25.2.06

Novas muletas para o sono


Às vezes só muito dificilmente conseguimos segurar o sono.

Cientistas britânicos estão à beira de resolver o problema com a invenção de um fármaco que irá reduzir a necessidade de sono para apenas duas horas diárias sem que isso afecte o rendimento das pessoas.

Os mesmos cientistas sonham já - pois quando se fala de sono, o sonho anda por perto - em superar completamente a necessidade de sono, com base na compreensão do relógio biológico humano, durante vários dias consecutivos.

Depois da(s) pílula(s) da felicidade, do Viagra, cada vez mais duradouro e potente (isto faria, com certeza, as delícias de Jeremy Bentham, que acreditava que a felicidade residia no prazer e que este era medido segundo a duração e a intensidade), chegou agora a vez do fármaco do sono, melhor seria dizer, da vigília. E aí temos um novo e admirável indivíduo de alta performance, como se diz, por exemplo, dos automóveis.

Não se trata de pôr em causa este e outros conseguimentos técnico-científicos - muitos outros vêm já a caminho; o que é preciso, talvez, é interrogar o desejo que sustenta uma tal pretensão da tecno-ciência na era do discurso capitalista.

Com efeito, a quem interessa um sujeito-máquina (gadget), de alta performance, com pouca ou quase nenhuma necessidade de dormir, sem ser afectado no seu rendimento, sempre a produzir, qual trabalhador ideal que (ainda) não existe na realidade?

Vale a pena pensar nisto, como é costume dizer-se na RFM.

22.2.06

Père-versions


De vez em quando recebo um eco, uma prova de que ao-menos-um ou dois, não apenas entram neste blog, mas dão-se ao trabalho de ler o que nele escrevi.

Desta vez, recebi, para ser mais rigoroso, dois comentários: um do Francisco Alves, bastante crítico, dizendo que eu falava sem conhecer, ou conhecendo pouco, da obra imensa do pensador Agostinho da Silva; outro, da Alexandra Lúcio, estabelecendo um paralelo entre um excerto da minha "postagem" e uma hipótese emitida por Jean Pierre Caillot sobre a "perversão".

Ao Francisco Alves já respondi por e-mail; respondo aqui à Alexandra. Escolho, para isso, um outro texto de Agostinho da Silva, intitulado: "Sobre a ideia de Deus" (in Dispersos)

Sendo Deus um dos nomes-do-pai por excelência, o que vemos neste texto é uma certa "père-version"(como dizia Lacan) de Deus, ou seja, uma versão do pai segundo a qual "Pai e Filho, sujeito e objecto, tempo e eternidade, Deus e o mundo, são apenas as duas faces (aparentes) de uma mesma banda de moebius a que Agostinho da Silva dá o nome de "Espírito Santo". Ou talvez, melhor dizendo, se pudesse falar aqui de uma espécie de "nó de trevo", mas falso (Cf Lacan, Seminário XXIII, Le Sinthome, p. 92), de tal forma que há "um erro em alguma parte no nó a três que faz com que este se reduza ao "círculo" (rond). Sob os contrários, tão ao gosto de Agostinho da Silva, ou sob a Trindade (do Pai, do Filho e do Espírito Santo), há um-todo-absoluto: "dele se não pode falar, ou o sentimos ou não sentimos".

"Ecúmena" é um outro nome para este "Absoluto". E é por dever ser "uma nação ecuménica", segundo a expressão de Agostinho da Silva, que cabe a Portugal o papel de "quarto elemento" neste falso nó a três.






21.2.06

Os três impossíveis


Educar, governar e psicanalisar eram, para Freud, três nomes do impossível.

Há quem diga que Portugal é ingovernável, que não é educável nem mesmo psicanalisável, apesar das tentativas de fazer a psicanálise mítica (Eduardo Lourenço) do destino português.

Dito isto, tem havido por parte deste último governo, socrático, uma clara aposta na governação e na educação. Ele parece querer passar ao acto onde outros, como Guterres, não passavam do blá-blá-blá. Parafraseando Marx, onde aqueles se limitaram a pensar o mundo, este governo propôs-se transformá-lo. Em particular: o mundo da educação. Na verdade, para bem dos nossos jovens e do futuro radioso do país, não há mês, semana, dia em que não saia mais uma medida inovadora - e geralmente muito aplaudida por quem é leigo no asssunto ou eloquentemente falacioso, como José Lello, o propagandista de serviço deste governo: o Inglês, no Primeiro Ciclo, os planos de recuperação e desenvolvimento para o Ensino Básico, as substituições para o Básico e, agora, diz-se, para o Secundário, enfim, uma panóplia de remédios para sarar o mal-estar na educação.

Entre falar ou agir, pensar (muito) e decidir (pouco), a aposta é clara: agir, fazer, mesmo se em vão, de qualquer maneira, em cima do joelho. Agir de forma a que se veja, pois, como se diz, uma imagem vale mais do que mil palavras. Dar a ver tudo quanto se faz e desfaz.

O resultado? Uma luta de puro prestígio (Hegel) entre o governo, barricado, de um lado, e os sindicatos, do outro. Não se trata de ver quem tem razão, mas de medir forças. Não há diálogo, mas apenas dois monólogos. Nisto tudo, a educação não passa de um pretexto.

Quando a chama se extinguir, o que restará deste confronto político-educacional será apenas cinza ou algo mais?

Talvez então se perceba que não se trata de opor o dizer ao fazer, mas de bem dizer algo que faça acto.

13.2.06

Aqui há gato


Agostinho da Silva faria hoje 100 anos. Volta a falar-se dele um pouco por toda a parte: nos jornais, na rádio, na televisão.

Foi em finais dos anos oitenta que o conheci. Eu era estudante de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa e ele uma celebridade. Num anfiteatro a abarrotar de alunos e professores, lembro-me que lhe fiz, timidamente, uma pergunta sobre...gatos. Que mais haveria de ser? Eu desconhecia tudo acerca do seu "pensamento" e, como ele, também gostava de gatos.

Nos anos oitenta, ele estava na moda. Estar na moda não significa que houvesse "consenso" em torno do seu discurso, da sua pose ou do seu pensamento. Pensando bem, a minha pergunta sobre "gatos" (mais concretamente, qual a relação dos gatos com a filosofia?) tinha um não sei quê de "cínico" e provocador. O mais curioso é que Agostinho da Silva, em vez de a rejeitar como impertinente, lá foi desfiando uma série de paradoxos, como era seu estilo, em torno da questão que eu lhe colocara. Afinal quem era aquele homem que levara a sério - mas sempre a brincar - uma pergunta colocada em jeito de graça?

Quem é este homem perante o qual voltam a ajoelhar-se uma série de personalidades, seduzidas por um certo "efeito de fascinação" que ele produz(iu)?

Talvez a sedução derive do facto de que ele era um pensador difícil de situar, atópico, paradoxal, "nómada" - como alguns lhe chamaram - criador ou envolto numa certa "aura" (Olga Pombo, hoje, na TSF). José Gil talvez lhe chamasse "nevoeiro": o nevoeiro que tem envolvido, ao longo de séculos, um certo pensamento e um sem número de poetas, pensadores e gente mais ou menos comum: Bandarra, Vieira, Pessoa, Agostinho, Oliveira (veja-se o filme sobre o "quinto império", todo envolto em nevoeiro)...

O "nevoeiro" faz-nos recuar, por temor ou respeito. Produz em nós um fascínio semelhante ao da cobra sobre a presa que vai ser devorada.

Estive a ler recentemente um texto de Agostinho da Silva intitulado "Ecúmena" (in Dispersos. Lisboa: Instituto da Língua e da Cultura Portuguesa, 1988). É um texto não muito longo, mas nele aparecem todas as virtudes e todos os vícios do seu "pensamento". "Ecúmena" é, talvez, a palavra que diz melhor acerca do desejo que o habitava: "o desejo supremo de fusão no uno" (op. cit., p. 227).

Afinal, sob a aparente multiplicidade e diferença, paradoxo e nomadismo de conceitos e termos, há um: desejo de fusão, de elimação dos contrários, de superação das antinomias, de redução da diferença ao mesmo. O "espírito Santo" (ligando pai e filho), o "quinto império" (ligando Portugal ao mundo, a passado ao futuro) são outros tantos nomes para esse desejo de anular a diferença com vista ao estabelecimento de uma "verdade total" (p. 240). Esta verdade total não é mais do que a explanação progressiva, segundo uma história sem história, do que cada povo é, mesmo antes de o ser, segundo uma ideia recorrentemente afirmada.

A atracção do um (mítico) deve-se ao facto de que ele é suposto esbater todos os entraves a um gozo que se imagina pleno, o gozo de que estamos estruturalmente separados pelo facto de sermos animais falados e falantes.

Talvez isto ajude a perceber a razão por que Agostinho da Silva gostava tanto de gatos (imagem da harmonia sonhada) e fazia a apologia de um ensino cuja missão era, in extremis, deixar ser (as crianças, os alunos...), deixar gozar, em vez de "ensinar", de-formar, en-formar. Rousseau não anda muito longe.

Dizia Agostinho da Silva na Última Conversa (Entrevista de Luís Machado, Casa das Letras, 1991): "Creio que, para aturar a vida presente, não é de paciência que precisamos; o que é preciso é acreditarmos no futuro com entusiasmo" (p. 89).

Mas não tem sido esta impaciência e incapacidade dos portugueses em relação à transformação do presente que nos tem secularmente atraído para um passado mítico (que nunca existiu efectivamente) e para um futuro místico (que nunca chega a existir)?

Apesar de tudo, há excepções - vou referir apenas duas - que nos dizem que é possível uma outra via.

Um povo que fez, do sintoma, música e canção: o fado.

Um escritor que fez, do sintoma, obra: Saramago.

O próprio Agostinho da Silva não está todo nessa cosmo-teologia. Valha-nos isso.

12.2.06

O presente de uma ilusão


O presente é o futuro do passado.

No passado, Freud - adepto das luzes - acreditava que a ciência haveria, no futuro, de destronar a religião; no presente (sexta-feira passada, mais concretamente), o papa Bento XVI responde que a ciência não é incompatível com a religião, que elas não são antinómicas.

A ciência esvazia o mundo de sentido e povoa-o com letras, números e formas geométricas; a religião faz o inverso: repovoa o mundo de sentido.

É por isso que a religião triunfa em toda a linha: com a ciência (a católica, apostólica e romana) ou sem ela (como é o caso de diversas formas de "fundamentalismo" que têm dado cartas nos últimos tempos).

Todo o sentido é, no limite, religioso. Quando mergulhamos no rio do sentido, acabamos, mais cedo ou mais tarde, por desaguar no "oceanário" da religião.

Porém - como dizia Lacan no dia 11 de Março de 1975 - "o real é o que é expulso do sentido".

6.2.06

Um Outro Portugal


Numa Universidade que se chama Lusófona, reflectir sobre Portugal e os portugueses não poderia vir mais a propósito.

Vem isto a propósito de um seminário sobre Portugal que, animado por José Martinho (Psicanalista, Professor Catedrático, Presidente da Antena do Campo Freudiano), aí tem decorrido semanalmente desde o início deste ano lectivo.

O que têm o psicanalista e a psicanálise a dizer de pertinente sobre esta questão? E o que têm Portugal e os portugueses a ver com a psicanálise e o psicanalista? Eis o fio de Ariadna que, lição após lição, vem sendo desfiado.

Semana após semana, um após Outro, de um Outro ao outro, para além do "medo de existir" (José Gil), da "ausência do pai" (Celeste Malpique) ou da e(in)terna saudade disto, daquilo e de Coisa nenhuma, vai ganhando corpo e forma Um outro Portugal.




5.2.06

O poder da caricatura

O mundo parece estar cada vez mais dividido em dois: os que conseguem rir (do sagrado) e os que não.

Já Umberto Eco, se bem me lembro, evocava no Nome da Rosa esta questão - avant la lettre - a pretexto do livro supostamente desaparecido de Aristóteles sobre a comédia.

O riso des-sacraliza. Deita a aura por terra. Fá-la cair, literalmente, na real - como dizem os nossos irmãos do outro lado do Atlântico. Revela "fragilidades" (invisíveis, ou que deveriam permanecer como tal) dos heróis, ofendendo, por isso, os seus seguidores.

Os recentes acontecimentos - despoletados na Dinamarca - a propósito de uma caricatura do profeta Maomé mostram que a "terceira" guerra mundial (uma guerra que não pára de começar), entre a seriedade e o riso, já começou efectivamente.

O riso pode ser uma arma de consequências imprevisíveis. Mas também uma marca civilizacional. Estou em crer que o grande salto (individual ou colectivo) é dado quando somos capazes de rir...de nós, tanto como rimos dos outros, ou com eles, sem que o riso (nos) fira como uma bomba.

Mas, por outro lado, o que parece falar ali, na caricatura da verdade, é esta mesma a dizer: tocaram-me na ferida.

Da mesma forma, a má consciência dos que se desfazem em desculpas ou tentam compreender o incompreensível, também diz, à sua maneira: tocaram-me na ferida.

E, assim, a verdade re-vela - como diria Lacan - que tem estrutura de ficção.

3.2.06

Ready-made


A prova de que os portugueses se espalharam um pouco por todo o mundo são as chamadas comunidades portuguesas.

Bem dito seria, então, dizer, em vez de comunidades, comundidades. As comundidades portuguesas.

Encontrei isto já feito, num texto que lia recentemente, e achei-lhe graça; será que o poder legislativo também acharia?

Seria bonito dizer, no próximo 10 de Junho: dia de Portugal, de Camões e das Comundidades portuguesas.

Nota bene: Peço desculpa ao autor do texto por não referir o seu nome, mas achei que podia tomar para mim este termo servindo-me dele como uma "carta roubada" (Poe) ou uma "roda de bicicleta" (Duchamp). Não estamos nós, afinal, na era do (a) roubo generalizado?

2.2.06

A função do nó


Num tempo em que os nós se desatam com uma extrema facilidade, não deixa de ser irónico - ou paradoxal - que as únicas pessoas que parecem fazer do nó uma questão crucial sejam os homossexuais.

Há quem imagine que eles já têm aquilo com que os outros sonham: liberdade, tempo, dinheiro...

Estarão eles dispostos a abdicar de tudo isso por um frágil nó que facilmente se desata?

Porquê esta atracção do nó?