31.1.05

Animais atópicos

Dei por mim a pensar (o que procuro fazer cada vez menos) em animais atópicos.

O gato, por exemplo, é um animal atópico: sem lugar certo, dando-se a quem não o quer agarrar, escapulindo de quem o agarra.

Já o cão gosta de prender-se ao dono e ao lugar. É mais tópico (de topos) que o gato.

As mulheres são animais essencialmente atópicos. Não digo atípicos. Até o dr. Freud não sabia muito bem onde situá-las. E elas, sabem?

Se a sexualidade fosse animal (e talvez seja) seria, de certeza, um animal atópico: sem lugar e sítio definidos. Como o desejo: atópico, por excelência.

Juntar mulheres, gatos e sexualidade poderia dar um animal engraçado. Foi o que pensei.

Mas já Balthus o havia pensado primeiro. E como era um homem de acção, um pintor, não só o pensou como o fez.

Raparigas com gato. Entendam como quiserem!

O monstro de Tebas

De vez em quando é preciso virar o Édipo do avesso.

Descomplexar o Édipo.

Como todos sabem, foi o dr. Freud que complexou o édipo.

Em Sófocles, o criador do mito, o Édipo não é um tipo complexado, mas decidido na busca da verdade.

Havia em Tebas um monstro ao mesmo tempo assustador e curioso: propunha enigmas e devorava todos aqueles que não soubessem resolvê-los satisfatoriamente. Na ausência da palavra justa, era a pulsão oral (digamos assim, a posteriori) que tomava o seu lugar.

Édipo conseguiu resolver o enigma:

Qual é o ser que de manhã anda com quatro pés, ao meio dia com dois e à tardinha com três?

Resposta de Édipo: o homem.

Ao dizer bem, de forma ajustada, o que estava em causa, Édipo faz perecer o monstro que atormentava os tebanos.

Houve só um problema: Édipo não soube reconhecer-se no monstro de Tebas. Ao contrário de Flaubert, que soube reconhecer-se na mulher que criou, Madame Bovary, Édipo não foi capaz de ver que o homem do enigma era ele próprio.

Daí que tenha reagido mal quando Tirésias, o cego vidente, lhe fez ver a verdade, contra a sua vontade: és tu próprio o assassino que procuras.

Édipo não suporta a verdade e cega-se para não ver.

Agora é cego.

Já pode, ironicamente, ver a verdade.

Como um deus.

Entre o monstro (Édipo Rei) e o deus (Édipo em Colono) há, afinal, uma única superfície moebiana contínua.






Traumatizados da língua

"A única forma, parece-me, de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença".

A frase é do escritor António Lobo Antunes. Segundo Livro de Crónicas.

Há quem pense que a escrita é uma saúde; aqui afirma-se que ela é uma doença. Uma doença que não cessa de (se) escrever, de se passar por contágio

Paul Celan, um outro escritor e poeta, tinha da escrita uma ideia semelhante. Este filho de judeus de língua alemã, o mesmo que fizera Adorno mudar a opinião de que era bárbaro escrever um poema depois de Auschwitz, não só não se curou por meio da escrita (acabando por suicidar-se no Sena em Abril de 1970) como teve com esta uma relação, por assim dizer, doentia, concentracionária.

A língua alemã é para ele o lugar de um mau-encontro: instrumento ao mesmo tempo da vítima e do carrasco. Com efeito, os seus pais morreram num campo de concentração nazi e ele próprio passou algum tempo num deles. A morte é um um mestre que veio da alemanha (diz-se num poema), que fala alemão.

Os seus poemas são cada vez mais herméticos, fragmentários, desconjuntados, ilegíveis. A língua torna-se cada vez mais branca, silenciosa. Como se a nomeação do horror se tornasse, ela mesma, impossível de suportar. Como se houvessse o desejo inconfessado de acabar com a língua alemã, a língua dos assassinos. Na impossibilidade de acabar com a língua, o poeta acaba com o ser.

Mais recentemente, um outro poeta, Antonio Mega Ferreira, numa bela Caligrafia dos Prazeres, fala-nos de um sonho angustiante que tem na língua o seu protagonista, ainda que segundo uma outra perspectiva.

Conta ele que certo dia, em sonho, ao realizar uma complexa negociação em castelhano, língua ao mesmo tempo estranha e familiar, as coisas não lhe estavam a sair nada bem. Acorda, por instinto de defesa, e é assaltado por uma ideia angustiante: e se por uma qualquer razão não pudesse mais sair daquele cárcere linguístico para regressar à casa da língua materna?

A língua do escritor (como a língua de todos nós) é, simultaneamente, traumática e acolhedora, estranha e familiar, trama e trauma. Nascemos numa língua que não escolhemos; somos primeiro habitados por ela, antes de a tornarmos habitável.

Casa do ser, casa do não ser: lalangue.

A língua faz trama de nós.

Trama-nos.

Acolhe-nos.

Rejeita-nos.





A (in) (cons) ciência da felicidade

Da Visão (nome de revista) espera-se que tenha... visão.

Da ciência, espera-se que tenha...ciência.

Um ciência com visão é uma dádiva de Deus.

Vejamos então, resumidamente, qual o achado pretensamente científico do último número da Visão (27 de Janeiro a 2 de Fevereiro de 2005): que há uma ciência da felicidade.

Mentira, digo eu!

1. O conceito de felicidade não é unívoco nem tem valor universal. Por isso Kant, um dos tipos que mais remexeu nestas coisas, chegou a dizer que o nosso objectivo não é a felicidade, mas a dignidade: tornar-se digno de ser feliz.

2. A felicidade não faz história. Ninguém lê ou escreve histórias de felicidade. Bem, deve haver alguns, apesar de tudo; caso contrário, a Visão não teria investido tempo e dinheiro nesta área.

3. As únicas histórias felizes que nos comovem, isto é, que nos agitam, que mexem connosco, pondo-nos fora de nós são as que têm um fim abrupto, interrompidas precocemente por esta ou aquela fatalidade (nós, portugueses, adoramos a fatalidade!).

4. Eis porque Romeu e Julieta há-de continuar a fascinar gerações, mesmo se na inversa proporção dos leitores que realmente vão ler essa obra. Precisamos do sal da infelicidade para temperar a nossa existência.

5. É o barco que vai ao fundo (Titanic) que nos mantém a moral em cima, à flor das águas. É o martírio, a paixão, a catástrofe, a tragédia que nos dão ânimo (veja-se a avalanche de imagens, ditos, reportagens, entrevistas, comentários sobre aquele desastre ocorrido lá longe, aqui tão perto).

6. Pode haver, n0 fundo de nós, a fantasia da felicidade, mas é o sintoma in-feliz que resite, que dura, que não envelhece. Tudo serve para o alimentar. Por vezes, até a própria felicidade nos pode fazer infelizes. E o contrário também: extraímos muitas vezes da infelicidade um naco de felicidade.

7. O desejo de felicidade eterna é inconfessavelmente um desejo de morte: que o tempo páre!

8. A ciência da felicidade é uma impostura.





28.1.05

O jogo do "a murro"

O jogo consiste no seguinte: dois parceiros, face a face, de punhos fechados. A um dado sinal, e ao mesmo tempo que o adversário, cada jogador tem de abrir subitamente a mão, mostrando o número de dedos que desejar, ao mesmo tempo que diz um número de 0 a 10. Ganha aquele que disser um número igual à soma dos dedos mostrados por ambos.

Se o jogo for praticado junto a um muro, poder-se-á chamar-lhe: jogo do amuro.

Se for alguém que fale francês, pode dizer: jeu de la mourre.

Na língua que é a minha, proponho que se entenda a coisa à letra: jogo do a murro.

Este jogo pratica-se de punhos fechados.

Em qualquer lugar.

Quando menos se espera.

Quando o amor dá para o torto.

Amor e sexo

A canção é da Rita.

Uma ladainha sobre amor e sexo: amor é isto, sexo é aquilo.

A certa altura damos por nós a jogar o jogo: amor é isto, sexo é aquilo.

Amor veste o objecto; sexo, desveste-o.

Paula Rego dizia, numa entrevista recente, gostar de vestir os seus modelos. Eis uma declaração de amor.

Alcibíades faz, no Banquete de Platão, o elogio de Sócrates...vestido.

O amor é uma forma de embrulhar o objecto amado, tornando-o precioso.

Perguntavam antigamente os eruditos: por que há algo em vez de nada?

Resposta: porque há o amor.

O amor faz ex-sistir o nada.

Sexo e amor

O amor veste o objecto; o sexo, desveste-o.

A essência é a mesma; a poesia, diferente.

Amor é poesia.

Todo o que ama é poeta.

Talvez um mau poeta...

27.1.05

Grande embrulhada!


Christo Javacheff, Costa Embrulhada, 1969
Posted by Hello

Embrulha lá isto!

Não sei se o nome marca o destino do sujeito. Seria engraçado pensá-lo desta forma.Veja-se o exemplo de "Bacon", cuja arte é indesligável da "carne"; ou de Tàpies, a riscar constantemente na "parede"; ou de Pessoa, a "des-persona-lizar" o tempo todo...

Christo (Javacheff) tinha um sonho bastante comum: ser artista. Como não sabia o que fazer, pôs-se a sonhar. Se eu fosse "Cristo", faria milagres.

Cristo era um tipo que fazia milagres e foi embrulhado, quando morreu, num lençol: o santo sudário.

Christo acordou de repente do seu sonho - como se tivesse ressuscitado - e disse: achei a resposta. Vou embrulhar objectos.

Passou então a embrulhar todo o tipo de objectos que encontrava, sobretudo os mais vistosos: grandes pontes, monumentos e paisagens. O paradoxo era que, ao ocultá-los, os tornava visíveis. As pessoas reparavam agora neles.

E nele! Atraindo o olhar das pessoas para aqueles embrulhos (fazer embrulhos é uma prática, aliás, muito comum), Christo fazia-se olhar através deles.

Não é essa, afinal, a essência da arte: fazer-se olhar através dos objectos criados?


26.1.05

Imagem gritante


"Caminhava eu com dois amigos pela estrada, então o sol pôs-se; de repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Parei, apoiei-me no muro, inexplicavelmente cansado. Línguas de fogo e sangue estendiam-se sobre o fiorde preto-azulado. Os meus amigos continuavam a andar, enquanto eu ficava para trás tremendo de medo e senti o grito enorme, infinito da natureza" (Munch, O Grito, 1893)
Posted by Hello

Diferença entre a psicanálise e a filosofia

Uma das diferenças entre a psicanálise e a filosofia é a seguinte:

enquanto a filosofia tenta reabsorver a singularidade no universal (embora já ninguém acredite nisso, nem mesmo os filósofos: pois Hegel está morto, Marx também e por aí fora), a psicanálise visa o que há de mais singular e irredutível no sujeito falado e falante (o parlêtre, como diria Lacan).

A psicanálise - definição mínima - é uma prática da singularidade.

À pergunta kantiana "o que podemos esperar?", a psicanálise responde: podemos esperar que reste, no fim, a singularidade.

Diferença entre o poeta e o filósofo

A diferença entre o poeta e o filósofo é a seguinte:

o primeiro não sabe o que fazer da língua (fonte de problemas, de equívocos, de falácias); houve até quem tivesse proposto que a única tarefa da filosofia era livrar-se dos problemas gerados pela linguagem.

já o segundo, o poeta - poderia ser até a sua definição mínima - é o que sabe-fazer com a língua.

O poeta faz trama do trauma da língua que trama o filósofo.

Bem-dito seja, o poieta!

21.1.05

Imagens soltas

Os media têm-se encarregado de continuar, por outros meios, a devastação que o tsunami causou nos corpos e nas almas. Mas não é o fim do mundo. A excessiva proximidade turva a visão. Quando a tempestade deixar de ser notícia e tudo for relativizado, o que vai restar será apenas, talvez, um fragmento, uma frase ou imagem solta, como o o toro (não confundir com a figura topológica homónima), o tronco de árvore flutuando solitário no mar de destroços.

Uma imagem solta que me vem à memória é, por exemplo, a daquela mãe que ficou petrificada no seu grito mudo quando foi apanhada pela câmara fotográfica em pleno êxtase da dor, defronte do seu filho morto, nos braços do pai.

O que é mais gritante nesta imagem é a sua mudez, a contrastar com o excesso de ruído mediático: um grito tão sobre-humano que não se pode ouvir! É por isso que ela me faz lembrar uma outra imagem, inspirada igualmente num grande fenómeno da natureza ocorrido em finais do século XIX: a erupção na ilha Indonésia de Cracatoa. Munch, inspirando-se neste fenómeno, conseguiu elevá-lo à dignidade de um ícone através dessa imagem impressionante a que deu o nome o grito (1893). Tal como na imagem anterior, o que impressiona mais aqui é o olhar que não vê - tal a intensidade do "grito enorme, infinito da natureza" - e a voz muda de angústia e dor, como se o silêncio, e não o som, fosse a própria essência da voz.

A preto e branco (as cores da fotografia saída no jornal) ou em tons variegados e intensos (como é o caso da pintura de Munch), o que ressalta é uma extrema proximidade, através do belo, com o horrível da condição humana, onde o humano, demasiado humano, toca nas franjas do inumano.

É por isso que as imagens mais gritantes me parecem ser as do tríptico que Francis Bacon, um outro pintor (não confundir com toucinho defumado, ainda que a carne fosse uma das suas obsessões pictóricas) criou em 1944, dando-lhe o nome de Três Estudos para Figuras na Base de uma Crucificação.

Se uma imagem diz mais do que mil palavras, como é costume dizer-se - e é verdade que as imagens anteriores nos deixam um pouco desamparados de palavras - seria talvez melhor mostrar a imagem e deixá-la "falar" por si.

Não o faço, para já, por duas razões: em primeiro lugar porque tenho um amigo cego que não consegue ver imagens, mas gosta que se lhe fale delas. Em segundo lugar - razão para mim fundamental - porque estas imagens, é a minha aposta!, só podem ser verdadeiramente apreciados por cegos, como se fosse necessário formatar a visão antes de poder olhar para elas.

O que se vê nas imagens deste tríptico, sobre um fundo monocromático laranja, é impossível de identificar, tal a sua estranheza, mas, ao mesmo tempo, é impossível que nos deixe indiferentes, como se desse expressão a algo que é ao mesmo tempo estranho e familiar (Unheimlich, segundo Freud), humano e animal. São três figurações de um único grito impossível de calar, mas impossível de ouvir.

É evidente que, dada a proximidade com o acontecimento da segunda guerra mundial, poderíamos relacionar
estas figuras estranhas e impossíveis de identificar com a própria besta inumana que habitava o coração humano e que a guerra soltou. Mas nenhuma pintura (muito menos a de Bacon) é a pura imitação ou reprodução da realidade, ainda que esta lhe possa servir de pretexto. A única coisa que se poderá dizer, como faz Luigi Ficacci num texto da Taschen que veio recentemente a público com o Público, é que "Três Estudos é a lacerante expressão de um grito, independentemente da sua essência e causa. É um grito reduzido à sua força bruta, aquém da necessidade humana normal de identificar e resolver as causas do mal-estar. Mais animal do que humano (...) ele é a expressão do horror em si, superior a qualquer causa transitória e específica".

Em suma, o que parece ser mais gritante nestas imagens é, paradoxalmente, o seu próprio silêncio.