28.2.09

O Leitor (The Reader)

Fui ver o filme. Tinham-me falado muito bem a seu respeito. Não desiludiu. Obra prima? talvez não...

Com grande mestria, num constate vai e vem entre o presente e o passado, Stephen Daldry conduz-nos através de um labirinto de segredos, de enigmas que teimam em furtar-se à nossa compreensão. O desempenho dos actores - nomeadamente a magistral interpretação de Kate Winslet, a mesma do "charoposo" Titanic, mas que diferente! - contribui para elevar progressivamente a tensão dramática deste filme, baseado na obra com o mesmo título de Bernhard Schlink.

Em 1961, Hannah Arendt é enviada a Israel, pela revista The New Yorker, com o objectivo de cobrir o mediático julgamento de Adolf Eichmann, responsável por uma série de crimes de genocídio contra os judeus. Com base no que pôde escutar ao longo do julgamento, bem como na sua já longa e profunda reflexão político-filosófica, ela escreveu um livro cujo título, e em particular o subtítulo, se tornaram famosos: Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil. Segundo a autora, Adolf Eichmann não apresentava características de uma pessoa com um caráter distorcido ou doentio, tendo agido como agiu por mero desejo de ascender na sua carreira profissional e os seus actos resultaram apenas do cumprimento de ordens superiores. Ele era um simples burocrata que procurava realizar com zelo e eficiência as ordens recebidas.

Hannah Schmitz, a protagonista do filme, ex-guarda do campo de concentração de Auschwitz, parece incarnar, até certo ponto, a "banalidade do mal" de que fala Hannah Arendt no seu livro: cumprindo com zelo e eficiência as tarefas que lhe são incumbidas (traço que se mantém durante e após o holocausto - veja-se a forma como ela é felicitada por manter a sua folha de serviço, de revisora, impecável!), ela parece guiar-se na sua acção pelo sentido do dever cumprido. Quando é interrogada, em pleno tribunal, sobre a a razão do seu comportamento, que levaria à morte centenas de judeus, ela devolve a questão ao juíz, perguntando: e você, o que faria? Como se a máxima que a guiou na sua acção pudesse ser universalizada!

Porém, o cumprimento do dever tem aqui o seu avesso. Ele revela-se igualmente na cena,
decisiva, do tribunal. Acusada de ser a principal responsável pela redacção do documento que ordenava o referido crime , ela começa por negar a acusação; porém, quando lhe é pedido que escreva algo numa folha de papel em branco, com vista a aferir a sua letra com a do documento em questão, ela vacila, faz um compasso de espera, tenso, e acaba por declarar-se responsável. Saberemos, entretanto, pela boca de Michael Berg (o jovem com quem ela se relacionara sexualmente alguns anos antes, quando ainda adolescente) que Hannah Schmitz não é movida, no seu gesto, por uma qualquer moral kantiana, do dever, mas por vergonha: ela prefere assumir a culpa dos crimes contra a humanidade (o que a condenaria a prisão perpétua, desfigurando-a completamente) do que reconhecer a sua incapacidade de ler e escrever.

É este o fio de Ariadne que liga as diversas partes da trama: objecto de vergonha (por incapacidade) e de fascínio (escolhendo como parceiros amorosos - segundo um claro traço pedófilo - aquele(s) que são, que podem ser "leitor(es)" para ela). Eis o que comanda, que determina toda uma vida: a pequena "caixa vazia" onde vêm inscrever-se toda uma série de pessoas ou acontecimentos aparentemente aleatórios.

Quando, finalmente, Hannhah aprende a ler, já é demasiado tarde, a não ser para descalçar os sapatos (numa clara identificação ao que restava dos judeus mortos, no campo de Auchwitz), subir para o monte de livros por si improvisado e deixar-se cair como letra morta. Uma letra que não chega ao seu destino, no simbólico, ao nível do reconhecimento da falha, mas que acaba por escavar um buraco no real. Aqui jaz Hannah Schmitz.

24.2.09

"Sabedorias" light

O último número, extra-série, da revista Le Nouvel Observateur é consagrado aos "pensamentos do oriente", tais como: zen, taoismo, confucionismo, entre outros. Acompanhando a inflação de publicações, sites, cursos, workshops diversos sobre a "revolução espiritual" que parece estar a abalar o mundo, ela procura responder ao interesse crescente em relação a tais "sabedorias" e "práticas" manifestado por um número cada vez maior de pessoas. Aparentemente, o que parece ser a mola principal de semelhante interesse é a busca de uma nova espiritualidade, como reacção ao hiperconsumo que tem assolado o mundo nas últimas décadas.

Um dos paradoxos, na (nova) era de globalização em que vivemos, é que a atenção dos ocidentais se volta para os "pensamentos do oriente" quando, precisamente, os pensamentos do oriente (e sobretudo dos orientais) estão cada vez mais focalizados, dobrados, convertidos ao "capitalismo" ocidental.

O que leva os ocidentais a aderir de forma tão entusiasta aos pensamentos e práticas do oriente? Na verdade, como entender que o extremo individualismo ocidental, todo ele apegado- cada vez mais - à plena realização de si mesmo, se volte para "práticas" (como o budismo, por exemplo) que assentavam no desapego e esvaziamento do Eu?

Tal como o "ecologista" dos "tempos hipermodernos", que apregoa a defesa da "natureza" sem abandonar os produtos mais requintados da "civilização", também o mais feroz adepto do individualismo ocidental se volta para o oriente sem abandonar as ideologia do consumo e a mitologia da plena, concordante e feliz realização de si mesmo. Trata-se menos de uma "revolução espiritual" que de uma nova figura do hiperconsumo (Lipovestky).

Com efeito, nas antigas sabedorias tratava-se de despojar totalmente o homem, de ultrapassar o Eu confinado à estrita individualidade, libertando-o dos seus vãos apetites. Elas implicavam uma completa mudança de vida, passando por exercícios espirituais repetidos, indiferença ao mundo e uma verdadeira - e muitas vezes dolorosa - performance ascética. Pelo contrário, o que se procura actualmente junto dos "mestres" (ou que se fazem passar por tal) são receitas para maximizar o prazer, a satisfação e o pleno desenvolvimento "físico" e "psicológico" de si mesmo. Trata-se mais de um help self que de uma anulação ou apagamento do self. E todos se deixam embalar neste doce canto de sereia, até mesmo a digníssima igreja católica, apostólica e romana que não tem cessado, nos últimos tempos, de "psicologizar" cada vez mais o seu vocabulário. O "afecto", a "emoção", a "realização de si"...têm vindo a subtituir-se à "fé", à "culpa", ao "pecado"...como nas demais esferas da existência.

Por todos os lados há novos "mestres" e "guias" da "auto-ajuda" (contradição?). Os novos gurus crescem tão rapidamente como as novas tendências da moda ou os novos restaurantes exóticos. A atracção pelos "pensamentos do oriente" é a mesma que se tem por um novo restaurante. Trata-se sempre de "consumir" alguma coisa, de "experimentar" algo de novo, de "sentir tudo de todas as maneiras". Desapegadamente, de preferência.

O que diria de tudo isto, por exemplo, um "verdadeiro" mestre zen? Talvez risse apenas, com sarcasmo. Ou interrompesse o silêncio com um pontapé. Ou atirasse tudo contra o muro!

9.2.09

O matema da emoção

Não me canso de ouvir. Há amores que duram enquanto outros fenecem.

Caíram as folhas outonais. Caiu a chuva sobre nós.

A terra girou em torno do seu eixo. Em torno do sol.

O sol girou em torno de outro sol.

O universo girou?

Girou a vida, girou a morte.

E enquanto girando girava

tudo gerou

outra coisa.

E eu não me canso de ouvir

este som

este silêncio

esta mágica mistura de som e silêncio

este concerto como água correndo


Obrigado Keith.

Jarret.