26.11.07

Dos feios não rezava a história...

Sempre houve, na história do ocidente, um sem número de reflexões sobre o belo, em particular como mola para elevar a alma à contemplação do bem. Pelo contrário, sobre o feio escasseou a reflexão, como se este fosse algo a evitar, rejeitar, excluir. O parente pobre. Ou, como diz Umberto Eco na sua História do Feio (Difel, 2007), a abundância da reflexão sobre o belo contrastou com a penúria das formulações sobre o feio.

Hoje em dia, assiste-se a um fenómeno paradoxal: ao mesmo tempo que o feio subiu definitivamente ao palco das preocupações dos artistas, como o retorno de um recalcado (já ninguém se preocupa em fazer arte bonita, a não ser os cabotinos), assiste-se a uma mediatização cada maior da beleza. O que se celebra, de um lado, exorciza-se do outro.

No fundo, o belo e o feio não passam de caretas (imaginárias) do real: em si mesmo, nem belo, nem feio. Mais do que o verso e o anverso da moeda, são os dois "lados aparentes" de uma superfície que tem, na realidade, um só lado.

Assim, tal como a modernidade soube encontrar beleza até nas coisas feias, há que descobrir fealdade nas coisas (aparentemente) belas. É um trabalho de civilização.

17.11.07

Sicko-logica-mente

Num certo sentido, grande parte do cinema que se faz actualmente deixou de intervir na realidade, rodopiando cada vez mais sobre si próprio, a sua história e os seus maneirismos formais. No entanto, há um conjunto de realizadores que teima em "rimar contra a maré" (retomo aqui a expressão feliz de Miguel Mota).

É o caso, por exemplo, do polémico "documentarista" americano Michael Moore. Decididamente interventivo (é disso prova não apenas o filme-documentário agora em exibição, Sicko, como igualmente o canal que o mesmo criou no Youtube, em que o público é convidado a partilhar as suas histórias sobre os "maus encontros" com o sistema de saúde americano), os seus "documentários" são um verdadeiro acto político, no sentido genuíno do termo. Na verdade, ele "interpreta" de tal modo o cinema e o documentário, que não sabemos verdadeiramente se estamos perante documentários elevados à DIGNIDADE do cinema ou este elevado à DIGNIDADE do documentário.

Tendo como pano de fundo o sistema de saúde americano, em particular as más experiências de uma série infindável de concidadãos com as poderosas e lucrativas seguradoras, ele tenta mostrar, à sua maneira, que não há clínica justa do sujeito sem uma ajustada clínica da civilização. Neste caso, da "civilização" americana. E, já agora, porque a "aldeia global" tende a "americanizar-se" a todo o gás, à "civilização" tout court.

No país do "sonho americano", o que este filme-documentário mostra é o seu reverso: um pesadelo. Nessa medida, ele dá que pensar. Já seria motivo suficiente, mesmo que não houvesse outros, para ir dar uma olhadela, não fosse a grande "paixão da ignorância" que vai por aí.

Um aparte:Quando assisti a este documentário fabuloso , havia apenas sete pessoa na sala. Repito: sete. Era Sexta-feira à noite. O cinema tinha nome: chamava-se Nimas. Já tive oportunidade de assistir, neste mesmo cinema, a verdadeiras obras primas. Por este andar - ou por esta inércia - ainda vamos acabar todos a gramar, sexta-à-noite, os "Morangos com Acúçar". Valha-nos Deus!)

15.11.07

Dia internacional...

Em dois mil e dois a Unesco decidiu dedicar um dia internacional à Filosofia. Em Portugal, este dia celebra-se hoje, 15 de Novembro.

Não consigo deixar de pensar que a existência de um Dia Internacional da Filosofia (tal como o dia da água ou da árvore) significa o reconhecimento "oficial", de uma forma mais ou menos envergonhada, de que aquela perdeu importância ou está em risco.

Não existem dias internacionais (ou nacionais) para aquilo que conserva pujança vital. Os gregos, por exemplo, tinham mais que fazer do que celebrar o dia internacional da filosofia: ocupavam-se, por exemplo, a filosofar.

12.11.07

Pulsão de morte

Perante um massacre como o ocorrido há poucos dias numa escola da Finlândia, um país considerado exemplar em matéria de ensino e educação por muito boa gente, a reacção imediata, após o choque inicial, é perguntar-se porquê. Perguntar-se porquê é buscar compreender, procurar razões que justifiquem o acto cometido pelo jovem de dezoito anos que, num gesto tresloucado, matou uma série de colegas, entre outros agentes educativos. O problema é que, neste caso, o aluno em questão parecia bem integrado, normal, com uma inteligência acima da média, com uma família...

Haverá, sem dúvida, outras razões, pois, a acreditar nos velhos pensadores, nada é sem razão. É certo que poderá haver razões de natureza familiar, social, escolar, etc., mas o que faz estremecer, desde logo, é que por mais razões que haja ou possa haver para explicar este acto, elas serão sempre insuficientes, ainda que necessárias, para dar conta do que há nele de profundamente desmedido, excessivo, desproporcionado.

Nem todo o real deste acto é racional. Ou então, é a própria racionalidade da razão (parece que todo este acto foi meticulosamente preparado, calculado e divulgado) que se revela aqui irracional. Uma razão fria, como diria Damásio; sem com-paixão ou receio das consequências (como diria, curiosamente, o próprio Kant).

Como pode combater-se alguém que está disposto não só a matar como a morrer? Vale a pena reler "O Mal-Estar na Civilização", de Freud, para ver por que era ele tão pessimista sobre a natureza humana... Na verdade, por mais "inumano" que ele nos pareça, este acto é filho do humano.

4.11.07

O corpo e o objecto

Desde há vários anos, a Antena do Campo Freudiano, através do seu Centro de Estudos de Psicanálise, tem prosseguido uma investigação em torno de alguns dos conceitos fundamentais que Freud e Lacan puseram em circulação. A base das operações é um Seminário animado por José Martinho e que este ano se realiza na Biblioteca Victor de Sá, Universidade Lusófona, sala 2.3, e é subordinado ao tema: "O Corpo e o Objecto na Clínica Psicanalítica". Procura-se, desta forma, uma consonância com o trabalho proposto e realizado ao nível quer da Associação Mundial de Psicanálise, quer da New Lacanian School/Nouvelle École Lacanienne.

No "Mercador De Veneza", de Shakespeare, é celebrado um estranho contrato entre Shylock, um judeu, e António, um importante mercador de Veneza. Para ajudar o seu amigo, Bassânio, a conquistar o coração da bela e rica Pórcia, ele pede emprestado a Shylock três mil ducados. Este acaba por aceder ao pedido sob a estrita condição de que António lhe pague a dívida no prazo de três meses; caso contrário, terá direito a cortar "uma libra de carne" junto ao coração daquele. Eis um estranho objecto que se destaca do corpo e, já agora, das leis do mercado: para que é que isso serve a Shylock, o judeu?

Quando Marcel Duchamp descobriu que um objecto qualquer da indústria humana (quer seja um pá, uma roda de bicicleta ou um simples urinol) pode ser elevado à dignidade de Objecto artístico, mostrou, por exemplo, que mesmo quando uma coisa já não serve para nada (daquilo para que foi criada), ela continua, apesar de tudo, a ter uma função. Qual é a função, cultural e artística, destes estranhos objectos cada vez mais disseminados?

Para um fetichista, por exemplo (veja-se o caso referido por Freud num texto dedicado ao tema), a presença ou ausência de um simples "brilho sobre o nariz" pode ser razão necessária e suficiente para atear ou extinguir todo e qualquer desejo sexual.

Num outro domínio, ao nível dos novos sintomas que não cessam de aumentar, o "nada" que a anoréctica se obstina em (não) comer, revela que o objecto e o modo de satisfação que aí estão em causa não dizem respeito à necessidade natural, mas a outra coisa, quer esta se reporte ao amor (na sua exigência incondicional), ao desejo (que é sempre desejo de outra coisa) ou ao gozo (enquanto este põe em causa o princípio de prazer).

Também o esquizofrénico, por exemplo, que ouve realmente vozes (que mais ninguém ouve), mostra, à sua maneira, que o objecto de que se trata não é o objecto natural, da percepção..., mas aquilo a que Lacan vai chamar objecto a.

São apenas alguns exemplos deste estranho objecto que Freud - e após ele Lacan - deram um relevo especial. É em torno dele que irão prosseguir as investigações do seminário ao longo deste ano.

1.11.07

O cão vadio (parte II)


Não gosto de repetir os mesmo temas, ainda que, como diria Deleuze, haja, em toda a repetição genuína, uma diferença. Volto, por isso, ao tema do "cão vadio" que morreu de fome e sede numa exposição de Guillermo Vargas.

A pergunta que eu gostaria de colocar é a seguinte: por que causou este acontecimento tanto escândalo, gerou tanta polémica e levou a tamanha reacção? É verdade que é um acto (e gostava de realçar esta dimensão do acto) aparentemente bárbaro, de um "cinismo" ou provocação a rondar o mau gosto. Além disso, a minha primeira reacção foi igual à de toda a gente. Mas é necessário, por vezes, um segundo tempo para colocar o primeiro no devido lugar.

Na verdade, todos os dias morrem no mundo, nas ruas, à vista desarmada inúmeros cães vadios (bastaria, como diz o meu amigo Fernando Borges de Moraes, "recortar" isso com a sensibilidade do olhar). De igual modo, todos os dias morrem no mundo inúmeras pessoas como cães vadios. Acontece que isto já faz parte da realidade a que estamos habituados. E o hábito é uma espécie de carapaça que encobre o "real" que habita a "realidade".

Quando, de repente, alguém se lembra de expor, num lugar determinado, levando até às últimas e trágicas consequências, por meio de um acto discutível (mas qual é o verdadeiro acto que não é discutível?) algo que, na verdade, já está "exposto"...toda a gente se escandaliza.

E não é motivo para menos, visto que a artista descobre, isto é, põe a nu, o que gostaríamos de continuar a encobrir.

Eis onde a petição que circula pela Internet tem uma função sedativa, tranquilizante: ao assinar, podemos ir à nossa vida, de todos os dias, e continuar a dormir descansados. É como aquelas pessoas que, em certas organizações, se "mortificam" com um cilício durante algum tempo, limitado, para não andarem constantemente mortificadas. Ou como aquelas que preferem ter medo (disto ou daquilo) para não andarem permanentemente angustiadas. Ou, enfim, como aquelas que preferem esfolar o joelho (em Fátima, por exemplo) a ter de esfolar a alma...

Afinal de contas, dá jeito e não é mal pensado!