21.7.10

Mais real que a própria realidade

Tendemos ainda, porventura, a pensar a Internet como um apêndice ou uma espécie de anexo ao mundo real. Dizemos "virtual" como quem diz "aparente". Uma espécie de véu encobrindo a nudez da própria coisa. Um novo manto de Noé.

E se, não obstante, o "virtual" fosse tão ou mais "real" que a própria realidade que pisamos todos os dias com os nossos pés e vestimos com a nossa fantasia? E se a Internet fosse, hoje, a divisão principal da casa e a realidade - lá fora - um simples anexo?

Fala-se já de novas patologias ligadas ao abuso da Internet, mas também de (novas) terapias que recorrem cada vez mais ao seu uso.

X. fica angustiado cada vez que pensa abrir o email após um fim de semana "desligado"; Y não consegue deixar de pensar no que haverá no email de urgente para resolver, mesmo quando está "desligado". Z. fica inibido quando abre o email e se depara com um sem número de coisas urgentes para resolver...ontem.

Exemplos de novas formas de inibição, sintoma e angústia na era da Internet.

Não é Freud, porventura, que carece de um upgrade, mas a Internet que o torna cada vez mais updated. 

18.7.10

Sugestão para férias, por que não?


Quem preferir outra coisa, poderá eventualmente aproveitar a ocasião para dar uma espreitadela em Freud, o ídolo! Terá, com certeza, boas surpresas! Proponho, por exemplo, Mal-estar na civilização, um texto já com muitos anos, mas com pouquíssimos cabelos brancos!

16.7.10

Já era previsível

Enquanto Michel Onfray ataca a psicanálise "freudiana" como se esta fosse uma religião travestida de ciência, a "verdadeira" religião - católica, apostólica, romana - propõe-se atacar o problema que a tem afligido ultimamente: a pedofilia.

Ao mesmo tempo, aproveita para reafirmar as suas convicções mais atávicas e pôr em dia o seu catálogo de "pecados". E pecado "grave" não é somente a pedofilia - não é sobretudo a pedofilia - mas a  ordenação das mulheres.

Nada de novo, portanto, debaixo do sol, como diria o Eclesiastes. Já era previsível. Afinal, ele sabe, como intelectual que é - falo naturalmente de Bento XVI - que é o cimento unissexual que tem servido para ligar entre si, para cimentar, os tijolos da instituição. É a exclusão do "outro" sexo (que não o masculino) o que tem assegurado o fortalecimento dos laços entre os "irmãos", unidos pelo mesmo "ideal".

Ele sabe que no dia em que as mulheres forem abertamente admitidas, em pé de igualdade, mas com a sua diferença no seio da igreja, esta "comunidade de irmãos" ficará seriamente em risco e surgirá, sem dúvida, algo de "imprevisível" no seio da igreja.

Mas não é essa, precisamente, a beleza da coisa: a sua imprevisibilidade?

A polémica vai continuar

Afinal de contas, Freud está vivo, continua vivo. Os mortos não são, em princípio, atacados. A não ser por vandalismo.

Quem o prova é o filósofo Michel Onfray: um dos homens do momento, pelo menos em França, pois em Portugal, como dizia há pouco tempo Eduardo Lourenço, nem uma palavra sobre o assunto. O significante "crise" é por aqui hegemónico, não se falando praticamente de outra coisa. A nossa pobreza não é apenas económico-financeira, por certo.

No seu último livro - Le Crépuscule d'une idole. L'affabulation fredienne - ele aplica a Freud o método que já aplicara à história da filosofia: virar do avesso, desmontar, destituir...até fazer ressaltar os podres de um sistema, de uma teoria, de uma "lenda".

Michel Onfray é um filósofo para quem a "biografia" não é mera paisagem ou música de fundo. No seu livro "Puissance d'exister", por exemplo, ele faz anteceder as suas reflexões de uma extensa nota autobiográfica onde mostra como a filosofia que se faz não se pode desligar da pessoa que se é, que se foi, que se veio a ser.

Sob o desejo de "cientificidade" da psicanálise freudiana, ele descobre afinal uma "auto-biografia" do seu autor, uma (má) filosofia... daquele que tanto quisera demarcar-se desta última.

Dizia Lacan que é aquele que odeia - e não o que ama - que melhor sabe ler. Percebe-se que não é propriamente o amor aquilo que move Michel Onfray. Por isso, há esperança de que ele saiba ler...todos aqueles que destitui, sejam os velhos filósofos ou o velho Freud.

Mas também é verdade - sendo claro, como diz o próprio Onfray, que a (auto)biografia conta e que o ódio é uma das marcas que ficaram indelevelmente gravadas da sua passagem pelo famoso orfanato da infância, dirigido por salesianos, mesmo que ele diga e repita que não guarda qualquer ressentimento - que faz sentido perguntar, como é o caso de Elisabeth Roudinesco, "mas porquê tanto ódio"?

Se é verdade que o ódio - como mostrou Freud - não é propriamente o contrário do amor (Cf. Pulsões e Suas Vicissitudes), pois o contrário deste é a indiferença, sabemos ao menos que, por enquanto, Freud não é indiferente ao filósofo Michel Onfray.

E a coisa vai, por isso, continuar a mexer, a dar que falar.

14.7.10

Escrever torto por linhas direitas

Toda a gente esperava qualquer coisa do Cristiano Ronaldo - um milagre, sei lá! - e, por isso, teria mesmo de haver qualquer coisa.

Pedia-se à bola que entrasse na baliza adversária, mas esta teimava em acertar no poste, na trave ou em passar ao largo (salvo uma rara, acrobática e jocosa excepção).

Pedia-se ao Ronaldo que demonstrasse em campo - sobretudo em campo - "a potência de existir" (como diria o filósofo hedonista Michel Onfray) que ele aparenta - pelo menos aparenta - demonstrar fora dele.

Como toda a gente pedia muito qualquer coisa e o Cristiano não gosta de defraudar as expectativas, acabou por mostrar, mais uma vez, aquilo de que é capaz (não fosse ele considerado, ainda, um dos melhores "jogadores" do mundo!). E o que fez, então, Cristiano Ronaldo?

Cuspiu para a câmara!

Cuspiu uma indirecta para o seleccionador!

E last but not least cuspiu para..., quer dizer, anunciou ao mundo que é finalmente pai de uma criança.

Eis o golo que faltava! Não importa se é fora do campo, pois é aí mesmo que o nosso Cristiano Ronaldo tem marcado mais pontos!

12.7.10

Escrever direito por linhas tortas

Para além do tão famigerado polvo, fica deste mundial a queixa persistente em relação à bola (Jabulani) fabricada pela Adidas para o mesmo: que não era previsível, que fugia das mãos dos guarda-redes, enfim, que fazia lembrar (houve quem dissesse!) uma bola comprada no supermercado.

Contudo, após um exame levado a cabo por cientistas da NASA, chegou-se à conclusão que a tão criticada bola era, afinal, "perfeita". A mais perfeita que alguma vez se produzira. Uma "esfera quase perfeita" que, sem dúvida, faria as delícias de Aristóteles e c.ª, se por acaso fossem vivos e gostassem de futebol. A sua imprevisibilidade resulta, segundo o estudo referido, do seu grau de perfeição. A uma certa velocidade, ela torna-se imprevisível.

Quando sonhamos com uma coisa perfeita tendemos a imaginá-la " como algo que não salta das mãos, que se cola ao pé e, sobretudo, que desenha trajectórias previsíveis, ou seja, que escreve direito por linhas direitas. Mas não é bem mais incrível que a perfeição máxima contenha, afinal, essa imponderabilidade, esse impossível de prever? Que quanto mais perfeita é uma coisa, mais imprevisível se torna?

Pelo menos a esta hora, quando ainda celebram a vitória, os nuestros hermanos  poderão dizer: ela escreveu direito por linhas tortas!

9.7.10

Uma boa mãe

A empresa-mãe" não gostou que a versão portuguesa da revista Playboy tivesse o descaramento de brincar com coisas sérias na capa do seu último número, ao fazer do "Evangelho Segundo Jesus Cristo" (o polémico romance de Saramago) a cama onde um homem vestido como Jesus estava junto de uma mulher nua.

Parece que a intenção da revista era homenagear Saramago; contudo, a empresa-mãe - como boa mãe que é - não poderia permitir um tal escândalo. Afinal, não se trata  de uma mãe qualquer!

Diz-se que a revista pode fechar por causa da brincadeira. E não é para menos! De facto, pôr lado a lado Jesus e mulheres nuas ainda vá que não vá - e não seria inédito, aliás -, agora, meter lá no meio o nome de Saramago, o desterrado, é que não!

8.7.10

O problema não é que ele acerte, mas que não consiga duvidar

Diferentemente do polvo, que "acerta" tudo (o que é suposto acertar) e não consta que duvide, nós duvidamos. O ser falante duvida.

O mundo "líquido", dominado pela incerteza e pelo risco, está aí para ajudar. A civilização torna o sujeito cada vez mais histérico (insatisfeito) e, simultaneamente, mais obsessivo (sujeito à dúvida permanente).

Nesse contexto, faz sentido retornar à questão da dúvida. É o que acontece com o último número da revista Le Magazine Littéraire (Nº 499, Julho-Agosto 2010), consagrada ao tema.

Contrariamente a Descartes, que via na dúvida apenas um caminho provisório para se chegar a uma certeza indubitável, absoluta e definitiva, sendo esta, por assim dizer, a cura para aquela, as coisas podem ser vistas de outro modo: afinal - como se diz na revista citada - "são as certezas que nos enlouquecem" e não a "dúvida".

Na página de abertura do dossiê (48), pode ler-se esta bela frase de kant: "Mede-se a inteligência de um indivíduo pela quantidade de incertezas que ele é capaz de suportar."

Daí que alguns - como o nosso Pessoa - pudessem dizer: duvido, logo escrevo.

Que eu saiba, nem os mortos nem os animais duvidam. Ou os deuses. Duvidar é um privilégio dos seres seres falantes. Para o seu bem e para o seu mal.

Ou não será?

7.7.10

A voz do polvo

Não deixa de ser irónico: quando os políticos não se entendem, os economistas não acertam, a crise não ata nem desata, a incerteza alastra, há um polvo que "adivinha" os resultados do mundial.

"Adivinhou" que a Espanha ganhava à Alemanha, e não é que ganhou mesmo?

Por isso, meus caros, sigamos o polvo!

Já dizia o nosso querido e saudoso Zeza Afonso: O "polvo" é quem mais ordena!

5.7.10

Elogio da inutilidade

Um grupo de trabalho (ou vários?) prepara-se no Ministério da Educação para mais uma...(adivinhe-se!) reforma educativa.

Num primeiro relance, apercebo-me - é só um exemplo! - que a "filosofia" deparece do 10º ano.

A coisa sempre fez muita comichão a alguns, a muitos. A começar, para os alunos (e não foram outrora os que agora nos governam também alunos?): para que é que isso serve, perguntam eles?

Houve um tempo em que isso serviu para expandir a cultura humanística, as humanidades, como se dizia. Na era da ciência e da "especialização" que ela implica, as próprias humanidades tendem a ser vistas como uma coisa estranha, atópica, sem lugar: algo que não sabemos exactamente como e onde arrumar.

Na verdade, a filosofia é apenas um exemplo. Há cada vez mais disciplinas, teorias e práticas que vão cair em desuso ou serão lançadas para o caixote das "inutilidades" a breve trecho. De resto humanidades rima com inutilidades.

Vem-me à memória - enquanto escrevo - um poema de Angelus Silesius:

"A rosa é sem porquê,
Floresce porque floresce,
Não cuida de si mesma,
Não pergunta se a vêem."

Não serão também as coisas "úteis" fundamente inúteis? Como sabê-lo se cada vez mais o questionamento, a capacidade e a liberdade de nos  interrogarmos será descartada porque não se encaixa nos critérios dos "especialistas"?

1.7.10

MAIS, AINDA

















Todas as semanas às 10:30 (salvo raríssimas excepções) o Pedro lá estava para dizer algo que é tão raro em Portugal: só vocês e Lacan conseguiriam fazer-me levantar da cama a estas horas! Ele sabia que o tempo lógico do desejo não se compadece com o tempo dos relógios.

Embora não soubesse por quanto tempo ainda poderia trabalhar connosco (mas quem sabe?),  tal não o impedia de querer sempre mais, ainda .

Durante quase um ano "praticámos" mais e ainda um texto difícil - mas extraordinário - de Jacques Lacan: Encore.

Ele queria despedir-se de nós, mas foi apanhado a meio da frase, ficando esta interrompida.

É por isso que ainda nos custa - todas as quarta-feiras, às 10:30 - olhar para o lugar, agora vazio - puro significante - que ele ocupava.

É para tornar esse vazio um pouco mais habitável que aqui se deixa uma foto do Pedro.