22.12.06

Dar o que não se tem

Todos os Natais sou invadido por uma certa nostalgia de um tempo - mítico, talvez - em que o desejo de dar ainda não era inteiramente sufocado pelo ter que dar (isto é, comprar) algo para os entes queridos, amigos e conhecidos.

Era um tempo - mítico, talvez - em que ninguém tinha quase nada para dar e toda a gente dava, por isso, até o que não tinha.

A carência (ao nível da necessidade) não mata forçosamente o desejo de dar, podendo até reforçá-lo.

Dar o que não se tem - como dizia Lacan - é amor.

Outros dirão: É Natal.

14.12.06

No princípio era o amor

É com este título que Lacan inicia o seu seminário de 1960-1961 dedicado à Transferência. Aí discute, entre outras, a conhecida fórmula do Evangelho de S. João segundo a qual no príncípio era o Verbo. A ideia é que o Verbo é essencialmente amor. Quando alguém se põe a falar, mais do que uma informação (sobre o mundo ou a realidade) é o amor que se vai inter-dizendo por entre as linhas.

Na experiência analítica, o amor tem o nome de "transferência", um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, segundo Lacan. O seu nascimento e o seu fim marcam dois momentos cruciais de uma cura analítica.

O próximo congresso da New Lacanian School/Nouvelle École Lacanienne, a realizar em Atenas a 19 e 20 de Maio de 2007, é subordinado ao tema "Nascimentos da Transferência" (Births of transference/Naissances du transfert), inscrevendo, desde logo, no título a pluralidade de abordagens que o tema, hoje, permite.

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"Poderes da Transferência" é o título do seminário do Centro de Estudos de Psicanálise (CEP) e da Antena do campo Freudiano (ACF) que se realiza todas as segundas feiras na sala A12 da Universidade Lusófona (Campo Grande) e que é dedicado, como não podia deixar de ser, à questão do amor e às suas diversas facetas, tanto dentro como fora da psicanálise.

Como é natural, Platão não poderia faltar ao banquete!

13.12.06

Coisas de merda


No prefácio à edição francesa do Elogio da Intolerância (Lisboa: Relógio D'Água, 2006), Slavoj Zizek mostra como a "ideologia" - supostamente ultrapassada ou caída em desuso - está presente até nas coisas mais ordinárias (ou íntimas e privadas) do quotidiano.

Para ilustrar a tese, recorre a três exemplos "típicos" de casas de banho: a alemã (tradicional), a francesa e a americana. Na casa de banho alemã tradicional, o buraco onde o cocó desaparece depois de se puxar o autoclismo é lateral, de tal modo que ele começa por ser exibido aos nossos olhos para melhor ser inspeccionado com vista à detecção de um qualquer indício de má saúde; no modelo francês, o buraco fica bem ao meio e em baixo, de forma a que a merda desapareça o mais rapidamente possível; por último, a casa de banho amercicana, apresenta uma espécie de síntese, de mediação, entre as duas anteriores: a sanita está cheia de água, de tal maneira que o cocó flutua, bem visível, à superfície, sem que por isso deva ser examinado.

Segundo Zizek, podemos distinguir claramente em cada um destes modelos de casa de banho uma certa concepção ideológica da maneira como o sujeito deverá relacionar-se com o desagradável excremento que provém do interior do seu corpo.

Prosseguindo com o exemplo, poderíamos estabelecer um paralelismo com o que se passa nas nossas casas de banho públicas (onde se torna público o mais privado), em particular no que diz respeito às inscrições que aí proliferam.

Uma "história da vida privada" teria muito a aprender com uma visita regular às casas de banho públicas: não só em relação à forma como o sujeito vai lidando "simbólica" e "imaginariamente" com esse pedaço de "real" que cai do seu corpo, mas também, e principalmente, em relação à inscrição da(s) sexualidade(s), do próprio ou do(s) outro(s), segundo um maior ou menor (mais ou menos explícito) des - embaraço.

Os fantasmas de uma geração ou os sintomas de uma época também se (a) sentam aí.

5.12.06

Sem garantia


Há frases que são verdadeiras "concepções do mundo". Frases banais, do quotidiano.

Um exemplo é o dito publicitário que corre nos media, desde há algum tempo: "Hoje em dia, ninguém empresta sem uma garantia."

Não deixa de ser paradoxal - mas profundamente elucidativa - esta exigência de garantia na época do Outro que já não (em) presta garantia.

Se passamos a exigir uma garantia para tudo é porque tudo ficou sem garantia. Inclusive o Outro.

É a lógica dos "seguros": proliferam onde reina a insegurança (real ou imaginária, pouco importa).