11.3.05

Homem&mulher


Allen Jones, Homem Mulher, 1963

O último número da revista Visão (de 10 a 16 de Março de 2005) é dedicado, entre outras coisas, à re-visão da matéria dada sobre a velha guerra dos sexos: quem tem o cérebro maior, é mais inteligente ou dotado? Se estivéssemos a falar de telemóveis, a questão seria diferente: quem o tem mais pequeno?

Num tempo em que se pugna pela igualdade, não deixa de ser interessante colocar a tónica na diferença. Para o bem e para o mal, homens e mulheres são diferentes, é o que se pode concluir.

Além do mais, essa diferença parece ter uma base científica, neurológica: o que lhe dá um selo de garantia. É como o rótulo nos vinhos: denominação de origem controlada. O Zé povinho anda a dizer isto desde o princípio dos tempos, mas só agora foi possível uma certificação.

Se o tamanho conta, de alguma forma, também é verdade que o mais decisivo está no desempenho, daí que ter uns milímetros a mais disto ou daquilo não signifique grande coisa só por si. Lá diz o povo...

O mesmo se pode dizer da base neurológica: devemos contar com ela da mesma forma que devemos, igualmente, contar com as expectativas, a sugestão, o desejo e as exigências do Outro, ao qual nós estamos suspensos mesmo antes de virmos ao mundo.

Finalmente, dizer "homens" e "mulheres" não passa de uma generalização. Cada caso é um caso e, mais do que isso - parafraseando Nietzsche - o que são cada homem e cada mulher senão uma "dissonância feita criatura humana"?...

Mesmo se não parece haver dúvidas quanto à existência de um lado homem e de um lado mulher.

Má temática do amor


A. Blomberg, Exposição das Artes industriais no Parque Frisens, Stockholm, 1909

Recentemente, o título de capa de uma revista (Focus, nº 282 de 9 a 15 de Março) chamou-me a atenção: matemática do amor. Comprei a revista, pois o título prometia.

Lá dentro, no meio de um chorrilho de banalidades, faz-se alusão a uma professora de matemática inglesa, Clio Cresswell, que acredita, segundo a tese defendida no seu livro Matemática e Sexo que é possível traduzir o amor em fórmulas contas e equações. Se alguém pretendesse argumentar que isto é coisa de mulheres, repare-se na grande bojarda de Sergio Rinaldi, um outro matemático, homem: quanto mais atraente uma pessoa for, maior é a possibilidade de ser amado. Eva Mendes, a nova bomba sexy de Hollywood, não teria dito melhor. É caso para dizer: ser matemático não livra ninguém da imbecilidade.

A ciência moderna nasceu de uma des-sexualização mundo: em vez de procurar casar a forma e a matéria (Aristóteles) ou o micro e o macrocosmos, Galileu propôs que a natureza não era um sistema de correspondências ou afinidades sexuais, mas antes um livro escrito em caracteres matemáticos. Daí em diante, Eros & companhia ficaram por conta do génio poético, enquanto, do outro lado, crescia o rigor frio, por vezes gélido, da ciência.

O que é novo nesta história é a tentativa (a crença?) de que é possível casar ciência e poesia, matemática e amor. Não deixa de ser aliciante uma tal hipótese: chegar a escrever o "matema" do amor, sem, ao mesmo tempo, lhe destruir a poesia (o mitema).

Por mais aliciante que seja uma tal hipótese, ela é, no fundo, apenas um sinal dos tempos que correm e do paradigma que o domina: nenhum recanto da vida pode escapar ao império da ciência, nem mesmo o amor.

Com isso, porém, a ciência tende inevitavelmente a ultrapassar os seus limites e a escorregar facilmente para o "cientismo" (que já não é a ciência, mas filosofia: má filosofia), caindo no domínio da ilusão e da impostura.

Mas, ao mesmo tempo, ela revela - porque não! - um desejo secreto, inconfessado que porventura (ainda) a habita: conseguir escrever a fórmula (o matema) da proporção sexual: a tal que Lacan dizia não cessar de não se escrever.

3.3.05

Depressão


Bas Jan Ader, Estou Demasiado Triste para To Dizer, 1970

Segundo o último relatório da ONU, Portugal é o país da Europa onde é mais elevada a taxa de crescimento e consumo de fármacos anti-depressivos e afins, apenas superado pela Irlanda. Nalguma coisa tínhamos de ser dos primeiros!

De forma oportuna, como é seu hábito, a TSF apressou-se a dar a palavra aos ouvintes, médicos e alguns psis, para, de viva voz e em nome próprio, cada um dizer o que pensa do assunto. Se não tivesse outro mérito, o Fórum da TSF valeria por isto: enquanto se fala, não se consome!

Muitas foram as razões indicadas para explicar o fenómeno: a situação económica do país e o seu reflexo na vida das pessoas, com a consequente falta de auto-estima; a receita "ilegal" de medicamentos; a pressão social que obriga, segundo uma espécie de imperativo de gozo (como diria Lacan, se tivesse participado no Fórum) as pessoas a ser felizes a todo o preço, custe o que custar, e a estar alegres o tempo inteiro, como se o direito a estar triste tivesse sido pura e simplesmente banido do simbólico; enfim, a precipitação dos próprios médicos que, sem tempo para escutar o sintoma, se apressam a mandar calar o doente: tome lá e cale-se!

Gostava de contribuir para este debate, recolocando as coisas sob a forma de uma altenativa: o logos ou o pharmacon, a fala ou o fármaco? Ou então: não será a fala, em certos casos, o melhor dos fármacos?

Talvez não seja desprezível, nesta história, o facto de que em Portugal (contrariamente ao que se passa em muitos outros países) Freud e os seus seguidores "psi" - sobretudo os que realçaram os poderes da palavra na abordagem e tratamento do sintoma - sejam tão raros e marginalizados.

O paradoxo (como assinala António Damásio, algures, no Erro de Descartes) é que a medicina evoluiu extraordinariamente do ponto de vista científico e tecnológico nos últimos anos, mas estagnou, se não até regrediu, do ponto de vista "humano", isto é, quando se trata não apenas de receitar um fármaco, mas de escutar o sujeito na singularidade do seu sintoma. Como se alguém dissesse, quando o sujeito vai abrir a boca para falar, explicando as suas razões "subjectivas", singulares: cale a boca! Ou então: coma e cale!

Com isso, em vez de abrir a garrafa, lançada ao mar algures, e ler a mensagem endereçada que esta contém, enterra-se ainda mais a rolha e relança-se ao mar.