23.2.07

A passo de caranguejo

Será que a história avança, progressivamente, em direcção a um fim?
Hegel, por exemplo, acreditava nisso. O seu "discípulo" Fukuyama também. Segundo este, o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento ou "o fim da história" da humanidade, graças ao triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os demais sistemas e ideologias concorrentes.

Supor que a história chegou ao fim (ou tem um fim) pressupõe que há uma história; porém, nada é menos evidente. Há muitas histórias e a mesma história não é re-contada, tanto em termos colectivos como individuais, da mesma forma ou segundo a mesma versão. Podem fazer-se dois "filmes" da mesma história, contando, como faz Clint Eastwood, a versão americana e japonesa da mesma. É apenas um exemplo recente.

Por outro lado, talvez o que tenha chegado ao fim seja apenas uma certa "ideia" (ficcionada) sobre a história, a saber: que há uma história; ou que a história, a existir, caminha para a frente, linearmente; ou que há "acontecimentos" (macabros, por exemplo) que estão definitivamente arrumados, enterrados ou superados.
Pelo contrário, a história parece andar aos ziguezagues, às vezes para a frente, outras para trás, como se estivesse definitivamente ébria.

Há mesmo quem pense, como Umberto Eco, que parece que a História, cansada das confusões dos últimos dois mil anos, se está a enrolar em si própria, caminhando velozmente a passo de caranguejo.

Mas não será isto, como tem denunciado frequentemente Slavoj Zizek, ainda uma forma de "ideologia", do capitalismo liberal, supostamente "pós-ideológico", fazendo-nos crer que não há alternativa a não ser...baixar os braços?

15.2.07

A democracia como "fetiche"

"A democracia é hoje o fetiche político principal" (Zizek, Bem-Vindo ao Deserto do Real, p. 104).

Na verdade, quem ousa abertamente pô-la em causa, denunciar-lhe os limites ou as fragilidades?

Porém, ao mesmo tempo que o cidadão é chamado a participar democraticamente na vida da cidade (como foi, por exemplo, o referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez) o número daqueles que decidem não responder à chamada dá que pensar.

Dizer que é por simples comodismo (ainda que este seja também um factor a considerar), é talvez demasiado redutor.

Acontece que a democracia (que dá supostamente o poder de decisão ao povo) cresceu e expandiu-se ao mesmo tempo que um outro poder: o do capital. Hoje, quem governa não são os políticos, mas o capital, acéfalo e apátrida, eternamente deslocalizado. Os políticos são meros "funcionários" deste senhor todo poderoso.

A "democracia" tornou-se a sombra do "discurso do capitalista": ao mesmo tempo que se apagam todas as diferenças à luz da globalização, prega-se o evangelho da diferença democrática.

O que faz aqui sintoma é que há cada vez mais pessoas a descrer, ou a não acreditar, no poder da sua escolha, sabendo que é indiferente optar por A ou por B, quando ganha sempre C - o capital.

Visto que os políticos, sagazes, também sabem disso, aprendem a mentir descaradamente. A política tornou-se cada vez mais num exercício de cinismo.

O pior é que ainda não se inventou nada de (muito) melhor desde os gregos...

8.2.07

Um paradoxo

Há hoje um paradoxo difícil de entender: quanto mais elevado é o grau de realização objectiva da "tecnociência" (segundo o termo criado por Gilbet Hottois em finais dos anos 70 do século passado) maior é a sensação subjectiva da sua impotência para nos sossegar.

É como se a ciência, no intuito de elimiar o sujeito, tivesse produzido um estranho efeito de subjectivação: a "consciência" (muitas vezes desproporcinada) dos "riscos" que ela gera por cada nova solução que produz.

De tal forma é assim, que a revista "La Recherche" (nº 26 - Fevereiro-Abril-2007) dedicou integralmente um dossiê à consideração das ciências do ponto de vista dos riscos (Sciences à risque) que elas são capazes de gerar nos mais diversos domínios.

Não basta fechar a porta da frente ao sujeito se este acaba por entrar pela porta das traseiras!

3.2.07

Primeiro entranha-se, depois estranha-se

Há um filme de Sofia Coppola (Lost in Translation) em que uma das personagens (Charlotte), ao explicar o que faz na vida, diz que acabou o curso de Filosofia. Até aqui, tudo bem: entranha-se. O problema é que, em resposta, a outra personagem (Bob Harris) diz mais ou menos o seguinte: Ganha-se bom dinheiro com isso!

O que se entranha, primeiro, torna-se subitamente estranho: será que estamos a falar da mesma coisa? Ou então: que país é esse (Estados Unidos?) onde a filosofia dá bom dinheiro? Será isto uma simples joke?

A ideia é de tal forma estranha que é difícil imaginar uma revista de filosofia vendida por exemplo num quiosque, assim como se vendem muitas outras revistas de tudo e mais alguma coisa. Tudo e mais alguma coisa não contempla a filosofia.

O Estranho, mais uma vez, é que existe mesmo. Encontrei-a por acaso, um dia destes, num quiosque em Lisboa. Chama-se Filosofia Ciência & Vida.

Comprei-a. Era o nº 3. Descobri, entretanto, que havia outros números publicados. Estranhei o título da capa: A crise do amor - como amar sem sofrer, de Platão a Simone de Beauvoir. Que o amor faça sintoma é uma evidência; agora, que seja possível amar sem sofrer, parece um contra-senso à luz da matriz cortês que continua, de um modo ou de outro, a determinar o amor no ocidente, como mostrou muito bem Slavoj Zizek em "O amor cortês ou a mulher como a coisa" (Relógio D'Água, 2006, pp. 17-46).

Mais à frente, um artigo sobre Filosofia e Psicanálise. Na verdade, seria melhor dizer: fenomenologia e psicanálise.

Começo por me embrenhar no texto e entranhar (me) no tema. Depois, estranho. De psicanálise (melhor seria dizer: uns pózinhos de Freud muito mal digeridos) há muito pouca coisa. Pior que isso: quase todas as referências são vagas ou truncadas. Apenas dois exemplos:

"Freud criou uma explicação dinâmica da consciência para esclarecer como as imagens nela aparecem..." (p. 74)

"Ao contrário da psicanálise não se fala na fenomenologia de um acesso directo a eles ou de interpretá-los(os conteúdos psíquicos) - mas quem disse que a psicanálise faz isso? - mas de entender o sujeito, compreendê-lo - também não se pode dizer que a psicanálise tenha por objectivo entender ou compreender o sujeito - e oferecer clareza para que ele mesmo busque os seus caminhos na vida" (p. 77).

No fundo, o que o título promete não chega a cumprir. Em vez de um diálogo profícuo entre a filosofia e a psicanálise, o que temos é uma série de considerações baseadas na filosofia de K. Jaspers e, nomeadamente, na sua Psicopatologia Geral (1979) adapatada ao DSM-IV.

1.2.07

Pela boca morre o peixe

Não se percebe imediatamente a razão da polémica causada pelo dito do sr. ministro da Economia, Manuel Pinho, de visita à China. Que em Portugal os salários (ainda) são baixos é uma coisa que toda a gente sabe; onde está então o "erro" de Pinho ao dizer que um dos factores de atractividade para o investimento chinês no nosso país reside nos "baixos salários"?

Manuel Pinho limitou-se a dizer em voz alta o que uns preferem calar, outros falar baixinho e alguns nem sequer saber... que sabem. No fundo, o problema de Pinho é ser demasiado sincero e honesto. Chega até a ser cómico pela "ingenuidade" (política) que demonstra.

Faz lembrar aquele dito espirituoso que Freud conta no livro dedicado ao tema: alguém que critica o amigo por dizer que vai a tal sítio para que ele pense que está a mentir quando diz a verdade.

No fundo, ao dizer o que disse, o que pretendia Manuel Pinho é que os chineses o ouvissem como verdade enquanto esperava que os portugueses o escutassem como mentira; o problema é que os portugueses o escutaram como verdade (percebendo a denegação do ministro) e não é certo que os chineses não o oiçam como uma mentira.

Os portugueses ouviram o ministro "dizer a verdade a mentir".

Seria bom, para o ministro, que os chineses não concluíssem: "com a verdade me enganas". Mas é bem provável...