de 1923, a Norte de Estocolmo. Após falhar várias tentativas de suicídio, acaba por passar ao acto em 4 de Novembro de 1954, terminando desta forma abrupta uma carreira literária breve e fulgurante.

Um dos seus livros tem como título: A Nossa Necessidade de Consolo é impossível de satisfazer (Värt Behov av tröst), segundo a versão portuguesa de Paula Castro e José Daniel Ribeiro.

Quando se olha a coisa do ponto de vista do impossível, tudo o que possa existir de consolo (a que o autor, metaforicamente, chama "presa") é escasso e fugaz: "se sou solitário, uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisioneiro - um arco de palavras que com assombro reteso, uma súbita suspeita de liberdade. Se sou ameaçado pela morte ou pelo mar - um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido" (Fenda, 2004, p. 15).

No fundo, é a lógica do desejo humano: sempre aquém do seu objecto, ou relativamente ao qual todo o "objecto" é insatisfatório. Mas é também a lógica da impotência: haveria um consolo, uma satisfação absoluta, relativamente à qual somos impotentes.

Se mudarmos, porém, de ponto de vista, aquilo que nos aparecia como pouco, "escasso e fugaz", em relação ao "impossível", aparece-nos agora como aquilo que há, nem muito nem tempo, e de onde retiramos algum "gozo": o gozo possível.

Acontece que este ponto de vista não é natural: acaba por ser mais atractiva a lógica da (in) satisfação. A vida dá lenha aos que querem arder nesse fogo.

26.8.07

Dois corpos nus

Visitei finalmente a colecção Berardo que se encontra exposta no centro Cultural de Belém. É uma viagem por alguns dos mais representativos movimentos da arte contemporânea, predominantemente dos anos sessenta.

Olhamos com relativo prazer, de forma mais ou menos interessada, alguns dos emblemas da arte do século XX (do Surrealismo à Pop Art, passando por Picasso, Modigliani, Duchamp, entre outros) até que, de repente, somos confrontados com a "escultura" realista de dois corpos nus, abraçados, no chão de uma sala.

Confesso que a colecção se vê com uma relativa indiferença: talvez por excesso de "mediatização" a que foram submetidas ao longo do tempo a maior parte daquelas imagens, elas já não nos surpreendem, hoje, verdadeiramente. O mais surpreendente acabam por ser dois "vídeos", um realizado no cemitério onde está sepultado o corpo de Marcel Duchamp, salvo erro (como se a morte fosse o resumo de toda a arte) e outro sobre os trágicos acontecimentos que abalaram a América aquando da morte do presidente Kennedy. Ambos têm um fundo sonoro, vocal, deliberadamente "sinistro" e mesmo "irritante". São "espaços" tornados impossíveis...de habitar.

Mas talvez a obra mais "surpreendente" seja a escultura de John de Andrea, não tanto pelo que ela representa, mas sobretudo pela reacção que provoca no espectador: de uma forma geral, o olhar é primeiro cativado, surpreendido; depois, subitamente, há um desvio do olhar. As pessoas não deixam, quando entram naquela sala, de olhar (é o momento em que o fascínio ainda veste de imaginário o excesso de "real"), mas logo depois vão deixar de olhar, parecendo "incomodadas", como se aquilo as tocasse no mais intimamente estranho de si mesmas. Algumas sorriem, outras deixam transparecer uma ligeira careta de repúdio. A causa é o extremo "realismo" com que é exibido, em particular, o sexo do homem e da mulher.

Por meio de uma técnica "hiper-realista", John de Andreia provoca em nós o olhar, não só na medida em que nós, espectadores, olhamos aquelas figuras nuas, mas sobretudo porque elas nos "olham", nos tocam, nos afectam...com uma estranha familiaridade. Elas dão-nos a ver o "objecto" do fascínio pelo nu quando este deixa de estar ornamentado com as vestes do imaginário e cai, por assim dizer, literalmente no real.

25.8.07

Um certo modo de dizer


O que hoje recordo de Eduardo Prado Coelho, agora falecido, não é tanto a multiplicidade dos temas e domínios em que ele se aventurava, desde a crítica à poesia, da literatura ao cinema, da política à sociedade, da filosofia à música, do erudito ao banal..., mas sobretudo um modo de dizer inconfundível que misturava harmoniosamente a força dos argumentos e a brandura da voz.

Fica, por isso, a minha homenagem.

15.8.07

Uma preciosidade

Quando a voz se alia à sensualidade dos corpos em movimento, quais tecelões do espaço, o resultado é este naco de gozo.
Vale a pena, em tempo de férias, deleitar-se com esta preciosidade.

14.8.07

Profanações

Não são necessariamente os "grandes" livros que mais nos tocam. Há pequenas obras que têm sobre nós um tal poder de arrebatamento que é difícil explicar. Um bom exemplo é o livro de Giorgio Agamben, intitulado "Profanações" (Profanazioni), publicado em Portugal, em 2006, pelas Edições Cotovia.

Este não é sequer, de longe, o melhor ou o mais emblemático livro do autor. É apenas um conjunto disperso de textos com temas algo heteróclitos: Genius; Magia e felicidade; O dia do Juízo Final; Os ajudantes; Paródia; Desejar; O ser especial; O autor como gesto; Elogio da Profanação; Os seis minutos mais belos da história do cinema.

O que encanta nos pequenos livros, como este, é que eles não procuram elaborar qualquer filosofia, sistema, linha de pensamento coerente, mas antes traçar pontos de fuga, atalhos que nos levam por caminhos pouco usuais.

"Profanar", como explica o autor num dos textos (Elogio da profanação, p. 103-133), consiste em restituir aos homens o livre uso das coisas. Daí que o termo se oponha à palavra "consagrar" (sacrare), uma vez que esta designa a retirada das coisas da esfera do direito humano para as entregar aos deuses.

É com uma certa "magia"que se lêem estes textos. E não há, como mostra o autor num deles (pp. 25-30), felicidade sem magia.

8.8.07

Extimidade


Agosto é o mês em que toda a gente vai para fora: a praia, o campo, um outro país... Não quer dizer que a cidade fique vazia, não; ela fica cheia dos outros, dos estrangeiros, dos que vão igualmente para fora de outras cidades como esta, algures, num outro lugar qualquer da Europa, do mundo. Eles vêm, como estrangeiros, habitar, por um tempo, a cidade abandonada, dando-lhe um sopro de vida.

Por diversas razões que não vou dizer (chama-se a isto, na gíria psicanalítica, denegação), este ano vou permanecer na cidade. Como um "estrangeiro" entre estrangeiros. Um turista acidental.

Às vezes é preciso redescobrir essa estranheza do olhar, voltando a contemplar as coisas da maneira que só um estrangeiro é capaz: como se fosse a primeira vez. Foi o que pensei e senti ao percorrer, devagar, com o meu amigo Jean Luc, as velhas ruas vestidas com o manto do hábito, onde já não reparamos. Só ele é que era estrangeiro, no verdadeiro sentido da palavra, mas eu senti-me devir estrangeiro, numa espécie de conversão do olhar. Tornei-me estrangeiro não porque vinha de um outro lugar, como ele, mas porque de repente tudo me pareceu estranhamente familiar, quer dizer, com aquela familiaridade que nos faz reparar nas coisas a que estamos habituados, mas como se o olhar, vendo-as de fora, lhes tivesse restituído uma segunda infância, uma estranheza que nos surpreende e comove.

Foi então que me recordei de uma frase de Martin Heidegger: "O que nos parece natural é unicamente o habitual do há muito adquirido, que fez esquecer o inabitual de onde provém. Este inabitual, todavia, surpreendeu um dia o homem como algo de estranho, e levou o pensamento ao espanto" (A Origem da Obra de Arte).

De repente, esta frase pareceu-me tão clara e luminosa como a luz da cidade que eu amo. E uma espécie de magia embalou-me nos braços.

3.8.07

A tentação das profundezas

É grande a tentação de pensar que o conhecimento último, a verdade ou a essência das coisas, se encontra num lugar oculto, profundo, abaixo da superfície, e que é preciso escavar para que ele seja revelado.

O próprio Freud não escapou desta tentação, acabando, também ele, por ser enredado na metáfora das profundezas. Compreende-se que a sua paixão pela arqueologia tenha contaminado, a certa altura, a maneira de conceber o inconsciente. Ainda hoje há quem se refira a Freud como o inventor da "psicologia das profundezas".

Também no frenesim com que aparecem, todos os dias, novos títulos sobre a "revelação" de segredos e afins (disto e daquilo) - é extraordinário como a ciência mais avançada não conseguiu destronar, muito pelo contrário, o misticismo mais retrógrado - se nota a persistência dessa tentação da profundidade.

Contra esta tendência, vale a pena reler a "carta roubada" (The purloined letter), de Edgar Allan Poe (1845). Ele mostra, de forma magistral, como aquilo que se procura, aqui ilustrada pela circulação de uma carta, que passa de mão em mão, torna-se invisível, não porque esteja num lugar profundo, mas sim porque está à superfície, e ninguém (ou quase ninguém) tem por hábito observar atentamente o que está à superfície.

É então, como dizia Ernst Junger, que o problema se torna mais inquietante.

30.7.07

A vida dos Outros


E se, a meio do caminho de uma vida, parafraseando Dante, um homem, com a mesma paixão com que tinha seguido numa determinada via, arrepiasse caminho, seguindo outra? Eis o que acontece, precisamente, em A vida dos Outros (Das Leben der Anderen), um filme poderoso, extraordinário, verdadeiramente imperdível, de Florian Henckel von Donnersmarck, em exibição no velho e negligenciado Quarteto. Nem a avaria do ar condicionado, em tempo de canícula, foi suficiente para abalar a emoção e a felicidade (contrariamente ao pesadelo gratuito do último filme de Quentin Tarantino - curiosamente celebrado por alguns "críticos" de cinema como uma obra prima) que me arrebatou até às lágrimas. Aplica-se aqui o que Oscar Wilde escrevia no século XIX: "num século de grande fealdade em que a razão prevalece, as artes nada extraem da vida, mas copiam-se umas às outras". Enquanto o "pastiche" de Tarantino é um sufoco claustrofóbico de auto e hetero-citação, onde não saímos do cinema para a vida, no filme de Florian Henckel é a própria vida ( a dos outros e a nossa) que irrompe na tela e transforma tudo e todos.

O filme passa-se em 1984, na antiga Alemanha de Leste, cinco antes antes da Glasnot e da queda do Muro de Berlim, onde a população é mantida debaixo de controlo pela Stasi, a polícia secreta alemã. A Stasi tem por missão saber tudo sobre a vida de todas as pessoas, através de uma vasta cadeia de informadores/denunciadores. O filme acompanha a gradual desilusão do Capitão Gerd Wiesler, um oficial altamente credenciado da Stasi, cuja missão é espiar um famoso escritor, George Dreyman, e a sua esposa, a actriz Christa-Maria Sieland.


"Saber tudo" é uma versão do sonho hegeliano do
saber absoluto. Só que, desta vez, o sonho é realizado (num lugar determinado e por via de um regime político e da sua rigorosa e eficaz polícia secreta) e transforma-se em em pesadelo. Durante o filme, assistimos a uma espécie de revolução subjectiva em Gerd Wiesler que o transforma completamente até ao ponto de proteger, da polícia secreta, aquele em quem tinha investido tantas horas de observação: o escritor George Dreymer.

Em português, temos uma expressão curiosa: "tudo e mais alguma coisa". Poderíamos aplicar esta expressão ao que acontece a Gerd Wiesler: na ânsia de "saber tudo", ele depara-se, inesperadamente, com "mais alguma coisa", ficando de tal forma abalado interiormente que, a partir daí, já não é mais o mesmo, ainda que, formalmente, continue a realizar os mesmo actos, mas com um sentido diametralmente oposto.


O risco de um acto verdadeiramente ético, é que ele pode implicar a perda de tudo. É o que se poderia chamar
uma escolha forçada. Se o filme nos toca profundamente, é porque cada um de nós, num momento ou outro da vida, é confrontado com essa escolha. Há alguma coisa de Antígona no gesto de Wiesler: ele faz o que julga estar certo sem temer as consequências.

29.7.07

O grande silêncio


O silêncio não é simplesmente o contrário da fala. Uma prova disso é o filme O grande silêncio (Die Grosse Stille) que só agora tive oportunidade de ver.

É um documentário, bastante premiado e visto, sobre os monges da Grande Cartuxa. Eles passam a maior parte do tempo em silêncio, apenas quebrado pelos seus cantos esporádicos e uma ou outra conversa durante alguns passeios ao ar livre e em determinadas solenidades.

A princípio, custa um pouco a entrar naquele mundo. Depois embrenhamo-nos nele. Dei comigo a rir de uma piada que um dos monges conta, a certa altura, em que se discute o ritual (obsessivo?) de lavar as mãos. "o problema não é eu ter de lavar as mãos; o problema é que eu me esqueço sempre de sujá-las antes".

O que se trata ali é de fazer silêncio, de calar toda a fala vazia da linguagem mundana, para que fale, por meio desse silêncio, a plenitude do próprio Deus.

Também noutros contextos, salvaguardando as devidas diferenças, é assim: alguém tem de fazer silêncio para que irrompa a plenitude de uma fala.

27.7.07

O poder da sugestão


Vivemos num tempo algo paradoxal, na medida em que, por um lado, se exige transparência, visibilidade, e, por outro, se proclama o segredo e o mistério. Talvez a contradição não seja grande, uma vez que o segredo existe para ser revelado.

Acontece que quando um segredo é revelado, como foi o caso do terceiro segredo de Fátima, ele acaba por perder a aura, revelando que, afinal de contas, não ocultava grande coisa: apenas truísmos, banalidades.

O último "segredo" a fazer estragos é o título de um livro e de um filme que já vendeu perto de 100 milhões de exemplares (a acreditar na revista Visão, de 26 de Julho de 2007) por esse mundo fora.

Mas qual é, afinal, o segredo? Apenas uma verdade simples, para a qual existe, inclusivamente, um aforismo: querer é poder. É verdade que, às vezes, o desejo move montanhas, mas aqui o poder da mente pretende-se infinito, ilimitado.

No fundo, é como se a velha oposição freudiana entre o princípio de prazer e o princípio de realidade sofresse aqui um esbatimento, de tal modo que não houvesse mais diferença entre os dois. E, até certo ponto, é mesmo assim: a realidade é apenas a continuação, um desvio, um adiamento do nosso projecto de alcançar o prazer e a satisfação custe o que custar. Porém, a diferença, neste caso, é que o prazer não se molda à realidade, mas é a própria realidade, se assim podemos dizer, que se molda ao prazer. Como dizia alguém que testemunhou, na Visão, do seu caso, "Foquei-me no que me daria prazer, o universo conspirou a meu favor" (p. 96).

Uma outra ideia, um pouco leibniziana, vestida com as roupas da Nova Era, é que "nada acontece por acaso". Por aqui se percebe a diferença entre esta realidade, moldada pelo prazer, e o real da contingência, o verdadeiramente inesperado, o que não resulta de uma simples visualização ou concentração da mente; o que nos põe fora de nós, em desarmonia; o que nos arranca da crença de que nós somos a medida do mundo; o que nos acontece quando não é o sonho que comanda a vida, mas a vida que descomanda o sonho.

Por último, há uma crença ingénua (em que o próprio Kant acabou por cair, quem diria!) que consiste em supor que a felicidade depende do merecimento. "O que desejo pode acontecer se eu acreditar que mereço", dizia alguém na Visão (p. 96). O que merecem aquelas crianças que são verdadeiramente felizes, mesmo antes de saberem o que é ser feliz ou buscarem a felicidade? Quando procuramos merecer a felicidade ( saber onde está, como podemos alcançá-la) é porque já não sabemos verdadeiramente o que ela é, já a perdemos. A felicidade, como dizia Giorgio Agamben, é uma espécie de magia e não um merecimento. Talvez seja por isso, apesar de tudo, que há tanta necessidade de "magia" nesta cultura científico-tecnológica em que vivemos.

Mas não deixa de ser elucidativo que, precisamente no momento em que mais cresce o "mal-estar" na civilização (as alterações climáticas, os efeitos da globalização, as depressões de todo o género e feitio...), aumentem também, de forma avassaladora, as promessas de bem-estar e felicidade. O poder da sugestão, esse sim, parece infinito.

21.7.07

Um gozo idiota?...


Um "gozo idiota" é aquele em que o Outro (sexo) não entra, a não ser "fantasmaticamente". Um bom exemplo deste tipo de gozo é a auto-masturbação.

De certa forma, todo o gozo é idiota, na medida em que não se "funde" com o Outro (gozo), mas, por vezes, chega até a "colidir" com ele. Eis o que mostra (goste-se ou não da forma adoptada) o último filme de Quentin Tarantino.

O "desmaio" ou a "morte" são limites para o gozo. A invenção da "imortalidade" (as penas do Inferno ou as delícias do Paraíso, por exemplo) foram, outrora, uma forma de perpetuar (ou tornar possível) o (pouco) de gozo conseguido aqui.

Hoje, na era "pós" ou "hipermoderna", as soluções inventadas são outras: por exemplo, um carro "à prova de morte"(death proof). É esta a solução "inventada"no filme de Tarantino: num carro artilhado 100% à prova de morte, Stuntman Mike (um ex "duplo"de cinema "série B") leva a cabo as suas "colisões" mortais com um grupo de raparigas.

O que é apresentado neste filme é cada um dos sexos "sozinho" com o seu gozo, em rota de "colisão" (cada um por sua vez) com o Outro, acabando por anulá-lo, desmembrá-lo, fragmentá-lo, reduzi-lo a pedaços. Fantasma de um "corpo fragmentado" na era dos "gadgets"?

É um filme sem saída, "inabitável" (como dizia Jorge Leitão Ramos no Expresso de hoje): puro cenário "perverso", de uma violência desmesurada e gratuita.

O problema é que no cinema, tal como no amor, não há fórmula, a não ser quando um e outro começam a repetir-se. Nesse caso, o fim do amor, tal como do cinema, está próximo. Temo que seja o que acontece com os filmes de Quentin Tarantino: começam a ser demasiado repetitivos e, como tal, previsíveis.

Felicidade e magia

Hoje apetece-me colocar a questão de outra maneira, completamente diferente. Por vezes é deveras instrutiva esta mudança de perspectiva: as coisas surgem sob um novo ângulo, deixando transparecer à luz aspectos que permaneciam na sombra.

Num pequeno texto intitulado "magia e felicidade", Giogio Agamben diz, a certa altura, o seguinte: "aquilo que conseguimos atingir através dos nossos méritos e do nosso esforço não pode, de facto, tornar-nos verdadeiramente felizes. Só a magia consegue fazê-lo".

De certa maneira, a grande ilusão "kantiana" é pensar que se chega ( a ser digno da ) felicidade através da "boa vontade", do aperfeiçoamento ou do "mérito"; outros pensam que se chega lá através da reflexão, outros ainda da experiência adquirida, da maturidade…Mas nada disso conta na hora de ser (momentaneamente) feliz.

É desse ponto de vista que a filosofia (enquanto espírito crítico e reflexivo) não serve para nada. Aliás, pode até ser o obstáculo, a pedra no caminho, como diria o poeta.

Para ser feliz não há receita, não há fórmula. Não há mérito. Não há curso. Apenas encontro. Por mais que nos contem “histórias de felicidade”, se as tentarmos repetir tais e quais elas nunca ou quase nunca dão certo”. A felicidade, como diz algures, numa entrevista, Jorge Forbes, "é ténue, um encontro provisório. Não é standard, nunca é fixa”.

“Uma espécie de magia”, como diria Agamben. Eis porque ler todos os livros (e são inúmeros) que se escreveram até hoje sobre o tema, deixa em nós uma sensação de enfado. A felicidade pode ser tudo aquilo que se disse, menos o facto de que quando acontece é sempre imprevisível e não há livro, pensamento, receita, mérito ou demérito (o mais feliz pode ser precisamente aquele que não "mereça" tal) que possam ajudar. A não ser, talvez, uma certa "disponibilidade" para acolher o momento, o acaso, a contingência.

É por isso que a progressiva “rasura” da filosofia (levada a cabo pelos nossos políticos), talvez não seja uma coisa tão assim tão má... Eles sabem que, na hora de ser feliz, a filosofia é inútil.

A não ser que pensemos, como Zizek, retomando Lacan, que "a traição do desejo tem um nome: felicidade" (Bem-Vindo ao Deserto do Real). Pode ser que sim, mas desistir de ser feliz, mesmo que impossível, é acomodar-se.

19.7.07

Uma questão de cidadania


O dia 16 de Novembro foi consagrado como Dia Internacional da Filosofia pela UNESCO. Em Portugal, pelo contrário, a filosofia, tanto a nível do superior como do secundário, tem sido progressivamente diminuída, rasurada. Os nossos políticos, apostados na redução do défice, não se aperceberam até agora de que, a curto, médio e sobretudo longo prazo, é a cidadania (no que esta implica um espírito crítico) que está verdadeiramente em risco.

Se é verdade o que dizem as mais recentes descobertas no âmbito das neurociências, o nosso cérebro é suficientemente "plástico" para se moldar (até certo ponto, claro) em função das experiências, da aprendizagem, dos valores e dos conceitos. O que será, a longo prazo, um cérebro "reduzido" às coisas ditas "práticas", "profissionalizantes", ainda que possam levar a "novas oportunidades"? Há melhor prenda que se possa dar a um jovem que a "oportunidade" de reflectir um pouco sobre o está acontecer em redor?

É verdade que a escola também deve preocupar-se em formar bons profissionais (quanto mais não seja para alimentar a máquina capitalista), mas a sua vocação primordial não será, antes de mais, formar "sujeitos" de pleno direito e "cidadãos" no verdadeiro sentido do termo?

Falar, neste contexto, em "cidadania", como a finalidade última do ensino, é uma pura "fala vazia" sem consistência. E o problema é que a fala, mesmo quando vazia, acaba, mais cedo ou mais tarde, por ter os seus efeitos (perversos) no real.

15.7.07

O que dizem elas sobre "isso"?


Na revista "Sábado" da última semana, vinha um artigo sobre "mulheres que têm sexo com estranhos". O artigo fazia referência a estudos que mostram que 50% das mulheres portuguesas já tiveram relações de uma só noite, e trazia o testemunho de cinco delas. Apesar do número impressionante (50%) - não sei, aliás, se António Barreto terá contemplado este aspecto no seu "Portugal, Um Retrato Social", pois não tive oportunidade de ver todos os episódios -, o que me deixou a pensar foi sobretudo a ideia do "testemunho".

Que cinco mulheres tenham aceite testemunhar acerca das suas aventuras sexuais, nem sequer é muito impressionante. Acontece, no entanto, que o relato feito por mulheres de tais experiências é não só cada vez mais frequente, como atinge todos os domínios (da literatura à Internet), ganhando uma progressiva expressão num espaço tradicionalmente masculino. Isto não deixa de romper com algumas ideias-feitas e levantar certas questões:

Uma das ideias é que as mulheres anseiam por amor, enquanto os homens só ligam ao sexo. O que muitos destes relatos (reais ou fictícios) parecem mostrar é que, no mínimo, isto é uma ideia-feita.


Por outro lado, a revolução "feminista" parece ter desembocado numa verdade paradoxal: tornou, finalmente, como pretendia, os homens e as mulheres "iguais".

Não parece, além disso, que estejamos verdadeiramente perante uma nova modalidade de "gozo feminino", mas perante o triunfo generalizado do gozo "fálico", no que este encarna a "sexualidade". Prova disso, é o discurso "sexológico", cada vez mais difundido, de que as mulheres não só têm "direito" ao orgasmo, como têm igualmente "obrigação" de o ter, ou de os ter, custe o que custar.

É um pouco como a felicidade: de desejo, tornou-se obrigação. Claro quer isto gera novas fontes de angústia e mal-estar, visto que a "performance" sexual está constantemente a ser avaliada.

No entanto, se eu comecei por falar da importância do "testemunho", do "relato", é porque há aqui, porventura, algo mais para além do gozo "sexual". Com efeito, quer sejam escritos ou mostrados (por exemplo, através da Internet, em sítios e blogues diversos), a questão é sempre a mesma: não se trata puramente de "gozar" (no real), mas de "dar a ver", de "fazer ver" (no imaginário)
a um outro qualquer (reduzido a um puro olhar anónimo: quer seja do leitor ou do espectador) esse gozo que acaba por ser, fundamentalmente, "escópico".

É, ainda e smpre, o espectáculo do "olhar".

8.7.07

Cristianismo: perversão ou subversão


Na época em que predominam as espiritualidades exóticas e eclécticas (estilo new age), não deixa de ser paradoxal que um autor como Slavoj Zizek volte a insistir no carácter "subversivo" do cristianismo, ao lado das suas tendências "perversas".

A ideia geral (partilhada por Freud) é que o cristianismo é uma enorme máquina "repressiva", em particular da sexualidade. O paradoxo é que "quando a ideologia dominante nos manda gozar o sexo, não alimentar nenhum sentimento de culpa em relação a ele, pois não estamos limitados por nenhumas proibições cuja violação nos faria sentir culpados, há um preço a pagar por essa ausência de culpabilidade: a angústia" (cf. Zizek, A Marioneta e o Anão, Relógio D'Água, p. 70).

E se o cristianismo, com os seus "interditos", fosse não apenas um modo de nos poupar essa angústia, como, ainda por cima, constituísse um verdadeiro "aparelho de gozo"?

Como diz Zizek, citando Chesterton: "'o cristianismo é o único quadro possível para a liberdade pagã', o que significa precisamente que esse quadro - o quadro das proibições - é o único no interior do qual podemos fruir dos prazeres pagãos: o sentimento de culpa é uma falsificação que nos permite entregar-nos a esses prazeres. Quando este quadro desaparece, surge a angústia" (p. 71).

30.6.07

Globalização


A globalização, de que Portugal foi um dos pioneiros (ver revista "Actual", Expresso de 3o de Junho de 2007), é uma daquelas palavras que têm o condão de nos ofuscar. É verdade que ela tem os seus efeitos no quotidiano mais corriqueiro: por exemplo, apesar de continuarmos a usar a expressão "fruta da época", ela já não corresponde a nada, visto que a época da fruta, para quem vai ao hipermercado, é todo o ano. "A fruta da época" (como "o sol nasce" ou "Deus existe") anda mais devagar que o "real". O "real" chama-se economia global.

O correspondente ideológico da economia global é o "multiculturalismo", ou seja, o discurso da tolerância em relação ao Outro.

Mas seremos nós realmente "tolerantes" em relação ao Outro, ou seremos tolerantes apenas na medida em que ele se adapte ao nosso modelo (económico) e à nossa maneira de pensar, isto é, se transforme num pequeno outro igual a nós, consumidor dos mesmo produtos?

Uma tolerância levada ao extremo teria igualmente de aceitar o "gozo do Outro", no que este se revela, por vezes, como intolerável e obsceno (como demonstram, à exaustão, certas práticas abjectas, em particular sobre as mulheres, que tendem a persistir em muitos países).

A tolerância multiculturalista funciona como uma "tela encobridora" perante o real, impossível, do gozo do Outro.