15.2.11

Obscenidades

Outrora o pintor Velasquez cometeu o feito de trazer para dentro da cena o que lhe era exterior. Uma "obscenidade" que abriu um precedente. Na era em que tudo deve ser visto e mostrado, as televisões e a Internet encarregam-se de elevar a obscenidade a patamares nunca dantes alcançados. E não é só a televisão ou a Internet, mas também as rádios, os jornais e as revistas de todo o mundo.

Fala-se de tudo, mostra-se tudo. E quanto mais obsceno melhor! Veja-se o tão falado caso do jovem modelo português que assassinou um conhecido cronista social  num hotel de Nova Iorque (que melhor palco para vir à cena o obsceno, isto é, o que é suposto ficar fora de cena!).

A quantidade de informação (crónicas, debates, artigos, programas diversos...) que já se produziu sobre o assunto faz-nos porventura pensar que aquilo que se visa é esclarecer (isto é, trazer um pouco mais de luz, como diriam os iluministas) sobre este caso; porém, de uma forma geral, não parece haver outra finalidade senão alimentar, até à exaustão, a nossa necrofagia.

Em vez de máquinas de iluminar, como se propõem, os meios tecnológicos ao alcance de todos são, hoje, verdadeiras máquinas de obscurecer. Cegos de tanto ver, surdos de tanto ouvir!

3.2.11

Paixão da escrita ou escrita da paixão?

Pedro Paixão é escritor. Conhecido. Reconhecido. Embora a sua forma de escrever não agrade a todos, ela entusiasma inúmeros leitores.

Para mim, além de escritor, ele é também aquele que um dia me deu aulas, sobretudo de Hegel e Wittgenstein, na Universidade Nova de Lisboa. Eram aulas simultaneamente leves e intensas, ora cortando-nos a respiração (suspensos de um raciocínio que buscava a alquimia de conseguir dizer coisas profundas de um modo simples), ora provocando-nos uma gargalhada. Às vezes, de um modo imprevisto e intempestivo, ele dava a aula por finda, como se não houvesse mais nada a dizer ou não soubesse o que dizer mais.

Tendo acabado entretanto a licenciatura em Filosofia,  eu  fui-lhe perdendo o rasto. Só um pouco mais tarde vim a descobrir que ele tinha começado a publicar. Foram surgindo, um após outros, diversos livros que chamavam a atenção, desde logo, pelos títulos: Viver todos os dias cansa, Amor Portátil, Nos teus braços morreríamos, Os corações também se gastam, entre muitos outros. Herdeiros, porventura, da veia "publicitária" do autor (Pedro Paixão, além de Professor de Filosofia, era sócio da empresa publicitária Massa Cinzenta), os títulos ajudaram a impor um estilo que foi conquistando cada vez mais entusiastas, nomeadamente - embora de forma não exclusiva - no público feminino.

Só há pouco anos atrás soube que Pedro Paixão - além de tudo o que eu já conhecia dele - era um "bipolar assumido".  Foi, aliás, a este título que o jornal Expresso o convidou recentemente para falar, na primeira pessoa, de "uma doença que é muitas vezes associada ao mundo das artes e das letras" (Revista Única, 29 de Janeiro de 2011).

Se bem que a doença bipolar (outrora conhecida como psicose maníaco-depressiva) tivesse sido diagnosticada apenas aos 19 anos, a alternância entre estados eufóricos e depressivos que a caracteriza já se manifestara antes dos treze. Pedro Paixão fala do modo como, durante as primeiras fases depressiva até aos 13 anos, tentava lidar com o problema. Primeiro, descobriu que tocar um instrumento (um piano que existia em casa dos primos) o aliviava, tendo-lhe salvo a alma - o termo é seu - mais de uma vez; um pouco mais tarde teve lições de pintura; finalmente, por volta dos 15 anos, começou a escrever com regularidade.

Pedro Paixão descreve desta forma o que sucedia: Quando me sentia muito deprimido, ao que então nem sabia dar nome, isolava-me numa casa junto da praia. Passados alguns dias em que nada conseguia fazer, pregado a uma cama, começava a ter vontade primeiro de ler, depois de escrever. As frases e as histórias começavam a crescer dentro da minha cabeça até ao ponto de ter de pegar numa caneta e escrevê-las. Por essa altura já não sentia qualquer depressão, pelo contrário, sentia o que hoje identifico como um começo de euforia.

Mais tarde, quando começa a publicar livros, vários deles escritos muito rapidamente (como se a pressa tivesse aqui uma função, tal como na escrita da tese de doutoramento, escrita em menos de três meses), Pedro Paixão descreve assim o momento (de concluir): "aguentava" até ao seu lançamento, caindo depois, por vezes logo no dia seguinte, em depressão.

Se bem que o livro (o objecto) posto cá fora, exposto ao julgamento, à avaliação do Outro tenda a fazê-lo cair em depressão (e isto vai tão longe que o autor diz que chegou mesmo a colocar-se a hipótese - o que mostra como esse Outro exterior é também o mais interior - de ter enganado os nove professores que lhe avaliaram a tese, dado o facto de a ter escrito num tempo tão breve), é também verdadeiro, ao mesmo tempo, um outro aspecto do trabalho artístico. É o que Pedro Paixão descreve da seguinte forma: o caos que o artista sente em si é realizado, isto é, transformado num objecto, para o qual o caos migrou, dele assim, pelo menos temporariamente, se libertando.

Mas o que é, finalmente, segundo o autor, aquilo que o faz escrever?

É a dor, que também pode surgir na forma de paixão, que me faz escrever, porque ao escrever a dor esta se transforma, no melhor dos casos, em formas de beleza, que provocam uma particular, embora efémera, satisfação.

Trata-se então de sublimação (segundo o termo que Freud aplicava à arte) ou, pelo contrário, de sinthoma (como diria Lacan): o sintoma da escrita? A escrita que liga, como um fio de Ariana, os dois pólos que não sabem um do outro (o eufórico não se lembra do deprimido nem o deprimido do eufórico, como se não fossem uma só pessoa)? Algo de "intermédio" (intermediário?). Com efeito, diz o autor, essa anormal produtividade não se realiza nem no estado depressivo nem no estado de euforia, mas sim num estado de euforia suave, à qual se chama hipomania.

De tempos a tempos, o autor pergunta a si mesmo se a vida teria sido melhor e mais fácil se não sofresse desta patologia, acabando sempre por agradecer a que tem. Pelo menos, por enquanto.