1.11.07

O cão vadio (parte II)


Não gosto de repetir os mesmo temas, ainda que, como diria Deleuze, haja, em toda a repetição genuína, uma diferença. Volto, por isso, ao tema do "cão vadio" que morreu de fome e sede numa exposição de Guillermo Vargas.

A pergunta que eu gostaria de colocar é a seguinte: por que causou este acontecimento tanto escândalo, gerou tanta polémica e levou a tamanha reacção? É verdade que é um acto (e gostava de realçar esta dimensão do acto) aparentemente bárbaro, de um "cinismo" ou provocação a rondar o mau gosto. Além disso, a minha primeira reacção foi igual à de toda a gente. Mas é necessário, por vezes, um segundo tempo para colocar o primeiro no devido lugar.

Na verdade, todos os dias morrem no mundo, nas ruas, à vista desarmada inúmeros cães vadios (bastaria, como diz o meu amigo Fernando Borges de Moraes, "recortar" isso com a sensibilidade do olhar). De igual modo, todos os dias morrem no mundo inúmeras pessoas como cães vadios. Acontece que isto já faz parte da realidade a que estamos habituados. E o hábito é uma espécie de carapaça que encobre o "real" que habita a "realidade".

Quando, de repente, alguém se lembra de expor, num lugar determinado, levando até às últimas e trágicas consequências, por meio de um acto discutível (mas qual é o verdadeiro acto que não é discutível?) algo que, na verdade, já está "exposto"...toda a gente se escandaliza.

E não é motivo para menos, visto que a artista descobre, isto é, põe a nu, o que gostaríamos de continuar a encobrir.

Eis onde a petição que circula pela Internet tem uma função sedativa, tranquilizante: ao assinar, podemos ir à nossa vida, de todos os dias, e continuar a dormir descansados. É como aquelas pessoas que, em certas organizações, se "mortificam" com um cilício durante algum tempo, limitado, para não andarem constantemente mortificadas. Ou como aquelas que preferem ter medo (disto ou daquilo) para não andarem permanentemente angustiadas. Ou, enfim, como aquelas que preferem esfolar o joelho (em Fátima, por exemplo) a ter de esfolar a alma...

Afinal de contas, dá jeito e não é mal pensado!

6 comentários:

Fernando Borges de Moraes disse...

Isso talvez nos remeta diretamente a castração e seus efeitos. Tamponar esse "real" com a romântica e inócua petição de fato aplaca angústias. Mas, prezado Filipe, não sei em que medida a arte poderá de per se apresentar-se como "ato" desacompanhada da análise...

Filipe Pereirinha disse...
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Filipe Pereirinha disse...

Não-todo acto é analítico.Há uma dimensão de acto na arte, de tal forma que Lacan por exemplo,não deixa de usar a expressão a propósito de duas personagens saídas da arte (neste caso literária): Medeia e Antígona. Claro: elas mostram, enquanto personagens, o que pode ser um acto. O gesto de Guillermo Vargas, a meu ver, consegue ir mais longe: ele "performatiza" o acto. Um certo acto, evidentemente...fazendo com a que a arte atravesse a dimensão "estética", do bom gosto, que nos protege habitualmente do real mais cru.

Anónimo disse...

Não posso estar mais em desacordo consigo. Que importa, para o caso!, se todos os dias vemos morrer cães vadios (à vista desarmada)e pessoas (à vista armada pela televisão)...? Em nenhum sentido, com argumento nenhum o gesto de Vargas "valeu a pena". Nem o gesto de Vargas nem o gesto dos matadores de touros em arenas. O acto é indigno em si mesmo para quem o faz e para quem o apoia. E não me parece que dignifique quem o justifica. Com estima lho digo.
António Marques Pinto (Lisboa)

Filipe Pereirinha disse...

Não vejo qualquer problema em discordar. É um privilégio da democracia. De qualquer modo, não me parece boa a comparação entre o "gesto" de Vargas (por mais condenável, eticamente, que ele seja))com o gesto dos matadores de touros. Num caso, estamos perante um gesto irrepetível (e é como tal, a meu ver, que ele deve ser apreciado), enquanto no outro se trata de uma "profissão". Além disso, o fito visado também me parece outro: enquanto nas touradas se dá a ver o espectáculo da morte (ou a morte como espectáculo), no gesto de Vargas é o próprio espectáculo (a arte enquanto espectáculo do olhar) que acede ao seu limite...impossível...de ver. De tal forma é impossível...de suportar...pela visão, que muita gente sentiu necessidade de falar ou escrever sobre o caso.
Atenção: não estou a defender (nunca o fiz nem farei)o gesto de Vargas, mas apenas a situá-lo. É o que acho pertinente.

Filipe Pereirinha disse...
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