30.7.11

A importância do "mas"

Perante o acto monstruoso cometido por Anders Breivik, a palavra que vem imediatamente à cabeça é: "Ele é louco!".

E talvez seja, mesmo. A forma como ele "racionaliza" o acto no extenso Manifesto 2083: Uma declaração de independência europeia parece apontar, efectivamente, nesse sentido. Ver-se-á, nos próximos tempos, se tal se confirma.

Há, porém, um "mas". Talvez seja esta, aliás, a palavra mais ouvida por estes dias.

"Ele não é simplesmente um louco mas uma personalidade fanática e obsessiva" (advogado de Breivik); foram "crimes atrozes, mas necessários" (o próprio Breivik); "o Ocidente não entende agora, mas certamente me agradecerá um dia"...

Palavras de alguém que se reconhece como "responsável, mas inocente".

Desde Sócrates, tendemos a remeter o "mal" para a "ignorância" (do bem) ou para a "loucura"; mas a história está repleta de exemplos (e este não é o primeiro nem será muito provavelmente o último) que nos apontam para outra coisa bem mais assustadora...

9.7.11

Uma nova sofística

Num tempo em que a palavra tinha a palavra, a velha sofistica - praticada pelos antigos sofistas da Grécia, nem de propósito - era baseada na "eloquência", na arte de bem dizer.

Num tempo em que a palavra já não tem a palavra, nem cotação na bolsa de valores, qual é a base da nova sofística?

A nova sofistica baseia-se no cálculo, no número, tal como a velha se baseava no logos, na arte da palavra.

Espero que o novo ministro da Educação, que tanto critica o "eduquês" (como fala vazia) não se esqueça de que há também, e cada vez mais, o "calculês": a nova retórica da era da ciência e do capitalismo.

Qual dos dois (o eduquês ou o calculês) podem ter efeitos mais "perversos"?

Nota de rodapé: Houve uma agência de rating que, ainda recentemente, fez os SEUS cálculos e chegou à bela conclusão de que Portugal era lixo. De facto, a sardinha não tem estado muito boa, este ano, mas não era razão para tanto! Aliás, desconheço se a classificação de "lixo", que já chegou à Madeira e aos Açores, também chegou à sardinha...

8.7.11

Querem ser avaliados?

Visto que o único "argumento de autoridade" que hoje nos resta é a ciência, há muita bizarria que cresce à sua sombra.

Em 2004, quando os ventos da avaliação começaram a soprar pelas bandas da psicanálise (ainda não se conhecia na altura a amplitude e vastidão dos seus estragos), Jacques-Alain Miller, com uma finura e acutilância assinaláveis, dizia o seguinte: "Sob o pretexto de que há medida, que se afere (étalonne), numera (chiffre), compara, etc, imagina-se que é científico. Isto não tem nada de científico e os melhores avaliadores, os mais inteligentes, que se defrontam com o problema, sabem perfeitamente que não se trata de uma ciência. Não é porque há cálculo que há ciência." (Voulez-vous être évalué?, Éditions Grasset et Fasquelle, p. 41).

Se a avaliação não é uma ciência, o que é então?

A resposta é dada logo no início, no subtítulo: uma "máquina de impostura" (machine d'imposture). Voilà!

Ainda assim, como se vê a olhos vistos, com efeitos reais incalculáveis...

6.7.11

Travessia de um fantasma?

Há uma "fantasia" que ensombra de modo recorrente os portugueses: serem a cauda da Europa.
A "cauda", no sentido mais grosseiro do termo, é o ânus: a abertura exterior do tubo digestivo, na extremidade do recto, pela qual se expelem os excrementos, ou seja, aquilo que deve ser excluído do corpo.
Ao cortar o rating de Portugal para lixo, a Moody's torna-se um parceiro privilegiado dos portugueses na realização deste "fantasma fundamental": ela perfaz, no real - e não digo realidade porque esta sofre um abanão, um verdadeiro de tremor de terra - o que os portugueses apenas se limitavam a sonhar.

As empresas de rating são um bicho curioso: fazem tremer os países, suar os políticos e ficar "à rasca" muitos de nós, como se um deus ao contrário tivesse aproveitado a "morte de Deus" para subir ao palco e tomar conta da cena.

Freud não tinha razão. Ele acreditava que a religião sucumbiria frente à ciência. O que vemos nós, porém?

O futuro do passado é hoje. "O futuro de uma ilusão" - segundo o modo como Freud caracterizava a religião - mostra-se hoje como um "presente" envenenado. Não está hoje a religião onde menos esperaríamos?

O que vemos quando se fala dos mercados como se eles pudessem ser sensatos, complacentes? Quando é a fé, a confiança nos mercados o que se pretende recuperar? Quando se diz, humilhado e ofendido, que é preciso fazer tudo para acalmar os mercados?

Crê-se que é para combater esta "fé" nos mercados - algo que soa ainda demasiado religioso - que se dá tanto crédito - um crédito desmesurado, como dizem alguns - às empresas de rating, pois estas parecem funcionar por milagre (o milagre científico), quase sem  mão humana, guiadas não pelo espírito santo, mas antes pelo "espírito científico", isto é, pela letra, pela fórmula, pelo cálculo matemático.

Ainda assim, no mais puro "deserto do real", há uma sarça ardente que continua a queimar: a fé, a confiança, a crença de que a "razão" (numérica) é em si mesma, deixada a si mesma, racional. Talvez a vacilação da "política", dos políticos europeus se deva, em parte, ao receio de abandonar esta fé, de transpor o limiar que vai da "crença" ao "lixo".

Mas não será preciso dar esse passo para agir sem receio de cair na merda? Pois se já caímos...