25.10.05

De um amor que não fosse todo sexual



Nos Cem anos de psicanálise (cf. Pedro Luzes, ISPA, 2ª Edição, 2002.), livro apesar de tudo bastante completo, há pelo menos um nome em falta: Sílvio Lima. Com efeito, se considerarmos os diversos usos da psicanálise, não apenas na sua dimensão terapêutica, “dentro de muros”, por assim dizer, mas também “extra-muros”, no que é tradicionalmente designado, não sem algum equívoco e falta de clareza, como “psicanálise aplicada”, o nome de Sílvio Lima apresenta-se como incontornável. Na verdade, ele é um dos pioneiros, em Portugal, a par de Fernando Pessoa ou de João Gaspar Simões (Cf. Pedro Luzes, op. cit., pp. 197-216; José Martinho, Pessoa e a Psicanálise, Almedina, 2001, pp. 11- 29), na “aplicação” – ou na crítica de uma tal aplicação – da psicanálise a outros fenómenos que não o sintoma (neurótico ou psicótico).

Com a intenção de se candidatar a professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Sílvio Lima elabora, ao longo de seis anos de trabalho, uma dissertação para o concurso subordinada ao tema: O Amor Místico – Noção e valor da experiência religiosa (Obras Completas de Sílvio Lima, Vol. I, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002). Nesta obra, único volume publicado de três inicialmente previstos, o autor interroga-se sobre a natureza do fenómeno religioso em geral e, mais particularmente, sobre uma das suas manifestações: o “amor místico”. Na medida em que Deus, o Verbo, é amor – como se diz nos textos sagrados – poder-se-á identificar ou reduzir o amor religioso ao amor sexual, como pensam alguns? Eis o problema a que esta investigação pretende dar resposta.

As diversas perspectivas sobre o assunto são, ao longo da obra, reduzidas fundamentalmente a duas tendências interpretativas do fenómeno místico-religioso: uma que tende a “sexualizá-lo” (apresentada sob o nome genérico de “teoria erotogénica do misticismo”), outra, “dessexualizá-lo”. Freud e a psicanálise são convocados como fazendo parte da primeira tendência. Derivará o amor religioso do amor sexual por “recalcamento”, “transferência” ou “sublimação”, ou, pelo contrário, terão ambos os fenómenos raízes diferentes? Sílvio Lima acabará por responder cabalmente, no que é a tese nuclear da obra, que “o fenómeno religioso não se reduz ao fenómeno sexual” (op. cit., p. 905).

Daqui se segue uma crítica da “teoria” freudiana, não porque esta seja desprovida de fecundidade em certos aspectos, mas antes pelo seu carácter pretensamente redutor do fenómeno em estudo, bem como do seu exagero interpretativo sobre o mesmo. A posição de Sílvio Lima sobre Freud e a psicanálise é, neste aspecto, ambígua (fazendo lembrar, por exemplo, as posições de Fernando Pessoa ou Wittgenstein): ao mesmo tempo que critica os seus “exageros” ou o carácter monolítico das suas interpretações, perante uma realidade viva e complexa que não se deixa reduzir facilmente a fórmulas únicas e gerais, pensa igualmente que ela pode lançar novas e inesperadas luzes sobre alguns aspectos do fenómeno em questão. Aliás, como ele próprio diz, “uma coisa é Freud, outra, o freudismo” (p. 722), querendo com isso sublinhar que os “exageros interpretativos” se devem mais aos seus seguidores do que ao mestre de Viena, ele próprio.

Contra esta tendência de encerrar todo o processo numa “fórmula geral única” (pansexualismo) – mesmo se temos a sensação de que Sílvio Lima não se libertou por completo da associação vulgar, pré-freudiana, entre sexualidade e genitalidade –, o autor propõe que nem todo o fenómeno religioso, e místico em particular, é sexual, sendo este apenas “um pequeno distrito no vasto império do sensual” (p. 745), e, da mesma forma, “se todo o prazer sexual é prazer, nem todo o prazer é prazer sexual.” (p. 581).

Não deixa de ser interessante que, algumas décadas mais tarde (no início dos anos setenta) Lacan, interessando-se pelo fenómeno místico de uma forma bem diversa da de Freud, venha dizer igualmente, embora segundo os seus próprios termos, que o gozo (místico) não é todo sexual (cf. Séminaire Encore, 1972-1973). Eis o que dá, retroactivamente, um novo interesse a esta obra dos primórdios do século passado.

22.10.05

De um país que não fosse o da aparência


Sem ser propriamente catastrofista ou optimista, como o autor sublinha nas “notas finais”, o mais recente livro de José Gil (Portugal, hoje - o Medo de Existir, Relógio d'Água) propondo-se abordar um tema algo “indefinido” e transversal a diversas disciplinas, é de uma extrema lucidez acerca do nosso país. Nessa medida, o tom que ele imprime à forma como conclui um dos capítulos, dizendo abertamente que “Portugal arrisca-se a desaparecer” (cf pp. 71-73), mais do que alarmista, soa lógico e consequente com todo o resto da sua argumentação.

Na base desta argumentação, há uma tese essencial: Portugal é o país da “não-inscrição”. Isto não significa que Portugal, nestes últimos anos, não tenha feito um esforço para se “inscrever”, nomeadamente na Europa; mas tal “inscrição” é apenas imaginária, aparente, e aquilo de que se trata aqui é circunscrever “algo” que não seja, por assim dizer, do registo da aparência. Algo “real”, que “marque” o real e o transforme produtivamente. Pelo contrário, segundo o autor, em Portugal nada tem existência real, nada se inscreve, nada acontece. Não obstante, cultiva-se a imagem (o narcisismo), sobretudo para fora, para os outros, os estrangeiros; fala-se muito, mas é uma fala “esvaziada”; escreve-se e legisla-se sobre quase tudo, talvez porque nada se “inscreve” realmente. Há, assim, uma espécie de “nevoeiro” ou “sombra branca” (em grande medida inconscientes) a cegar o desejo e a tolher a acção.

Nesta incursão pelo “nevoeiro” que nos tolda e paralisa, e apesar da sugestão “mítica” do termo, não se trata aqui de uma nova “psicanálise mítica” (Eduardo Lourenço) sobre Portugal, ainda que, para o bem ou para o mal, a psicanálise seja uma das referências constantes do autor ao longo deste “ensaio”. Sobretudo alguns nomes: Freud, Ferenczi, Nicolas Abraham, Maria Torok, e algumas noções: “inconsciente”, “trauma psíquico”, “cripta”, etc. O que mostra, de algum modo, a produtividade dos conceitos psicanalíticos mesmo para “além dos muros” da psicanálise propriamente dita.

Mas o que é uma “inscrição”? O próprio autor faz a pergunta (p. 48) e dá-nos um conjunto de elementos que nos ajudam a situar a resposta. Antes de mais, há que fazer a diferença entre as “boas” e as “más” inscrições”, ou seja, as que aumentam o poder de vida e as que o destroem. Depois, convém fazer a diferença entre três registos (real, imaginário e simbólico) segundo os quais podemos enquadrar a questão. De acordo com o autor, não há inscrição imaginária e a inscrição simbólica não tem um poder transformador, pois não faz mais do que continuar a realidade já construída. Sendo assim, a verdadeira ou “boa” inscrição é, na sua essência, um acontecimento “real”.

É aqui, talvez, em meu entender, que a argumentação de José Gil é mais frágil. Na verdade, se, por um lado, ele diz que a inscrição simbólica (numa clara, se bem que não explícita, alusão à psicanálise de orientação lacaniana) “não faz mais do que continuar a realidade já construída” (pp. 48-49), por outro, não deixa de reconhecer e sublinhar que a fala representa uma “condição essencial da inscrição” (p. 54). Segundo o exemplo que ele próprio dá, uma mãe pode investir toda a sua ternura no acto de amamentar um bebé, mas para que esse acto se inscreva, tanto nela como no bebé, é preciso que ela lhe fale enquanto o amamenta. Como se vê pelo exemplo, a fala, aqui, não é mero veículo de uma inscrição prévia (digamos, real), mas a “condição” para que essa inscrição (real) se torne possível e aconteça efectivamente. Percebendo-se, embora, que o autor queira insistir na natureza “real” do fenómeno (e não “aparente”, segundo um possível entendimento do “imaginário” e do “simbólico”), também seria importante esclarecer, para que não fique a sensação de um certo “nevoeiro conceptual”, que o “real” (pelo menos em Lacan) não se confunde com a “realidade”, tal como o “imaginário” não se confunde com a “imagem” e o “simbólico”, se bem que a torne possível, não se confunde com o “esvaziamento da palavra”, de que fala o autor (p. 57).

Prosseguindo: o que se inscreve (realmente) é fonte de potência, de vida, desejo e transformação “real”; o que não se inscreve ou inscreve “mal”, repete-se, por exemplo sob a forma de medo; um medo como efeito da não inscrição, mas também como causa, como “estratégia para não inscrever” (p. 78). É nessa medida que ele, perdido o objecto que o causa, porque não inscrito, se torna difuso, sem objecto (apesar da definição de Freud, que lhe dava um objecto, diferentemente da angústia) e se transforma, segundo a expressão do autor, que dá subtítulo a este ensaio, num “medo de existir”.

Como causa próxima deste “medo”, podemos apontar o “salazarismo” (de resto, não é a primeira vez que o autor o revisita), mas a novidade deste livro está em supor que as causas podem vir de mais longe (cf. p. 134), de uma espécie de “trauma inaugural”, reactivado através da história, de que o “salazarismo” seria (apenas) um dos pontos culminantes. Esse trauma inaugural, segundo o autor, é o próprio “trauma da não-inscrição” ou a “não-inscrição que se torna trauma”. Isto quer dizer, finalmente, que não é este ou aquele acontecimento em particular que não se inscrevem, mas a própria existência, a não inscrição da existência como tal.

Resta a pergunta: porque é que em nós, talvez mais do que nos outros (segundo o tom geral do livro) se cristalizou este “medo de existir”? Uma resposta, não toda, é porque houve, na nossa história, acontecimentos, contingências ou vicissitudes, de que o salazarismo é o exemplo mais recente e ainda vivo, se bem que imaginária, simbólica e realmente “mal inscrito”.

16.10.05

A intradução automática

Não consigo deixar de rir - o que afinal, dizem alguns, é o melhor remédio - quando tento usar um desses programas que ostentam o pomposo nome de "tradutor automático".

Quanto menos "clara" e "objectiva" é a construção de uma frase, do ponto de vista "gramatical", mais dá para rir com o resultado.

Talvez funcione bem numa linguagem que ninguém fale, em que não haja deslize, escorregadela entre o significante e o significado, equívoco...

Só que essa é a "língua" dos mortos e não dos vivos, pois estes não páram de se equivocar ou trair, dizendo sempre um pouco mais ou um pouco menos do que querem dizer.

Uma "linguagem" que fosse completamente despida de equívoco seria integralmente "traduzível", mas não diria nada de verdadeiramente relevante no que ao humano concerne.