25.3.10

Um novo "fetiche"?

Para fazer eventualmente face à angústia que mina o sujeito e o mundo contemporâneos, sem vínculos ou garantias que os sutentem de forma sólida (a nossa modernidade tornou-se "líquida", no dizer de Zygmunt Bauman), certas palavras (de ordem) são elevadas à dignidade de um verdadeiro fetiche. A "avaliação" tornou-se numa dessas palavras: a promessa de solidez num mundo liquefeito, volátil.

Que as palavras, aquilo que é dito tem peso e produz efeitos no real, não deixa de ser verdade. A prova mais recente, em particular para nós, portugeses - mas não só, como demonstra a atenção da cadeia de televisão americana CNN ao assunto durante o dia de ontem - foi a decisão entretanto tomada pela agência de rating Fitch de baixar a nota da dívida de Portugal. O nosso país ( e não só) parecem estar suspensos, amarrados a essa avaliação, como se de repente nos estivesse a faltar o ar...

Mas a avaliação não é apenas a que vem de fora, é também a que se implementa, que tem servido de leitmotiv, de tema recorrente das políticas governativas nos últimos anos. Em particular no domínio da educação (porventura a sua face mais visível, mediática, embora ela tenda a alargar-se a todos os domínios, no limite a todos os portugueses). Diz-se que é preciso "qualificar" e "avaliar" os portugueses.

Em nome do imperativo da "qualificação dos portugueses", foi criado o programa Novas Oportunidades (um belo nome, sem dúvida!) que consiste, resumidamente, na "desqualificação" dos professores (passando estes a ser designados como "formadores" que se limitam a "reconhecer" e/ou "validar" "competências") e na "qualificação" dos "formandos" (ou candidatos), por meio de um "processo formativo" baseado essencialmente numa "história de vida", a moldar de acordo com um "Referencial de competências-chave", segundo um ritmo pré-fabricado admistrativamente em que o tempo singular de cada um não tem a mínima importância. Tudo isto muito bem supervisionado, acompanhado, monitorizado e avaliado constantemente por meio de um conjunto de intervenientes e procedimentos que não lembram ao diabo (ou apenas lembrariam ao diabo!) e assentes numa carga burocrática da qual se pode dizer, no mínimo, que é um "processo" kafkiano, ou um pesadelo à George Orwell...

Para quê tudo isto? Para garantir a transparência, a solidez...de um processo que tende a minar, a liquefazer os elos sociais (professor-aluno, por exemplo) que sustentavam o ensino-aprendizagem na escola das velhas oportunidades? E não se pense que esta questão diz apenas respeito (como se fosse unicamente um problema de alguns) ao Ensino Secundário. Em nome da "qualificação dos portugueses" e de fazer entrar nas universidades os chamados "novos públicos", um programa que começou pelo Básico e se alargou ao Secundário, estende-se agora à Universidade.

E qual é o problema, dir-se-ia, desde que o processo seja bem acompanhado, monitorizado e avaliado? O acesso à universidade por parte de novos públicos e estudantes  não parece constituir, em si mesmo, um facto negativo. Nem sequer a entrada de estudantes menos preparados constitui um problema de maior,  uma vez que os docentes têm sempre a possibilidade de os reprovar...

Porém, "a necessidade de financiamento pela via orçamental incentiva as universidades não só a admitir muitos estudantes, como também a conceder-lhes o grau de licenciatura no prazo legal. Por isso, os docentes são cada vez mais pressionados pelas instituições a passar os alunos. Na avaliação a que, a partir de agora, serão sujeitos os professores universitários, a taxa de sucesso dos alunos é crucial. Os professores que não apresentarem altas taxas de aprovação dos seus alunos serão admoestados e prejudicados na sua carreira" (Cf. João Cardosos Rosas, "A Universidade em saldo", Jornal i, 25 Março 2010, p. 3).

Avaliação: fetiche ou impostura? Uma pseudociência -recoberta de sólida retórica - para fazer face à modernidade líquida?

Se a avaliação fosse verdadeiramente eficaz e cumprisse o que promete, não teria já "chumbado" de vez muitas das políticas (em particular no domínio da educação) que nos têm governado nos últimos anos?

E agora que o chamado bullying  está igualmente na ordem do dia - bem como os suicídios a ele associados - não seria de bom tom começar a interrogar em que medida a "ideologia" da avaliação não vai cada vez mais promover a "violência" (contra os outros e contra si mesmos) e as passagens ao acto?

Como dizia, em 2004, o psicanalista Jacques-Alain Miller, "não há clínica do sujeito sem clínica da civilização". Haverá frase mais actual?

24.3.10

De cara lavada!


O sítio da Antena do Campo Freudiano está de cara lavada: mais limpo e agradável à vista.

A Antena do Campo Freudiano (ACF) de Portugal é uma associação científica, técnica e profissional, sem fins lucrativos e com personalidade jurídica. Sob a égide da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e enquanto Grupo da Nova Escola Lacaniana (NLS) ela orienta aqueles que querem, no campo aberto por Freud, prosseguir com Lacan.

Para tal, ela desdobra a sua actividade num conjunto de vertentes que vem animando desde há vários anos: grupos de trabalho ("cartéis", na terminologia lacaniana), um Centro de Estudos de Psicanálise (CEP), jornadas anuais, colóquios diversos, publicação de livros e revistas, um Seminário que decorre semanalmente, várias colaborações internacionais...

Nenhuma aposta está ganha de antemão, mas - como dizia Pascal - é preciso apostar, na medida em que estamos embarcados. É o que tem acontecido a alguns desejos decididos nos últimos anos, apesar das muitas adversidades e resistências que o ensino de Lacan (ainda) suscita em Portugal.

19.3.10

Vigiar e prevenir

Na sequência de casos de violência,  física e psicológica (bullying) ocorridos em escolas portuguesas nos últimos tempos (supostamente na origem de passagens ao acto suicidas por parte de um aluno e de um professor, segundo o que tem sido notíciado), todas as vozes (inclusivamente aquelas que outrora se calaram ou,  pior ainda, deram o seu Ámen a um Estatuto do Aluno que era francamente "laxista" para estes e "punitivo" para os professores), vêm agora clamar: punição! Punam-se os alunos, punam-se os pais dos alunos, puna-se toda a gente, se for o caso! É preciso acabar com a violência nas escolas! E quem discorda? (O caso foi hoje discutido na Assembleia da República).

Mas a punição é um último recurso; por isso, há cada vez mais quem defenda que a resposta está sobretudo na "prevenção". É preciso "prevenir"!

Não há prevenção sem "previsão". Por isso, é previso "pre-ver": ver antes, com antecedência. Vigiar.

Eis a nova "palavra-de-ordem": PREVENÇÃO! Isso pode ir muito longe: desde antes do nascimento até depois da morte. Entrámos definitivamente, e a todo o vapor, na "civilização do olhar". Vigiar (isto é, prever) para  prevenir.

Pôr a sociedade sob vigilância faz com que toda a gente se torne progressivamente vigilante de toda a gente, e de si mesma. Se o mal está em mim, o "chui (flic) também. É preciso que eu me vigie. Culpado e vigilante, assim será o sujeito da civilização do olhar (Cf. , Gérard, Wajcman, L'oeil absolu, p. 103).

O melhor é ficar, desde já, PREVENIDO!

11.3.10

Elogio da sombra

Em "O Olho Absoluto", um admirável ensaio do escritor e psicanalista Gérard Wajcman sobre a "civilização do olhar", há um capítulo dedicado ao "elogio da sombra". Este curioso título evoca um outro admirável livro, do escritor japonês Junichiro Tanizaki, sobre a importância da sombra e dos seus efeitos na estética tradicional japonesa. Opõe-se aqui uma estética e uma cultura da luz (ocidental) a uma estética e uma cultura da sombra.

Na "sociedade da transparência" em que vivemos, onde tudo devém sujeito ou objecto do olhar e onde o imperativo da "visibilidade absoluta" exige que nada do que é exterior ou interior escape ao raio da "iluminação" (até para os mortos se exige agora uma "autópsia psicológica", pois se deve ver tudo, saber tudo, dissecar tudo...até já não restar nada da subjectividade ) poderá este "elogio da sombra", vindo de um Japão anterior ao fascínio pelo ocidente (1933) iluminar, de alguma forma, o momento sombrio que atravessamos?

Traduzo o que diz Gérard Wajcman (L'Oeil absolu, Éditions Denoël, 2010, pp. 50-51) sobre o assunto :

"Em breve se irá no encalço das sombras.
Restaurar os direitos da obscuridade é o que está em jogo.
Nunca havemos de reler suficientemente o admirável Elogio da sombra de Junichiro Tanizaki (1933). Este formidável escritor fala aí do amor, do seu amor pela sombra, do lugar e das funções da sombra na arte de viver japonesa. Eis um mundo em que harmonizar-se com a sombra constitui um modo de ser e de pensar e acima de tudo o móbil de uma intensa emoção estética. É também uma posição ética orientada pelo real e não por ideais transcendentes.
É, portanto, hoje, para nós, uma posição política.
Repete-se que o Japão é um mundo outro, povoado de signos misteriosos, estranhos e estrangeiros ao nosso, onde o gosto pela luz nos afasta do canto de amor pela sombra. Na verdade, quando se lê Tanizaki, compreendemos como tudo isso é idiota. Que o Japão é como aqui, que os japoneses são tal como nós, tão semelhantes e singulares como nós e que a sua relação com a sombra não tem nada de estranho ou exótico - apenas magnífico. E que se queremos compreender algo do que se passa em nossos nossos países é urgente ler o admirável elogio da sombra de Junichiro Tanizaki". 


Cultivar a sombra: eis uma nova proposta para o século XXI!

4.3.10

A hora do crepúsculo

Dizia Clarice Lispector, numa bela expressão, que o crepúsculo é a hora de ninguém (Cf. A Hora da Estrela).

Desconheço se o filósofo Michel Onfray já leu alguma vez Clarice, mas sei com toda a segurança que leu bastante Nietzsche, o criador da expressão: "crepúsculo dos ídolos". De tal forma que decidiu intitular o seu último livro, a sair em breve: "O crepúsculo de um ídolo. A efabulação freudiana".

Na apresentação que faz do seu livro, num dossiê consagrado A Freud (Lire, Março 2010, pp. 32-49), o autor começa por desfiar uma série de acusações relativamente ao inventor da psicanálise, todas elas começadas por "se" (se Freud isto, se Freud aquilo) para concluir do seguinte modo: "então, como explicar o sucesso de Freud, do freudismo e da psicanálise durante um século?"

Se Freud isto e aquilo, como explicar que ele permaneça tão vivo, a ponto de continuar a desencadear tamanhas paixões? Os mortos não são (geralmente) atacados, a não ser em caso de vandalismo, não é verdade? E Freud não pára de fazer comichão...

Que há erros na obra (o próprio Freud, acusado por Michel Onfray de desonestidade, o reconhece), avanços e recuos no método (é próprio de tudo o que começa) ou contradições no homem (Freud) não deixa de ser verdade e já foi, por muitas vezes, denunciado. Mas aquele que estiver livre de contradições que atire a primeira pedra!

Aliás, o que é um pensamento livre de contradição? Não será o sonho de muitos filósofos, por exemplo, ao longo da história da filosofia: um saber absoluto, sem falha e sem resto, fechado sobre si mesmo? Nesse caso, bem aventuradas as contradições freudianas.

Só os mortos não são contraditórios.

3.3.10

(Des)acordo ortográfico?

Se o "inconsciente está estruturado como uma linguagem" (Lacan) e se as linhas com que se cose o destino do ser falado e falante também são as da língua (lalangue), então quando se procede a alterações orto-gráficas, como é o caso, tal não pode deixar de ter consequências para esse mesmo ser.

A língua é uma coisa viva e não há, por isso, que lamentar as "alterações". Elas acabam por acontecer de um modo ou de outro, com ou sem "acordo".

Claro que uma língua não é feita unicamente para "comunicar", mas também e, fundamentalmente, para atrapalhar, enredar, provocar equívocos e mal-entendidos. E nenhum "acordo" orto-gráfico vai conseguir, alguma vez, "endireitar" a língua...

E ainda bem, pois o que seria, por exemplo, da "piada", do dito espirituoso se o equívoco desaparecesse?

Mas não há que temer: com ou sem acordo, o mal-entendido vai continuar!

1.3.10

Um homem sério

No último filme dos irmãos Coen, "A Serious Man", há um estudante universitário que tenta subornar o seu professor de física (Larry Gopnik), que o acabara de chumbar na respectiva cadeira. Como "homem sério" que é, Larry Gopnik não aceita o suborno; em vez disso, tenta explicar ao aluno a razão pela qual o chumbou: ele não domina a matemática e sem esta não é possível avançar na física.

Lição de Galileu: se o universo está escrito em caracteres matemáticos, mais do que "compreendê-lo", de buscar um "sentido" para ele, importa saber escrever, equacionar, reduzi-lo à fórmula matemática. Mesmo se Larry Gopnik desenha no quadro negro dois gatos (Schrödinger) para ilustrar o famoso "princípio de incerteza", ele explica ao referido aluno que o essencial não é isso,  mas antes a possibilidade de tratar a "incerteza" por meio da "escrita" matemática. Uma das imagens impressionantes do filme mostra, precisamente, o quadro negro completamente coberto de letras, de fórmulas matemáticas.

Porém, o que faz Larry Gopnik quando a sua mulher pede o divórcio e toda a sua vida começa literalmente a desmoronar, sem razão aparente, como se o céu e a terra conspirassem contra ele? O mesmo que toda a gente: busca um sentido, uma razão para aquilo, junto de quem é suposto-saber: no caso, recorrendo a três rabinos. Para um homem formado na ciência mais exacta (apesar de o "princípio da incerteza" parecer sugerir outra coisa), na "racionalidade" mais exigente, aquilo que lhe acontece é causa de grande perturbação, uma vez que parece ser rebelde a toda e qualquer lógica "causal", não existindo aparentemente nenhuma "razão" que o justifique. Para quem defendia junto do aluno que o tentou subornar que as nossas acções têm consequências, nada na acção de Gopnik parece justificar uma tal consequência. Ele confronta-se aqui com a ilogicidade: nenhuma causa, nenhuma razão suficiente. Tal como Job, a famosa personagem bíblica, ele parece ser "castigado" por um crime que não cometeu.

Finalmente, tal como veio, sem razão, aquilo que lhe acontece também se foi. Sem razão. Como se, na (i)lógica da vida, nem tudo fosse escrito ou pudesse ser escrito previamente ou de uma vez por todas. Mesmo que não se pare de sonhar com isso, que cada qual vá forjando um sonho para si mesmo. Um sonho de que que a vida - ou os "pesadelos", como acontece no filme - se encarrega de nos despertar.