23.12.05

O senhor e o escravo


Numa entrevista que deu em Buenos Aires a María Esther Gilio*, o psicanalista Jacques-Alain Miller recordava, a propósito da situação política naquele país, uma frase bíblica que me parece bem oportuna relativamente ao que tem acontecido na pré-campanha eleitoral que está actualmente a decorrer no nosso país.

Eis a frase, em espanhol, tal como Miller a disse: "El hombre es amo de sus silencios y esclavo de sus palabras" (sic). O homem é senhor dos seus silêncios e escravo das suas palavras.

Será desnecessário identificar quem tem sido, nesta história, o homem senhor dos seus silêncios e o homem escravo das suas palavras...

Àquele que se cala, supõe-se saber (mesmo que não saiba), ao que fala "barato", des-supõe-se.

Costuma dizer-se também que "pela boca morre o peixe" (fish, em inglês, como se dizia, no tempo das vacas gordas, do candidato que se colou demasiado ao nome que lhe deram).


* http://www.antroposmoderno.com/antro-articulo.php?id_articulo=410

21.12.05

Feliz Natal e um paradoxo


Um dos muitos paradoxos que enxameiam o nosso tempo tem a ver com a família: ao mesmo tempo que não cessamos de passar-lhe uma certidão de óbito – e é verdade que ela se decompõe e afunda cada vez mais – assistimos igualmente, o que não deixa de ser estranho, a uma crescente reivindicação por parte de muitos homossexuais a poder casar e “ter” filhos, ou seja – não consigo, de momento, encontrar outro nome – a constituir “família”.

Não importa se esta família é bizarra aos olhos da tradição, se dá que pensar ou causa polémica. O desejo que a habita é ainda “familiar”, queira-se ou não.

Talvez porque a família tenha sido, historicamente, uma poderosa e inventiva solução para os problemas que o real nos coloca. Tão poderosa e inventiva que ainda não perdeu, por completo, o seu poder de atracção.

Veja-se, a título de exemplo, o que resta do Natal depois que os deuses debandaram: a festa da “família”.

13.12.05

A fonte da cultura


DUCHAMP, Marcel, Fonte, 1968

Num texto recentemente publicado pelas Éditions du Seuil, « Mon einseignement, sa nature et ses fins » (in Mon Einseignement, 2005), Jacques Lacan diz o seguinte : « Diferentemente do que se passa em todos os domínios do reino animal (…) o homem caracteriza-se na sua natureza pelo extraordinário embaraço que lhe dá – como chamar isso? Meu Deus, da maneira mais simples – a evacuação da merda” (p. 82).

É uma passagem onde se fala da TV como um veículo que permitirá, de ora em diante, a cada um de nós chegar a todo o instante à cena do mundo (antes da hegemonia da televisão, dir-se-ia o palco) para estar ao corrente de tudo o que é cultural. Nada do que é cultural nos escapará.

Relacionar o mais “sublime” da espécie humana com o mais “abjecto”, não deixa de ser paradoxal. No entanto, Marcel Duchamp não fez outra coisa, ao virar toda a cultura do avesso para a fazer beber numa “fonte” de água muito pouca benta: o seu famoso “urinol”.

Quando ontem, na Sic, ao fazer um zapping entre o sexo dos anjos (a conversa fiada dos políticos) e o Absexo (conversa desfiada sobre sexual -idades), deparo com um sujeito – chamo-lhe assim porque desconheço o seu nome (não tenho muita cultura televisiva) – sentado em cima de uma sanita a dizer coisas sobre…merda. Usando metáforas, metonímias e outros quejandos retóricos, ele falou, durante um bom pedaço de tempo, das várias formas de evacuar e dos prazeres ou desprazeres a isso associados.

Eis para que serve a TV: para dar a merda a ver (pois os olhos também comem) como um prato culturalmente requintado!

Isso obra, isso fala, isso faz falar, isso dá que falar. É toda uma cultura, todo um mundo imundo.

10.12.05

@ coisa sexual


MAGRITTE, R., A Filosofia no Quarto de Dormir, 1966

Dizia Lacan, numa conferência que deu em 1967, que há qualquer coisa que mudou, desde Freud, no que toca à sexualidade: esta tornou-se bastante “mais pública”*.

No que a nós, portugueses, diz respeito, mostra-se e fala-se disso como nunca. Programa televisivo que não tenha, de forma mais ou menos explícita, uma componente sexual, parece fora de moda.

A TVI tem dado cartas nesta matéria. A sua última jogada chama-se “AB…Sexo”, que é como quem diz: um contributo “sexológico” para tirar os portugueses da “iliteracia” sexual, ensinando-lhes o respectivo alfabeto do prazer.

No momento em que se continua a discutir a introdução nas escolas de uma disciplina de Educação Sexual, a TVI antecipa-se na educação sexual dos portugueses. Tudo ali parece ter solução. Se disfunciona, faz-se funcionar: por meio de um conselho psicológico, de uma técnica “erótica”, de uma prótese ou de um fármaco.

A cada um o seu quinhão de gozo!

O problema – um dos problemas – é que no ser humano, bicho estranho, o gozo emaranha-se no desejo, o desejo no gozo, embaraçando-se mutuamente. Como dizia uma convidada da última semana, muitas vezes os problemas nascem do outro, de o nosso desejo está enganchado no desejo do Outro. É aí que a prótese inconsciente, que na espécie humana supre a ausência de instinto, começa a fazer das suas. Para mal ou bem dos nossos pecados.

*LACAN, Jacques., “Place, origine et fin de mon enseignement”, in Mon enseignement. Paris : Seuil, 2005, p. 28.

4.12.05

O mel da tristeza

Music, Zoran, Poltrona Grigia, 1998

Estudos recentes parecem revelar que nós, portugueses, somos dos mais tristes da Europa. É como se houvesse mel na tristeza, uma espécie de néctar que nos atrai.

Será isto “cobardia moral” ou o nome do sintoma, por excelência, que nos habita?

Sermos habitados pelo ver(me)bo que nos corrói e dilacera, deixa-nos um pouco tristes.

A crer no que Jorge Calado escreveu no último expresso (Revista Única, 3 de Dezembro de 2005, pp. 24-28), a propósito da monumental exposição que decorre actualmente em Paris sobre este tema, a melancolia não é nossa nem de agora, mas uma espécie de constante que resiste ou subjaz às diversas metamorfoses por que passou ao longo do tempo e das diversas abordagens de que foi alvo: Bílis Negra, Acedia, Spleen, depressão, etc. Mudam-se os tempos e os nomes, mas ela, permanece.

Não será a melancolia um dos nomes do sintoma (ou, como escrevia Lacan, Sinthoma) incurável que nos habita? Se assim for, então não se trata apenas de saber como fazê-la desaparecer, mas como usá-la bem. Parafraseando G. Perec, poderíamos dizer: melancolia, modos de usar.

É em torno desses modos de usar da melancolia que gira o dossiê consagrado ao tema pelo nº 8, Hors-Série, do Magazine Littéraire (Outubro-Novembro de 2005). Vale a pena ler!

Para informações complementares:
www.magazine-litteraire.com

1.12.05

O beijo da polémica

Klimt Gustav, O Beijo


Algures, numa escola do país, duas jovens são vistas a beijar-se.

Estala a polémica e muitos comentadores se dão ao trabalho de tecer considerações sobre o facto (até o consagrado António José Saraiva lhe dedica, no Expresso, algumas linhas).

A perspectiva adoptada pela generalidade dos que tomam a palavra tem um cariz “moral”: deve ou não permitir-se, tolerar-se, etc. que duas jovens se beijem em frente de outros, nomeadamente os seus colegas de escola, funcionários ou professores.

O que faz aqui sintoma?

É verdade que beijos entre alunos sempre houve desde há muitos anos – sobretudo depois que a revolução de Abril soltou o beijo – mas agora trata-se de um beijo entre alunas. É, portanto, um beijo homossexual. É a homossexualidade, nomeadamente entre mulheres, que aqui faz (ainda) sintoma.

Por outro lado, se os beijos entre alunos sempre existiram, eles eram furtivos, clandestinos, jogando às escondidas com os outros: professores, funcionários, pais. A sua magia parecia residir no interdito, no fruto proibido. Os enamorados retiravam-se para onde o olhar do Outro (é ainda o tema glosado por Orwell no seu 1984) não os pudesse surpreender.


É por isso que talvez valha a pena, em vez de enfileirar na polémica moralizante, mudar de ângulo e tentar perceber se neste gesto banal do quotidiano não se revela uma mudança de paradigma que vai mais além de saber se o beijo é homo ou heterossexual.

Não vivemos nós numa “sociedade transparente” (G. Vattimo) ou do “espectáculo” (G. Debord) onde tudo tem de ser mostrado, exibido, onde a intimidade é esconjurada como um demónio ou espírito maligno? Não passamos nós a viver numa “servidão voluntária” perante o olhar imperial do Outro (quer ele se chame panóptico, big-brother, televisão, Internet e sei lá que mais)?

Um novo imperativo passou a comandar-nos: Mostra!

É de um gozo escópico que aqui se trata.

17.11.05

O campo afreudisíaco


Quando se entrelaçam Freud e Afrodite, o resultado é Afreudite, uma revista de psicanálise pura e aplicada, onde pontuam diversos nomes, nacionais e estrangeiros, ligados de uma forma ou de outra à psicanálise de orientação freudo-lacaniana, entre eles o famoso Slavoj Zizek - a quem já chamaram "an academic rock star" ou "the Elvis of cultural theory"*

Um poeta brasileiro (Haroldo de campos) deu o mote afreudisíaco deste primeiro número.

Actualmente, a revista está disponível on-line**; em breve, estará on-paper na livraria das Edições Universitárias Lusófonas (Campo Grande) ou numa livraria perto de si.

* http://www.zizekthemovie.com/

** http://afreudite.ulusofona.pt/

14.11.05

Retrato


Slavoj Zizek (1949), doutor em Filosofia e em Artes, é investigador superior do Instituto de Estudos Sociais de Liubliana, Eslovénia, e Professor visitante na New School for Social Research de Nova Iorque e da Universidade de Paris VIII. Nos últimos quinze anos participou em inúmeros simpósios sobre crítica cultural, filosófica e política e teve uma participação polítca activa na República da Eslovénia. Entre os seus livros contam-se: Tudo o que queria saber sobre Lacan e nunca se atreveu a perguntar a Hitchcok, Goza o teu sintoma, Por que não sabem o que fazem, O espinhoso sujeito, entre muitos outros. É um dos raros "filósofos" que domina e leva a sério a subversão introduzida no pensamento contemporâneo pelo ensino de Lacan. Nele se poderá aplicar não só a expressão de Jacques-Alain Miller que diz que a psicanálise causou um "trauma" na filosofia ("Psychanalyse-philosophie", Des philosophes à l'envers". Nº Hors-Série: Horizon, Janeiro 2004, pp. 100-101), mas igualmente que "subverteu" o modo tradicional de "filosofar".

Para mais informações bibliográficas: http://lacan.com/bibliographyzi.htm

10.11.05

Goza!

Tem-se visto, ouvido e lido nos últimos dias um pouco de tudo a propósito dos "acontecimentos" nas periferias de muitas cidades francesas.

Serão "inconscientes" os jovens que provocam tamanho caos?

A minha resposta é: NÃO!

O inconsciente é uma espera, uma espécie de desvio por uma "outra cena" (pensemos em Halmet, sempre a adiar o acto); estes jovens (muito jovens, cada vez mais jovens) têm pressa e vão a direito. Já não podem (ou não querem) esperar mais, como dizia um deles.

Têm pressa de quê? De gozar. Se não podem gozar aqui e agora, destroem tudo o que assinala o (possível) gozo de outros. Carros, casas, etc. Destroem tudo até...à auto-destruição. Pois a exigência do gozo não tem limites.

O Inconsciente é o domínio da fala e da linguagem; estes jovens actuam à letra, no real. Deixaram de assinar a revista do inconsciente. Deitaram-lhe fogo.

Eles não são inconscientes; são o inconsciente a céu aberto, no real, quando deixou de haver distância entre as palavras e as coisas, quando "incendiar" já não é uma metáfora, uma figura de retórica, mas um acto.

O inconciente é o domínio do sonho. Se por vezes o sonho termina em pesadelo, acordamos dele para...continuarmos a dormir de outra maneira; estes jovens não dormem (e não sonham) para continuarem o pesadelo, no real, noite após noite.

O desejo inconsciente implica dialéctica, mediação; aqui não há dialéctica nem mediação. Como se houvesse um imperativo cada vez mais exigente a sussurar ao ouvido: goza!

Será que o discurso filosófico da racionalidade do ser humano (tem de haver racionalidade nisto!) ou o discurso psicológico da compreensão (devemos compreendê-los, apesar de tudo!) estão à altura do "real do gozo" que aqui se manifesta?

Repostas do real

Supõe-se que uma resposta vem depois da pergunta, mas nada é menos evidente.

Acontece por vezes que só mais tarde, a posteriori, conseguimos formular uma pergunta para uma resposta que já foi "real-mente" dada.

Ela chegou orfã, sem uma imagem que a enquadre, uma palavra que a nomeie, uma expectativa que a acolha. Irrompeu, sem nome, inesperadamente.

Só depois conseguimos balbuciar timidamente a pergunta: o que foi isto? como foi possível ter acontecido? Será que podemos ainda pensar, como Hegel, que todo o real é racional?

Eis algumas das perguntas que eu próprio coloquei ao ver arder, na periferia de Paris e de outras cidades francesas, o fogo do ódio.

7.11.05

Ex-centri-cidades


Aqui há uns anos vi um filme de que não recordo nem o título nem o nome do realizador. Contudo, recordo-me bem que era um filme de um jovem cineasta francês e a acção decorria numa das periferias de Paris. Além disso, os movimentos do filme eram ritmados pelo tique-taque, impressivo, de um relógio-bomba, pronto a explodir a todo o momento, só não sabíamos exactamente como e quando.

Ao ver as imagens dos últimos dias sobre o caos que se instalou nas periferias de Paris e de outras cidades francesas, veio-me à memória essa imagem do filme. Fiquei a pensar: eis um caso onde a realidade imita a ficção! Talvez porque a ficção, neste caso, tenha captado alguma coisa de "real" que a própria "realidade" teimava em escamotear, em não deixar ver.

E se isto, que agora acontece em Paris, fosse apenas a ponta do icebergue? Se não tivesse apenas a ver com uma cidade ou um país em concreto mas com um modelo de civilização? Se isto fosse um "sinal dos tempos", como já alguém disse?

Que é um sinal dos tempos, prova-o não só o acontecimento em si, mas também a cobertura mediática do mesmo. Tudo se transforma em espectáculo, em reality-show.

Ao ler as palavras de um dos "incendiários" (Público, 7 de Novembro, p. 3), fiqui também a pensar se não estaríamos aqui perante uma modalidade de argumentação ("in extremis"), quando todas as outras falham. Dizia ele, um miúdo de 18 anos, que "não há maneira de lhes chamar a atenção. A única forma de comunicar com eles é incendiando". Trata-se, portanto, de mostrar, de dar a ver.

Só que a argumentação pressupõe o "uso" da palavra. A palavra não é a coisa. Aqui trata-se de inflamar coisas e não discursos. Daí que, em vez de uma forma de argumentação, me parece mais a falência da argumentação. Quando se perdeu o esteio da palavra, só a "passagem ao acto" parece funcionar.

À "deflação" da palavra corresponde uma "inflação" da imagem.

Mas há também outra coisa. O crescimento das cidades (como muitos outros crescimentos) faz-se à custa de uma "exclusão interna", do nascimentos de espaços de exclusão dentro da inclusão, de territórios estranhos (onde é difícil entrar) dentro do território, de periferias que vão "descentrando" o centro, até o tornarem num espaço cada vez mais vazio ou, então, numa fortaleza.

Num mundo globalizado (sem um exterior, sem Outro), estamos condenados a encontrar/produzir esse Outro "dentro de nós", no nosso espaço, sob a forma de exclusão.

De vez em quando, a céu aberto, esta exclusão irrompe.



5.11.05

Dicas para estar "in"


Deves estar sempre conectado, ligado, hiperligado. Desligar-se é crime. Liga-te!

A sociedade da transparência em que vives não permite opacidades. Mostra-te!

A sociedade da contínua agitação não permite intermitências. Agita-te!

A sociedade do espectáculo não consente tempos mortos. Vive!

A sociedade do consumo não tolera os que não consomem. Consome!

A sociedade do uniforme não aceita quem se dispa dele. Veste-te!

As sociedades anónimas não permitem que digas o teu nome. Cala-o!

A sociedade das estrelas não suporta a escuridão. Acende-te!

A sociedade de velhos, em que estamos a tornar-nos, não suporta a velhice. Plastifica-te!

A sociedade que muda, que muda sempre e não suporta a mudança, que exige que mudes e que não mudes, que estejas parado e andes ao mesmo tempo, que é contraditória e inconsistente, inconsistente e contraditória, sem lógica nenhuma, exige... o que é que ela exige de ti, na ânsia crescente e desmesurada, sempre a crescer desmesurada-mente...exige que respondas sim.

out!

Desliga-te
Não te mostres
Fica quieto
Morre
Não consumas
Despe-te
Não te cales
Apaga-te
Não respondas sim
Mas antes, como Bartleby, preferiria não


Ou talvez inout
Ou talvez outin
talvez touni
talvez nitou

25.10.05

De um amor que não fosse todo sexual



Nos Cem anos de psicanálise (cf. Pedro Luzes, ISPA, 2ª Edição, 2002.), livro apesar de tudo bastante completo, há pelo menos um nome em falta: Sílvio Lima. Com efeito, se considerarmos os diversos usos da psicanálise, não apenas na sua dimensão terapêutica, “dentro de muros”, por assim dizer, mas também “extra-muros”, no que é tradicionalmente designado, não sem algum equívoco e falta de clareza, como “psicanálise aplicada”, o nome de Sílvio Lima apresenta-se como incontornável. Na verdade, ele é um dos pioneiros, em Portugal, a par de Fernando Pessoa ou de João Gaspar Simões (Cf. Pedro Luzes, op. cit., pp. 197-216; José Martinho, Pessoa e a Psicanálise, Almedina, 2001, pp. 11- 29), na “aplicação” – ou na crítica de uma tal aplicação – da psicanálise a outros fenómenos que não o sintoma (neurótico ou psicótico).

Com a intenção de se candidatar a professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Sílvio Lima elabora, ao longo de seis anos de trabalho, uma dissertação para o concurso subordinada ao tema: O Amor Místico – Noção e valor da experiência religiosa (Obras Completas de Sílvio Lima, Vol. I, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002). Nesta obra, único volume publicado de três inicialmente previstos, o autor interroga-se sobre a natureza do fenómeno religioso em geral e, mais particularmente, sobre uma das suas manifestações: o “amor místico”. Na medida em que Deus, o Verbo, é amor – como se diz nos textos sagrados – poder-se-á identificar ou reduzir o amor religioso ao amor sexual, como pensam alguns? Eis o problema a que esta investigação pretende dar resposta.

As diversas perspectivas sobre o assunto são, ao longo da obra, reduzidas fundamentalmente a duas tendências interpretativas do fenómeno místico-religioso: uma que tende a “sexualizá-lo” (apresentada sob o nome genérico de “teoria erotogénica do misticismo”), outra, “dessexualizá-lo”. Freud e a psicanálise são convocados como fazendo parte da primeira tendência. Derivará o amor religioso do amor sexual por “recalcamento”, “transferência” ou “sublimação”, ou, pelo contrário, terão ambos os fenómenos raízes diferentes? Sílvio Lima acabará por responder cabalmente, no que é a tese nuclear da obra, que “o fenómeno religioso não se reduz ao fenómeno sexual” (op. cit., p. 905).

Daqui se segue uma crítica da “teoria” freudiana, não porque esta seja desprovida de fecundidade em certos aspectos, mas antes pelo seu carácter pretensamente redutor do fenómeno em estudo, bem como do seu exagero interpretativo sobre o mesmo. A posição de Sílvio Lima sobre Freud e a psicanálise é, neste aspecto, ambígua (fazendo lembrar, por exemplo, as posições de Fernando Pessoa ou Wittgenstein): ao mesmo tempo que critica os seus “exageros” ou o carácter monolítico das suas interpretações, perante uma realidade viva e complexa que não se deixa reduzir facilmente a fórmulas únicas e gerais, pensa igualmente que ela pode lançar novas e inesperadas luzes sobre alguns aspectos do fenómeno em questão. Aliás, como ele próprio diz, “uma coisa é Freud, outra, o freudismo” (p. 722), querendo com isso sublinhar que os “exageros interpretativos” se devem mais aos seus seguidores do que ao mestre de Viena, ele próprio.

Contra esta tendência de encerrar todo o processo numa “fórmula geral única” (pansexualismo) – mesmo se temos a sensação de que Sílvio Lima não se libertou por completo da associação vulgar, pré-freudiana, entre sexualidade e genitalidade –, o autor propõe que nem todo o fenómeno religioso, e místico em particular, é sexual, sendo este apenas “um pequeno distrito no vasto império do sensual” (p. 745), e, da mesma forma, “se todo o prazer sexual é prazer, nem todo o prazer é prazer sexual.” (p. 581).

Não deixa de ser interessante que, algumas décadas mais tarde (no início dos anos setenta) Lacan, interessando-se pelo fenómeno místico de uma forma bem diversa da de Freud, venha dizer igualmente, embora segundo os seus próprios termos, que o gozo (místico) não é todo sexual (cf. Séminaire Encore, 1972-1973). Eis o que dá, retroactivamente, um novo interesse a esta obra dos primórdios do século passado.

22.10.05

De um país que não fosse o da aparência


Sem ser propriamente catastrofista ou optimista, como o autor sublinha nas “notas finais”, o mais recente livro de José Gil (Portugal, hoje - o Medo de Existir, Relógio d'Água) propondo-se abordar um tema algo “indefinido” e transversal a diversas disciplinas, é de uma extrema lucidez acerca do nosso país. Nessa medida, o tom que ele imprime à forma como conclui um dos capítulos, dizendo abertamente que “Portugal arrisca-se a desaparecer” (cf pp. 71-73), mais do que alarmista, soa lógico e consequente com todo o resto da sua argumentação.

Na base desta argumentação, há uma tese essencial: Portugal é o país da “não-inscrição”. Isto não significa que Portugal, nestes últimos anos, não tenha feito um esforço para se “inscrever”, nomeadamente na Europa; mas tal “inscrição” é apenas imaginária, aparente, e aquilo de que se trata aqui é circunscrever “algo” que não seja, por assim dizer, do registo da aparência. Algo “real”, que “marque” o real e o transforme produtivamente. Pelo contrário, segundo o autor, em Portugal nada tem existência real, nada se inscreve, nada acontece. Não obstante, cultiva-se a imagem (o narcisismo), sobretudo para fora, para os outros, os estrangeiros; fala-se muito, mas é uma fala “esvaziada”; escreve-se e legisla-se sobre quase tudo, talvez porque nada se “inscreve” realmente. Há, assim, uma espécie de “nevoeiro” ou “sombra branca” (em grande medida inconscientes) a cegar o desejo e a tolher a acção.

Nesta incursão pelo “nevoeiro” que nos tolda e paralisa, e apesar da sugestão “mítica” do termo, não se trata aqui de uma nova “psicanálise mítica” (Eduardo Lourenço) sobre Portugal, ainda que, para o bem ou para o mal, a psicanálise seja uma das referências constantes do autor ao longo deste “ensaio”. Sobretudo alguns nomes: Freud, Ferenczi, Nicolas Abraham, Maria Torok, e algumas noções: “inconsciente”, “trauma psíquico”, “cripta”, etc. O que mostra, de algum modo, a produtividade dos conceitos psicanalíticos mesmo para “além dos muros” da psicanálise propriamente dita.

Mas o que é uma “inscrição”? O próprio autor faz a pergunta (p. 48) e dá-nos um conjunto de elementos que nos ajudam a situar a resposta. Antes de mais, há que fazer a diferença entre as “boas” e as “más” inscrições”, ou seja, as que aumentam o poder de vida e as que o destroem. Depois, convém fazer a diferença entre três registos (real, imaginário e simbólico) segundo os quais podemos enquadrar a questão. De acordo com o autor, não há inscrição imaginária e a inscrição simbólica não tem um poder transformador, pois não faz mais do que continuar a realidade já construída. Sendo assim, a verdadeira ou “boa” inscrição é, na sua essência, um acontecimento “real”.

É aqui, talvez, em meu entender, que a argumentação de José Gil é mais frágil. Na verdade, se, por um lado, ele diz que a inscrição simbólica (numa clara, se bem que não explícita, alusão à psicanálise de orientação lacaniana) “não faz mais do que continuar a realidade já construída” (pp. 48-49), por outro, não deixa de reconhecer e sublinhar que a fala representa uma “condição essencial da inscrição” (p. 54). Segundo o exemplo que ele próprio dá, uma mãe pode investir toda a sua ternura no acto de amamentar um bebé, mas para que esse acto se inscreva, tanto nela como no bebé, é preciso que ela lhe fale enquanto o amamenta. Como se vê pelo exemplo, a fala, aqui, não é mero veículo de uma inscrição prévia (digamos, real), mas a “condição” para que essa inscrição (real) se torne possível e aconteça efectivamente. Percebendo-se, embora, que o autor queira insistir na natureza “real” do fenómeno (e não “aparente”, segundo um possível entendimento do “imaginário” e do “simbólico”), também seria importante esclarecer, para que não fique a sensação de um certo “nevoeiro conceptual”, que o “real” (pelo menos em Lacan) não se confunde com a “realidade”, tal como o “imaginário” não se confunde com a “imagem” e o “simbólico”, se bem que a torne possível, não se confunde com o “esvaziamento da palavra”, de que fala o autor (p. 57).

Prosseguindo: o que se inscreve (realmente) é fonte de potência, de vida, desejo e transformação “real”; o que não se inscreve ou inscreve “mal”, repete-se, por exemplo sob a forma de medo; um medo como efeito da não inscrição, mas também como causa, como “estratégia para não inscrever” (p. 78). É nessa medida que ele, perdido o objecto que o causa, porque não inscrito, se torna difuso, sem objecto (apesar da definição de Freud, que lhe dava um objecto, diferentemente da angústia) e se transforma, segundo a expressão do autor, que dá subtítulo a este ensaio, num “medo de existir”.

Como causa próxima deste “medo”, podemos apontar o “salazarismo” (de resto, não é a primeira vez que o autor o revisita), mas a novidade deste livro está em supor que as causas podem vir de mais longe (cf. p. 134), de uma espécie de “trauma inaugural”, reactivado através da história, de que o “salazarismo” seria (apenas) um dos pontos culminantes. Esse trauma inaugural, segundo o autor, é o próprio “trauma da não-inscrição” ou a “não-inscrição que se torna trauma”. Isto quer dizer, finalmente, que não é este ou aquele acontecimento em particular que não se inscrevem, mas a própria existência, a não inscrição da existência como tal.

Resta a pergunta: porque é que em nós, talvez mais do que nos outros (segundo o tom geral do livro) se cristalizou este “medo de existir”? Uma resposta, não toda, é porque houve, na nossa história, acontecimentos, contingências ou vicissitudes, de que o salazarismo é o exemplo mais recente e ainda vivo, se bem que imaginária, simbólica e realmente “mal inscrito”.

16.10.05

A intradução automática

Não consigo deixar de rir - o que afinal, dizem alguns, é o melhor remédio - quando tento usar um desses programas que ostentam o pomposo nome de "tradutor automático".

Quanto menos "clara" e "objectiva" é a construção de uma frase, do ponto de vista "gramatical", mais dá para rir com o resultado.

Talvez funcione bem numa linguagem que ninguém fale, em que não haja deslize, escorregadela entre o significante e o significado, equívoco...

Só que essa é a "língua" dos mortos e não dos vivos, pois estes não páram de se equivocar ou trair, dizendo sempre um pouco mais ou um pouco menos do que querem dizer.

Uma "linguagem" que fosse completamente despida de equívoco seria integralmente "traduzível", mas não diria nada de verdadeiramente relevante no que ao humano concerne.

24.9.05


Robert Longo, Sem título ("Os Homens nas Cidades"), 1981-7

O lado sombrio das luzes

Há cada vez mais "livros negros" sobre isto e aquilo.

Estando inscrito no "programa das luzes" que a luz da razão deve eliminar progressivamente as trevas, um "livro negro" é o que pretende denunciar o que permanece de "obscuro" num domínio supostamente já "iluminado".

Ao chamar "Livro Negro da Psicanálise" (Éditions Les Arènes) ao mais recente ataque à "invenção de Freud", os autores (Mikkel Borch-Jacobsen et Didier Pleux, entre outros) não conseguem ocultar a clareza do seu propósito mais obscuro: trata-se de denunciar, de desmascarar Freud e os seus seguidores, como uma imensa turba de charlatães e uma "falsa ciência"; daí que se trate, para eles, segundo a fachada do espírito crítico que ostentam, de "aller sans Freud".

Mas "avançar sem Freud" para onde e em nome de quê? Se a psicanálise é uma "falsa ciência" (uma "impostura intelectual", segundo o termo que outros puseram na moda) e uma prática "fraudulenta", então deve opor-se-lhe a "verdadeira ciência" e a a prática adequada.

E quais são elas, segundo os autores? As "terapias cognitivo-comportamentais".

Por aqui se percebe que não é em nome de uma qualquer neutralidade científica que a psicanálise é criticada, mas antes pelo facto de que ela é o último bastião de resistência antes do triunfo definitivo destas "terapias" que, aliadas à farmacologia, pretendem "eliminar o sintoma" em pouco tempo e de forma eficaz graças à "exclusão" do sujeito (falado e falante).

Porém, cada vez que é atacada - como sublinhava Jacques-Alain Miller numa entrevista ao "Le Point"(22/09/05, p. 80) - a psicanálise demonstra que está viva, tão viva que (ainda) incomoda muita gente.

É evidente que ela pode desaparecer. Nada está ganho definitivamente, de uma vez por todas; a psicanálise não é excepção. Ela depende apenas do "desejo decidido" dos que a praticam (analistas), dos que demandam uma análise (analisandos) ou dos que, sem ser analistas ou estar presentemente em análise, a respeitam enquanto "marca" inolvidável na civilização.

José Gil levantava a questão perturbadora, no seu último livro (Portugal, hoje, O medo de existir), se um país como Portugal, com mais de oito séculos de história, não poderá pura e simplesmente desaparecer um dia destes. A longevidade não garante uma existência. A psicanálise é bem mais nova que Portugal. Poderá ela desaparecer como prática, como teoria e como fenómeno civilizacional?

Agustina Bessa-Luís dizia, numa entrevista recente na televisão, com a frontalidade que lhe é habitual, que a literatura já tem uns bons séculos e pode bem ser, por isso, que esteja a chegar ao fim. Como Hegel dizia da arte, "coisa do passado". Ou Nietzsche de Deus. O que nos resta se tudo isto desaparecer ( a literatura, a arte, a psicanálise, etc.) senão o triunfo definitivo da ciência (transformada em "cientismo", porque sem a "guerra fria" da oposição, do Outro), do "comportamentalismo" (reduzindo a complexidade do sujeito e da condição humana a fenómenos "estatísticos": observáveis, avaliáveis e quantificáveis) e da farmacologia (tratando todos os sintomas, físicos e psíquicos, com pequenas pílulas mágicas).

Italo Calvino, sem dar atenção aos que falavam já da "morte da literatura", chamou a um ensaio: "Seis propostas para o próximo milénio". Propostas que relevam de um "desejo decidido" de continuar com a literatura por muitos e muitos anos porque vale a pena continuar. Se isso desaparecer, o mundo não fica mais rico, mas mais pobre.

Na "era da ciência", os jovens reuniram-se em Colónia em torno de alguém (Bento XVI) que lhes falava não a linguagem das "quantidades", mas antes das "qualidades ético-morais"; anacronia que arrasta multidões desencantadas com a frieza do mundo técnico-científico. Não foi "Deus" que morreu, afinal, como pretendia Nietzsche...

O que retorna, com uma força nova, na religião (a tal ponto que há já vários livros e revistas consagrados ao fenómeno) é também o "sujeito" excluído da ciência e dos seus anexos.

É deste "sujeito" (sempre atópico e rebelde à "fixação") que se ocupa, desde Freud, isso a que se chama psicanálise.

1.9.05

O incêndio da cultura

Depois do regresso das férias grandes, televisões e rádios alimentam-se ainda do que sobejou dos incêndios.

No debate do "Prós e Contras" (RTP1), chegou-se a esta brilhante conclusão: "Podemos viver sem a cultura, sem a biologia é que não".

Não basta que os incêndios nos tenham destruído já grande parte do património "biológico", agora querem também destruir-nos o que resta do património cultural.

Nada do que é humano é estranho à cultura!

Saber isto é essencial para compreender que, nos últimos anos, não tem ardido apenas a floresta portuguesa, mas também - e sobretudo - uma certa "cultura" da mesma.

O problema é ainda e sempre cultural.

4.8.05

A "mão criminosa"

"Anda aí mão criminosa"! É uma expressão que costuma ouvir-se de forma recorrente, todos os verões, a propósito da origem dos incêndios que vão consumindo impunemente este país. Não se sabe muito bem o que é a tão famigerada "mão criminosa", pois não há rosto(s) nem atribuição de responsabilidade(s). A "mão criminosa" é uma coisa vaga e difusa que não quer dizer nada e diz tudo ao mesmo tempo. Pode ser a mão de "qualquer um" e de "ninguém". Um estranho "objecto" que se autonomizou, desgarrado de todo e qualquer "sujeito". Só um sujeito (ético) pode responder pelo faz, não uma mão. Uma mão faz e...pronto. Talvez por isso, mesmo se todos os anos, em alturas críticas, se ouve dizer que tal e tal "sujeito" foram detidos, os incêndios não páram porque a "mão criminosa" (inimputável, irresponsável) continua à solta, não se quixando da falta de acessos e de meios.

Desde criança que oiço a mesma lamúria e quixume: "falta de acessos e de meios". O país arde porque faltam acessos e meios. Não seria já tempo de agir, dando meios aos que deles precisam e constuindo os acessos que são necessários, em vez desta eterna e inconsequente lamúria?

Em vez disso, ano após ano, o país vai ardendo (não sei como resta ainda país para arder!) e a queixa repete-se: "falta de acessos e de meios".

A televisão mostra sem cessar, de uma forma cada vez mais patética, anódina e repetitiva, como se de um show se tratasse, os incêndios e a "discussão" em torno deles (não a reflexão que leva a agir) e o que se ouve, até à exaustão, é o disco riscado do "discurso corrente" e vazio: queixume e lamúria, falta de acessos e de meios. Ao mesmo tempo, não deixa de ser curioso - e sintomático - que quando se tratou de construir acessos e de dar meios para os "dez estádios", grande parte deles agora inúteis e vazios, no momento esperado as coisas funcionaram. Porquê? Quando quando se trata da "imagem" que queremos mostrar para os outros, os "de fora", para "inglês ver", como se diz, as coisas fazem-se, aparecem feitas. Quanto ao resto, mato e floresta, espaço verde, "deixai arder!", como eu ouvia, também na minha infância, aos burgessos do meu país. É estranho este gosto pelo fogo, por ver arder, queimar...que tanto seduz os portugueses em geral (talvez por isso a "mão criminosa" não tenha rosto porque estamos todos, de uma forma ou de outra (inconscientemente), implicados. Não há festa (romaria, procissão, etc.) que não tenha "fogo". Lembro-me que na minha infância havia uma altura do ano em que os rapazes costumavam brincar às "fogueiras". Há regiões em que se queima o madeiro (do senhor). Em Fátima queimam-se velas. Fazem-se "queimadas" noutros sítios. Parece que mantemos - de forma "críptica" - um "temor" ancestral de que o fogo (pré-histórico) se apage e nos deixe literalmente às escuras. Enquanto há fogo, há esperança. Não sabemos de quê, mas não importa, pois nada importa verdadeiramente.

Para que serve falar (em tom de quixume, lamúria e impotência) ou mostrar (como faz a televisão) as imagens dos incêndios intermináveis se "real-mente" isso não leva a nada, não produz efeitos (a não ser aumentar a "depressão"), não faz acontecimento, não se inscreve (José Gil)?

Enquanto isso, o país continua a arder, ano após ano, Verão após Verão, até que não restem dele senão cinzas. Agora, até já se dá uma ajuda à "mão criminosa", avisando, na televisão, quais os dias e regiões mais propícios (com maior risco) para atear os incêndios. E as televisões garantem que meios e acessos não faltarão para dar cobertura mediática a tudo. Enquanto houver algo para arder, o espectáculo está garantido.

2.8.05

A bolsa ou a vida

Um dilema está a encostar à parede as sociedades democráticas: ou mais liberdade ou mais segurança. É uma das formas da "alienação" (o termo é de Lacan) contemporâneas.

Mais liberdade implica menos segurança, logo, no limite, menos liberdade, visto que não há plena liberdade sem segurança.

Mais segurança, porém, implica, desde logo, menos liberdade, pois não há verdadeira liberdade num ambiente "restritivo", vigiado, controlado.

Daqui resulta que quanto maior é a liberdade, menor é a segurança e quanto maior é a segurança, menor a liberdade.

O que começa a estar em cima da mesa, actualmente, é a questão de saber em que medida e até que ponto os cidadãos estão dispostos a sacrificar uma "bolsa" da liberdade para se sentirem seguros ou, pelo contrário, em sacrificar uma "bolsa" de segurança para se sentirem livres.

O problema é que agora as coisas são bem menos claras do que na dialéctica hegeliana do senhor e do escravo. Agora, propriamente falando, não há dialéctica: sacrificando a liberdade, por exemplo, em nome de mais segurança, nada nos garante que o preço a pagar não seja, paradoxalmente, mais insegurança. Há o perigo, com efeito, de que ao passar a vigiar-se tudo e todos, cada um de nós se acabe por tornar, para si próprio, um posto de vigia.

1.8.05

É a vida!

É sabido que em Portugal se lê pouco.

Nos últimos tempos, cita-se muito determinados livros e autores (até aquelas personagens que só in extremis, com uma arma apontada à cabeça, leriam um livro, os citam). Um desses autores é José Gil e o livro, "Portugal, hoje - o Medo de Existir". Pelo facto de serem muito citados, criou-se a ilusão de que em Portugal, hoje, se lê mais do que outrora.

Ilusão! Tal como Saramago, antes (graças ao Nobel da Literatura), também José Gil (graças ao "Nouvel Observateur", que o colocou numa lista restrita dos maiores pensadores) e o seu livro passaram a citar-se como quem diz o nome de uma marca famosa, de prestígio, ou meio exótica, sem que dela se possa "gozar" efectivamente. Cita-se o nome da "marca", convencido, lá no fundo (pois o inconsciente não conhece o tempo, mantendo sempre as mesmas crenças) de que o nome é a coisa e basta, por isso, nomeá-la para a possuir.

Saramago (literatura), Gil (pensamento) e Mourinho (futebol), sem terem quase nada em comum - sobretudo os dois primeiros em relação ao último - têm, no entanto, para aqueles que os "citam" sem os lerem (talvez o mais lido até seja mesmo Mourinho), o mesmo valor de "eu-ideal" (que os reflecte imaginariamente) e de "ideal-do-eu" (o que gostariam de ser, que os mobilizaria...se isso não desse muito trabalho). Afinal, todos eles são, antes de tudo, "mouros" de trabalho.

27.7.05

O fio quebrado


Clyfford Still, Pintura, 1944

A banalidade do mal

No último número do Courrier Internacional (22 a 28 de Julho de 2005), José Gil, na crónica intitulada "O fio quebrado", faz uma estranha e inusitada comparação entre o terrorismo islâmico (pelo menos numa das suas componentes) e o nazismo enquanto "programa sistemático de destruição". Em ambos os casos, o "laço" que liga, que aproxima um homem a outro homem foi quebrado; ao mesmo tempo, segundo o que agora se sabe a partir das descrições que foram feitas pelos que os conheceram, os terroristas de Londres assemelham-se bastante aos oficiais alemães dos campos de concentração: bons cidadãos, amigos do próximo, vizinhos simpáticos e sorridentes. Gente comum e banal, portanto, que, ao mesmo tempo, não hesita em matar dezenas ou milhares de inocentes sem pestanejar, com a maior frieza e insensibilidade do mundo.

Estando quebrado o fio, desatado o "laço social" (Lacan) que liga uns aos outros, também a ética é pervertida: em vez do princípio utilitarista que exige o maior bem para o maior número (Bentham, Mill), passa a praticar-se o maior mal possível para o maior número. É a "lógica" implacável do ódio passado ao acto.

Mas, voltando à comparação inicial entre certas componentes do terrorismo e do nazismo, eu gostava de realçar uma diferença entre os dois: no caso do nazismo, tratou-se de uma eliminação sem deixar rasto, sem inscrição simbólica e imaginária, como se nada tivesse acontecido e fosse, por isso, impensável. Daí a dificuldade, durante muito tempo, de pensar "isso"...que aconteceu, bem como a pergunta subjacente: como foi possível tamanha coisa? . Pelo contrário, os actos terroristas procuram o máximo de visibilidade e de ostentação do mal. São efeitos "espectaculares" o que se visa. Eis uma das facetas mais sombrias da "mediatização" e da "sociedade do espectáculo" em que vivemos.

22.7.05

Todos inválidos

O nome engana: o "capital" (caput, capitis) é acéfalo, sem cabeça, reproduzindo-se indefinidamente como um animal bizarro.

É um "imperativo cego", inconsciente, que obriga a trabalhar sem descanso para nada mais que a re-produção ela mesma.

O lucro, de um lado, para alimentar a máquina; do outro, a eliminação dos gastos, do supérfluo, do que não serve para nada, a não ser gozar - como se a máquina, não fosse, ela mesma, um "aparelho de gozo"!

Paradoxalmente, o supérfluo, o detrito, o desemprego, a massa dos que não servem para re-produzir, os inúteis, os inválidos, os que não têm valor, etc. não pára de crescer. É o que a máquina acéfala produz e re-produz sem parar: exclusão sob todas as formas.

Um novo slogan revolucionário poderia ter esta fórmula: inúteis de todo o mundo, uni-vos! Só que a revolução é o que fazem os astros que voltam sempre ao ponto de partida.

Do ponto de vista do "capital" (acéfalo), somos todos inúteis, todos inválidos. É uma questão de tempo.

Para que serve?


Ben Vautier, A Arte é Inútil, Vão para Casa, 1971

20.7.05

Felicidade infeliz

Diz o "bom senso" vigente que é preciso eliminar o supérfluo e o desperdício, o que não serve para satisfazer necessidades e interesses imediatos. É, no mínimo, curioso, pois o "discurso do capitalismo", também vigente e cada vez mais forte e selvagem, não cessa de produzir lixo, detritos, desperdício, apelos ao consumo imoderado, sem limites.

O que seria de nós sem o luxo do desejo: essa "inutilidade" que nos faz correr?

Faz-se crer, no tempo de indigência e aperto em que vivemos, que só é "desejável" o que é estritamente "necessário" à sobrevivência e tudo o resto é "inútil". Porém, como dizia, B. Gracián na sua Arte da Prudência "se não existe nada para desejar, teme-se tudo: felicidade infeliz. Onde termina o desejo começa o temor."

Talvez por isso o "clima de insegurança" não pára de crescer, e não apenas onde há razões "objectivas" para tal. É a "doença do desejo".

Só a certeza de que o desejo é "impossível" de satisfazer por qualquer objecto da necessidade nos pode resgatar da "felicidade infeliz" que promete o "discurso capitalista", com pompa e circunstância, na era da "globalização".

19.7.05

Mulher sem qualidades

No seu Homem Sem Qualidades, Robert Musil mostra como Ulrich, o herói do romance, perdeu as qualidades no dia em que se deixou fascinar pela matemática, mãe da ciência natural exacta e a avó da técnica, mas também a antepassada da mentalidade que acabou por suscitar os gases tóxicos e os pilotos de guerra. Trata-se de uma metáfora que assinala a progressiva substituição, a partir de Galiléu, da qualidade pela quantidade.

Poderíamos pensar que os portugueses em geral (vejam-se os maus resultados persistentes na disciplina de matemática) se têm furtado a este reino da quantidade e da abstracção. Talvez seja verdade. Mas há agora uma mulher, que por sinal é ministra da educação, que tem feito tudo o que está ao seu alcance, e até - dizem alguns - o que não está para mudar o panorama e fazer entrar definitivamente os portugueses na era do "homem sem qualidades", isto é, no reino da objectividade e do número, não fosse ela da área de "estatística".

Para ela, cheia de empenho, vontade e coragem (afinal, qualidades "não quantificáveis"), não existem sujeitos ou casos singulares, mas tão só a média estatística erigida em norma: quanto podemos poupar ou ganhar com esta ou aquela medida. Os professores portugueses sabem do que eu falo.

Com isto - perguntamos nós, perguntava-se Musil, o que aconteceu à alma? Resposta: "é muito exactamente o que se retrai quando se ouve falar em séries algébricas".

Um homem sem alma é o que chamamos vulgarmente "desanimado", sem ânimo, isto é, sem desejo para "progredir".

Dou um exemplo: Um amigo meu, professor há vários anos, empenhado, tendo feito mestrado à sua custa (sacrificando fins de semana, por exemplo) preparava-se agora para iniciar o doutoramento, tendo pedido para esse efeito uma "equiparação a bolseiro". Esta não lhe foi concedida e ele, desesperado, dizia não saber se tinha capacidade para continuar, pois, com as novas regras de jogo que a ministra introduziu, obrigando os professores a passar mais tempo na escola, ia ficar sem tempo para investigar. E mais vale, segundo ele, não fazer uma coisa do que fazê-la mal feita, mesmo se esta é a regra comum. Procurei dar-lhe ânimo, um "suplemento de alma"..., mas não deixei, também eu, de pensar que já começou...

A "era da estupidificação" geral. E o que é mais grave é que tem agora o patrocínio, o selo e a garantia da ciência mais exacta e da política mais "decidida".

17.7.05

Emoção ou razão?

António Damásio (O Erro de Descartes; O Sentimento de Si; Ao Encontro de Espinosa) poderia dizer que os bombistas suicidas são uma prova "morta" (já que não posso dizer viva) de que a razão sem emoção é uma razão fria, doente. Admitindo que eles terão as suas "razões" para fazer o que fazem...

Os britânicos, por seu lado, são agora admirados em todo o mundo por terem mantido a cabeça "fria", não cedendo à emoção, ainda que tivessem razões para isso.

Em ambos os casos, é preciso muita "frieza" e determinação, mas o sentido (ético) do acto em causa está longe de ser o mesmo.

16.7.05

A inumanidade do humano

Podemos ser tentados a pensar que é a porção animal do homem (também racional, segundo a definição consagrada) que triunfa nos actos bárbaros e "animalescos" a que temos assistido nos últimos tempos.

Ilusão! Os animais guiam-se pelo "instinto", aqui é a "pulsão", para além do instinto, do prazer e da homeostasia, o que triunfa.

A "pulsão de morte", entenda-se. Ou já nos esquecemos do nome que Freud inventou por volta de 1920?

15.7.05

O que irá naquelas cabeças?


Philip Guston, Cabeça, 1975

Aceitam-se sugestões...

Inimaginável

É inimaginável pensar que estas cabeças não estejam todas doentes, de uma qualquer doença do foro neurológico ou outro. Mas é muito mais inquietante admitir que isto pode não ser obra da doença e ser levado a cabo em "perfeita" lucidez.

O intelectualismo de Sócrates (de que ainda somos herdeiros) fazia-o acreditar que a prática do mal se devia à ignorância do bem. Que dizer quando o bem parece coincidir com a escolha do mal, como demonstra a prática terrorista mais bárbara e selvagem dos últimos tempos?

É inimaginável pensar que o "monstro", causador de tudo isto, tenha estado (e continue) entre nós, quando todos os olhares e medidas de segurança estavam voltadas para fora, para longe. Mas sabe-se agora - para assombro de todos - que, afinal, os autores dos atentados são "britânicos", de origem paquistanesa.

Na verdade, eles são difíceis de encontrar e combater porque o seu lugar, a sua morada é em grande medida "atópica", insituável, sem-lugar certo e definido. Não é que eles estejam cá dentro ou lá fora, segundo uma "topologia" simplista, mas estão, ao mesmo tempo, cá dentro e lá fora. A "Al Qaeda" é como Deus: ao mesmo tempo em toda a parte e em lugar nehum. É Deus ao contrário. Uma per-versão (ou, como diria Lacan, uma père-version) de Deus, em particular de um dos seus nomes: Alá. É esta a confusão que se estabelece: visto que eles usam o nome-de-Alá e do Islão, parece que é em nome de Alá e dos Islão que eles actuam. É mais inquietante (e menos sagrado) pensar que o nome de Deus e da religião não passam de uma máscara para disfarçar ou encobrir o "ódio" pelo ser e a "satisfação" demoníaca que estão na base de tais actos.

É inimaginável pensar, para muita boa gente, bem intencionada (veja-se o caso do insupeito Mário Soares) que a causa de tamanha loucura não seja a pobreza e a marginalidade. Sabe-se agora, porém, que os autores dos atentados de Londres estavam (ou pareciam) bem integrados na comunidade e bem com a vida. Daí o choque para aqueles que os conheceram de perto.

Se é verdade, como dizia Leibniz, que tudo tem a sua razão, então há que admitir, neste e noutros casos, que a razão é...louca. O terrorista apenas leva mais longe, expondo "a céu aberto", o que os demais "guardam" e refreiam no sonho e no pesadelo. Eles passam ao acto o que a nós, outros, nem parece passar-nos pela cabeça...

E se, por hipótese hiperbólica, fôssemos todos "terroristas" frustrados?

Inquietante, só de pensá-lo.

13.7.05

Os novos "senhores"

A diferença entre o Senhor e o Escravo (segundo Hegel) é que o Senhor não tem medo de morrer. O Escravo aliena parte da sua liberdade para viver. Já há quem defenda, na sequência dos atentados dos últimos tempos, que teremos de "alienar" uma percela da nossa liberdade em troca de mais segurança.

Serão os terroristas os novos "senhores" do mundo, na medida em que parecem também não ter medo de morrer, e nós, paralisados pelo medo, os novos "escravos"?

12.7.05

Difíceis amores

Moderado pela jornalista Leonor Ferreira e com a participação de Júlio machado Vaz e Gabriela Moita, "Estes Difíceis Amores" é um programa interessante a vários títulos.

As diferentes emissões, tal como sugerido pelo nome do programa, giram em torno da dificuldade do amor e da multiplicidade das formas de amar ou deixar de amar.

Fico sempre a perguntar-me: porque são tão "difíceis" os amores?

Dou uma resposta: porque entre um homem e uma mulher, um homem e outro homem, uma mulher e outra mulher... não há "proporção" sexual, programa ou instinto que indique o "parceiro" certo. É a contingência e não a necessidade "natural" que determina os bons ou os maus encontros. A condição de ser falado e falante "desnaturaliza" irremediavelmente o ser humano. A sexualidade nos animais parece bem mais simples. A não ser, talvez, em alguns animais d'homesticos...

Lacan costumava dizer, na sua "alíngua": Il n'y a pas de rapport sexuel.

9.7.05

A droga da confiança

Tem-se vivido em Portugal (e não só) nos últimos tempos uma "crise de confiança". Os investidores não investem porque desconfiam do futuro; os consumidores não consomem porque desconfiam do presente; uns e outros desconfiam disto e daquilo. Se ao menos houvesse, pensamos nós, pensa o presidente, uma "droga da confiança"...

E é que há mesmo!

Segundo um artigo de António Damásio na revista Nature (cf. Courrier Internacional, 8 a 14 de Julho de 2005, p. 44), a "ocitocina" (de acordo com um estudo levado a cabo por Michael Kosfeld e seus colaboradores do instituto de investigações empíricas de economia da Universidade de Zurique) a ocitocina tem um papel importante nas manifestações de confiança no homem.

Uma dúvida legítima que poderia surgir a partir daqui é se os partidos políticos não se verão tentados a aspergir a multidão com ocitocina nos comícios dos seus candidatos. É uma dúvida formulada pelo próprio Damásio.

Mas pensemos bem: não é verdade que isso já aconteceu? O próprio Damásio reconhece que as técnicas de "marketing" actuais produzem uma secreção natural de moléculas, como a ocitocina, em reacção a estímulos adaptados. Ora, pensemos bem, qual é o estímulo utilizado por todos os políticos, sem excepção, nas últimas campanhas eleitorais? A "fala vazia". A fala que tudo promete durante a campanha eleitoral - levando à segregação da molécula da confiança - para depois tudo retirar. Daí que, defraudadas nas suas expectativas, as pessoas se sintam, com razão, desconfiadas. Porque haveriam de confiar?

A confiança é algo que se ganha ou se perde, aumenta ou diminui, na convivência social. Não é uma coisa que exista por si mesma, independentemente das circunstâncias, da experiência. A não ser que andemos sempre "drogados" de confiança; mas isso também tem o seu preço.

Já agora: porque é que há sempre tendência nestas investigações científicas (neurobiológicas) de esquecer que o homem não é só um animal como os outros, mas também um ser "de palavra". Um ser que dá a sua palavra, que arrisca ou compromete a sua palavra. Dizemos de alguém que merece confiança: é um homem de palavra. Se vivemos num mundo em que a palavra (do Outro) é cada vez mais esvaziada de substância, não terá isso algo a ver - a par, para além ou para aquém da "ocitocina" - com a crise de confiança que atravessamos?

8.7.05

Extra-terrestres


Tom Cruise: um extra-terrestre?

Tom Cruise não é só um talentoso actor de cinema; é também "porta voz da Cientologia" (Courrier Internacional, nº 14, 8 a 14 de Julho de 2005). Parece que ocupa, nesta igreja, um "grau" cada vez mais elevado, segundo a hieraquia da mesma. Nos graus mais elevados, "o cientologista adquire supostamente a faculdade de dominar o seu universo." Por aqui se depreende o "discurso do amo", da mestria que sustenta esta "igreja". Nada de novo debaixo do sol: mudam-se os deuses, os nomes-do-senhor, mas o "discurso" é o mesmo.

Segundo a cosmologia cientologista, os seres humanos transportam as marcas de uma civilização extra-terrestre trazida à terra por um senhor da guerra intergaláctica há vários milhões de anos (Ron Hubbard).

Não deixa de ser interessante esta concepção cosmológica. Interessante porque repetitiva. Há aqui algo de déjà-vu, americano, demasiado americano. Com efeito, não são apenas igrejas como esta, mas igualmente a quantidade assombrosa de programas "americanos" sobre extra-terrestres, em que abundam relatos (reais ou fictícios) sobre "raptos" por extra-terrestres... Dá que pensar!

Talvez a explicação seja mais simples do que pensamos. Isto não quer dizer que seja menos "inconsciente".

Um dos traços que definem a história americana é a expressão "de fora" (extra). Aplica-se a alguém que vem de fora, que é de fora, que não é cá da terra. A América, tal como a conhecemos, foi construída pelos que vieram "de fora" (nomeadamente da Europa), relegando os indígenas cada vez mais para "fora", dentro do seu próprio território e, por fim, eliminando-os ou anexando-os por completo. A América assenta neste duplo "fora" (interno e externo) e nesta dupla "exclusão".

Com a globalização, cresce cada vez mais o sentimento de que, para onde quer que olhem, os americanos encontram apenas o seu reflexo especular. É por isso que têm, de vez em quando, de inventar um "outro" que possam guerrear, um outro que não é lá da terra, que é "de fora". Quando isso não basta, quando o mundo todo parece "a América", então é preciso alguém ou algo "radicalmente de fora" (extra-terrestre) para dar corpo a isso que que todo o americano que veio "de fora" esqueceu, recalcou ou "precluiu". Na impossibilidade de "inscrever" adequadamente este "fora" na sua história, os americanos (é uma generalização, evidentemente) parecem condenados a ser "abduzidos" por ele, sob as mais diversas e estranhas figuras.

Eros ou Thanatos

Uma guerra é desigual quando uma das partes não respeita as regras do "jogo". Parece ser o caso da "guerra" que se trava contra os "terroristas". Aqueles que estão dispostos a morrer e a matar indiscriminadamente não querem propriamente jogar o jogo, antes minar o tabuleiro onde este se desenrola. E não tenhamos dúvidas: o que se visa é minar as "luzes" (Aufklärung) que têm brilhado, mal ou bem, sobre o "ocidente" nos últimos séculos.

Dizia ontem alguém, na televisão (lembro-me de António Vitorino, mas havia outros) que esta guerra só pode vencer-se com "legitimidade moral". Mas como avaliar, medir a "legitimidade moral"?

Não é, com certeza, a legitimidade de "Bush", que esse, ao invadir o Iraque baseado numa mentira, começou mal. Também não é - contrariamente à opinião iluminada de muitos bem-pensantes - a legitmidade dos "pobres". Dizer que estes ataques terroristas se devem às condições de miséria e pobreza que perduram em certos países, é um verdadeiro "atentado" aos pobres. Os pobres de "bens" não são forçosamente pobres de "espírito". Além disso, continuar a pensar que é a pobreza material de certos países que faz deflagrar o rastilho do terrorismo mais bárbaro, é continuar na lógica da "desculpabilização" - tão típica, des resto, ao "ocidente" em que nos tornámos nos últimos anos - que tem poupado dirigentes e políticos desses países - esses, sim, os verdadeiros responsáveis pelo atraso crónico em que os mesmos continuam mergulhados.

A legitimidade moral também não se mede pela capacidade de estar "disposto a morrer" por uma causa. Atar bombas ao corpo e fazer-se explodir no meio da multidão não prova nada a não ser a paixão pelo ódio (do ser) e pela igorância (nada querer saber da causa que nos move).

Se há algo que dá legitimidade moral é a vida. Estar disposto a viver - e não a morrer-, eis o que pode dar legitimidade moral a um acto. Mesmo que o preço a pagar seja a própria morte.

Há uma diferença profunda entre o bombista que reduz o mundo a escombros e o cidadão anónimo (iraquiano, por exemplo) que caminha sobre os escombros como um acto de "fé" para salvar o mundo que acredita ser possível construir. Refiro-me ao dia das eleições no Iraque, onde, apesar da intimidação, muitos quiseram "dar a vida"...pela vida, ao mesmo tempo que outros estavam dispostos a "dar a vida"...pela morte.

Um exemplo ético de como lutar nesta guerra.

7.7.05

A Pulsão de morte


Francis Bacon, Sangue no Chão - Pintura, 1986

A pulsão de morte - na sua versão destrutiva - continua a fazer estragos reais (e não apenas simbólicos ou imaginários) no coração da velha Europa. Desta vez foi em Londres. Da próxima, ainda não sabemos onde será.

Se isto não é a guerra, então o que é isto ?

5.7.05

Que farei quando tudo arde?


Morris Louis, Saf Gimmel, 1959

Cheirava a fumo. Havia fumo no ar, sobre a cidade.

A Tapada de Mafra, diziam os noticiários, ardia de novo, dois anos volvidos sobre o primeiro incêndio. Que fazer quando tudo arde?

Talvez ler: Que farei quando tudo arde (António Lobo Antunes).

Há títulos felizes na infelicidade.

2.7.05

o discurso do capitalista

Era preciso vir um partido de "esquerda" para ter a coragem (fala-se, a torto e a direito, de "medidas corajosas") para ir tão ou mais longe do que foi capaz, até hoje, qualquer partido de direita na consumação do "discurso do capitalismo". Veja-se como eles falam...

Eis a prova - como dizia o poeta - que mudam-se os tempos, mudam-se os partidos, mas já não se muda como soía.

É esta a famosa "douta ignorância" de Sócrates?

A ética do bem dizer

Em Portugal é costume dizer mal de não importa o quê. Abunda o escárnio e a má-língua.

Proponho que, sem dizer bem, se comece a bem-dizer o que se diz, seja mal ou bem.

Como já fizerem, de resto, poetas e escritores diversos.

Eis o princípio da subversão

29.6.05

A verdade e a mentira

Segunda-feira, no programa da RTP1 que se chama "Prós e contras", um dos intervenientes - Medina Carreira - recebeu aplausos da platéia quando, num tom convencido emproado, de quem é dono da verdade, disse mais ou menos isto (cito de memória): As coisas só vão andar quando for dita a verdade, toda a verdade, e não a mentira às pessoas.

Uma tal declaração cai bem nos tempos que correm. É louvável. Porém, importa saber, antes de mais, se é possível dizer toda a verdade.

Todo aquele que faz ou já fez, por exemplo, uma psicanálise, sabe, por experiência própria, que dizer toda a verdade é o mais difícil, se não mesmo impossível. A verdade escorrega como areia por entre as palavras. Ao dizer a verdade, mentimos. Falar é co-mentir a verdade. A estrutura da verdade é a ficção (Lacan).

Se não acreditam em mim, aqui fica o testemunho de alguém que me supera, de longe, na arte de bem-dizer :

VERDADE

"A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

"Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E a segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
se capricho, sua ilusão, sua miopia." (C. Drummond de Andrade)

27.6.05

O que é aquilo ali?


João Cutileiro, Memorial ao 25 de Abril

No alto do Parque Eduardo VII, há, desde há alguns anos, uma obra polémica do escultor João Cutileiro. O que é aquilo ali, perguntavam-se as pessoas por entre um misto de troça e perplexidade? A resposta mais óbvia era, naturalmente: "Aquilo é um pénis".

Mas há uma diferença entre "aquilo" e um pénis. O órgão, como sabemos, murcha após a erecção; aquilo não murcha. Por isso, mais valera chamar-lhe "o-sempre-em-pé". No entender de João Cutileiro, o 25 de Abril é comparável a uma erecção de liberdade que se deseja sempre em pé. Não fosse o "real" do tempo, que tudo muda e transforma em ruína, e assim seria.

Mas "aquilo" não é apenas a "coisa" da cópula ou a "imagem" da erecção, é também o "símbolo" que representa, que diz outra coisa que não está lá, significante para nós, portugueses, de um momento de "corte", de ruptura. Daí o nome com que foi baptizado: "Memorial", isto é, digno de ser retido na memória.

Seja como for, aquilo faz falar ou faz calar. Há os que não cessam de falar disso e os que não cessam de não falar. (Ainda há pouco tempo, durante a feira do livro, tive essa experiência). É a prova de que aquilo não é um "pénis", mas um "falo", isto é, a prova de que nos seres humanos, a sexualidade (pois é disso que se trata e não de outra coisa, como mostra grande parte da criação deste escultor) é indesligável da "fala". É pelo sopro da fala que outro valor mais alto se alevanta para além da pedra bruta. Esculturação da palavra no mármore da carne.

25.6.05

Ironia ou cinismo?


Qual é o burro?

Oliviero Toscani (ex-director de arte e fotógrafo da Benetton) esteve recentemente em Portugal a fotografar...burros. Porque veio ele a Portugal?

Não é, de resto, a primeira vez que o polémico e arrojado fotógrafo está no nosso país. Em 1974, segundo conta, ficou impressionado ao contemplar uma mulher com um burro. Daí nasceu o desejo, algo bizarro, de elevar o burro à categoria de ícone e modelo. Se Duchamp elevou o objecto banal (urinol, roda de bicicleta, pá, etc.) à dignidade da Coisa artística, por que razão não se há-de fazer o mesmo com os burros, enquanto eles existem?

Foi o instinto que trouxe o fotógrafo até Portugal e o conduziu a Miranda do Douro - terra de burros...em extinção. Seria necessário ir tão longe?

O resultado dessa visita - setenta imagens de burros - foi apresentada na quinta edição do Imaginários - Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira.

O fotógrafo explicou, com ironia, que "num mundo cada vez mais tecnológico, a única cabeça que ainda funciona é a dos burros. Reparei no olhar inteligente destes animais. Penso que todos deveríamos voltar a sentir estas sensações".

Coragem, portugueses, estamos no bom caminho!

24.6.05

Fazer as malas


Tadeusz Kantor, Edgar Warpol: O Homem com Malas, 1967-8

Perante o "quadro negro" que tem sido pintado, nos últimos tempos, pelos artistas da prestidigitação, há já quem pense em fazer as malas e ir para fora. Houve até colegas a sugerir-me, segundo uma tese bem marxista, que não é a hora de pensar, mas agir, de fazer a revolução.

Ir para fora lá fora, não é algo muito novo em Portugal. Sempre fomos para fora como marinheiros, emigrantes, turistas (menos), etc. Mas ir para fora cá dentro - como dizia um anúncio há alguns anos - é mais difícil e não muito habitual. Sobretudo quando lá fora cá dentro, não implica uma deslocação do corpo, mas antes uma subversão do sujeito.

É preciso fazer a subversão!

"Atopia" vai dando o seu modesto contributo.

23.6.05

Portugal: um quadro negro


K. Malevitch, Quadrado Negro Sobre Fundo Branco, 1915

Nunca um quadro abstracto foi tão concreto e figurativo!

21.6.05

Agir ou não agir

Hamlet é o exemplo perfeito do sujeito que vacila no seu acto porque sabe, lá no fundo, que é ele mesmo o visado.

Perante os recentes acontecimentos na área da grande Lisboa e não só (arrastões nas praias, crimes, onda de de assaltos, etc.) e a reacção hesitante das entidades competentes (governo, polícicia, etc.), fiquei a pensar: porque há este sentimento geral de que a resposta dada por parte destas entidadesé sempre vacilante, como se houvesse uma culpa "inconsciente" a tolher os passos, as decisões, e a impedir de agir?

Só vacila quem se sente, de alguma forma, dividido, culpado.

O que é certo é que a ausência de uma resposta adequada, justa, por quem de direito só pode levar a que cresçam as respostas fora-da-lei (vejam-se as milícias, o recrudescimento de grupos de extrema direita) com consequências, no mínimo, imprevisíveis.

É preciso responder à altura, agir sem vacilar.

Negros, brancos, mulatos, claros, escuros, etc., são todos iguais - na sua diferença - perante a lei. Por isso, devem ser tratados de forma igual. Ao "desculpar" um delito a este ou àquele devido à cor da pele, é a primeira forma de "racismo" e discriminação. Ao desculpar os jovens porque...são jovens é o primeiro floco para a bola de neve.

Não se trata de "desculpar" o sujeito, seja ele qual for, porque, antes de mais, somos todos culpados. Ao menos, "no inconsciente".

17.6.05

A paixão da avaliação

Há palavras assim: parecem mágicas, capazes de abrir todas as portas, de resolver todos os problemas. A "avaliação" é uma dessas palavras. Por tudo e por nada, diz-se: "há que avaliar!"

Quando alguém diz, por exemplo - como tem sido o caso nos últimos dias - que os professores têm de ser avaliados (o que, na essência, ninguém contesta) é importante saber quem fala e qual a posição "subjectiva" (pois nunca é neutra, contrariamente ao que se pretende fazer crer) de onde se fala; em nome de que critério ou critérios supostamente "objectivos"; com que finalidade "estatística"...etc.

Depois de responder a todas estas perguntas - e as demais que possamos formular - não será difícil concluir que a bandeira da avaliação é agora empunhada por aqueles pelos mesmos que, em outros tempos, empunharam a bandeira da "educação": a famosa "paixão da educação" que deu no que deu, isto é, em nada. Como em todas as paixões, o entusiamo é directamente proporcional à cegueira, ainda que inversamente proporcinal ao tempo, ou seja, quanto maior é o tempo, menor a chama.

"A avaliação é esencialmente uma retórica. Os avaliadores são os sofistas de hoje" (Cf. Jacques-Alain Miller e Jean Claude Milner, Voulez-vous être évalué?, Paris: Édition Grasset, 2004).

A "avaliação", que começa a fizer sintoma, é um fantasma "moderno" na era pós-moderna.

A "singularidade" não se avalia e uma cultura que deixe de cultivar a singularidade (em que tudo seja mensurável segundo uma medida comum) já está, num certo sentido, morta.

16.6.05

Fazer silêncio!


Ed Ruscha, Noise, 1963

Quando se "escuta" a obra de Jonh Cage 4'33, o que se "ouve" ao longo de quatro minutos e trinta e três segundos não é o "silêncio", mas o som, o ruído ou o barulho de tudo o que acontece à volta. Fazer silêncio durante um certo tempo é um convite a "escutar", de novo, o que é velho para os nossos sentidos.

Em psicanálise, também se faz silêncio. E o que é mais paradoxal é que esse silêncio pode ser o que fala mais alto, o que é mais ensurdecedor.

Fazer silêncio é o coração da fala, a que só o parlêtre (o ser falado e falante) tem acesso. Os "papagaios" podem falar, imitar a fala (até certo ponto, claro), mas não podem fazer silêncio.

Cunhal e o papa

Não há aparentemente nada mais diverso e incompatível entre si que "catolicismo" e "comunismo". Entre o sumo pontífice dos católicos (o santo padre) e o sumo pontífice dos comunistas portugueses (Cunhal) parece não haver mais proximidade que entre a água e o azeite.

E, no entanto, ao ver, por estes dias, a multidão a aclamar o pai-morto (veja-se, por exemplo, a imagem que vinha hoje no Público), a compará-lo a Cristo (só faltou crucificá-lo, como dizia alguém, emocionado, no Fórum da TSF), a pedir que seja elevado a "santo"..., reconheci nisto algo de déjà-vu.

Deixando de lado as "pequenas diferenças", o que move uns e outros parece ser mais comum do que se imagina (do que imaginam os próprios) e religá-los todos - segundo a etimologia da palavra religião - num mesmo "ideal": humano, demasiado humano.

No inconsciente, os extremos tocam-se. Cristo: o primeiro comunista. Cunhal: o último Cristo.

O desejo do outro

Parafraseando José Gil, poderíamos dizer que nós, portugueses, temos um certo "medo de existir" sem um espelho que nos reflicta e onde nos possamos rever e comparar.

É actualmente "in" a comparação com finlandeses, irlandeses e outros "eses" quejandos, como se eles fossem um espelho que reflecte as nossas imperfeições e, ao mesmo tempo, um modelo a seguir que nos serve de referência.

No fundo, os outros (países) somos nós "idealmente" considerados: revemos-nos neles, constituímo-nos neles a através deles. Eles são, para nós, uma espécie de "eu-ideal", colectivo, especular.

O nosso desejo - como diria Hegel - é o desejo do outro. Eis a nossa costela "histérica": moldamos-nos facilmente, aparentemente, ao desejo do outro, ainda que, lá no fundo, isso não nos diga "nada".

E assim evitamos confrontar-nos com a única pergunta que vale a pena: o que queremos fazer de nós, para nós, singulares que somos, independentemente do que os outros, mais decididos, quiseram para eles.

15.6.05

A Coisa


Zoran Music, quadro da série "Não somos os últimos", 1973

"Contar bem, quer dizer: de maneira a fazer-se ouvir. Tal não se consegue sem um pouco de artifício. O quanto baste para que isso se torne arte" (Jorge Semprun, A Escrita ou a Vida)

Humano, demasiado inumano

Quando se comemoram os 60 anos da libertação de Auschwitz (que não teve piada nenhuma, apesar do nome) e da "queda" do regime Nazi, vale a pena reflectir um pouco. O pretexto destas reflexões é o filme do alemão Oliver Hirschbiegel, "A Queda" (der Untergang); filme que passou recentemente nas salas de cinema, com um desempenho magistral de Bruno Ganz no papel de Hitler.

1. A "grandeza" deste filme intenso, embora polémico (os críticos não chegam a acordo sobre a qualidade do mesmo) reside no facto de conseguir misturar o humano com o inumano. Não nos apresenta uma besta fria, como estávamos à espera; pelo contrário, as cenas inciciais são quase ternurentas. A atitude compreensiva de Hitler para com a secretária, bem como os gestos carinhosos para com o cão, chegam a ser comoventes. Daí que se torne mais poderoso o efeito horrível da frieza e exaltação que move a máquina de morte, robotizada, banalizada (como se o mal pudesse ser banalizado, como sugeriu H. Arendt) que nos vai sendo progressivamente revelada.

2. Numa passagem do filme, quando a queda, inevitável, está iminente, Hitler fala da decadência das democracias ocidentais enquanto rejubila com a observação da maquete (na sua imponência clássica) do que seria a "reconstrução de Berlim" após o fim da guerra. A passagem é ética, estética e politicamente ilustrativa. Com efeito, entre outras coisas, o que combatia Hitler nas "democracias ocidentais" era a sua imperfeição. Paradoxalmente, é esta a sua vantagem relativamente a outros regimes. Não é um regime perfeito, longe disso, mas um regime que coabita, que aceita a imperfeição do mundo e do ser humano (diferentemente do nazismo ou do comunismo, Hitler e Staline irmanados, apesar de estarem em campos opostos).

3. O filme é supostamente baseado nas memórias da secretária de Hitler e concentra-se, por inteiro, nos últimos dias antes da queda do regime, quando as tropas russas já cercam Berlim por todos os lados. Há, no fim, uma frase da ex-secretária que dá sentido, après-coup toda uma vida e a todo o filme. Diz ela - cito de memória: "ser jovem não é desculpa". Ela era uma jovem quando conheceu Hitler, tinha apenas 22 anos, não queria saber, como os demais. É uma espécie de mensagem voltado para o presente e o futuro. "Aquilo" aconteceu uma vez, ali, pode voltar a acontecer noutros lugares; não, talvez, da forma que se teme - pois as coisas nunca se repetem da mesma forma -, mas segundo novas manifestações igualmente horríveis. O "real" é impossível de prever e espreita onde menos se espera.

4. Sendo baseado nas memórias de alguém, o filme situa-se num lugar intermédio entre o real e a ficção. Não abdica inteiramente do "amor da verdade", mas sabe igualmente que se trata de uma "construção" ou "reconstrução" sobre o "real". E é aqui que a questão se coloca: é ou não legítimo (e possível) que a ficção se aproprie da verdade "horrível" da Coisa mesma?

5. A Coisa- para dizê-lo assim -é o que deve, segundo alguns, permanecer sem nome, inominável. É o que pensam todos aqueles que sobre o "holocausto", por exemplo, consideram, não sem paradoxo, que os únicos e verdadeiros testemunhos seriam precisamente aqueles que não podem testemunhar porque não sobreviveram. Com a sua morte, todo o testemunho parece ferido de "culpa", de "inautenticidade". Por isso, como dizia o filósofo Wittgenstein, devemos calar-nos sobre o que é impossível de dizer. Mas não era isso, precisamente, o desejo, mais ou menos inconfessado, do nazismo: que todos se calassem sobre "isso" ...que jamais aconteceu?

6. Ao calar-se sobre o "real", o que se perpetua é a "forclusão" (Lacan), a "não-inscrição"(José Gil) do mesmo. E, além, disso, o que acontecerá quando todos os "testemunhos" vivos da Coisa tiverem desaparecido para sempre? Quem fará, então, a pergunta inevitável: como foi possível? Quem avivará a memória dos jovens - que já começam a perdê-la -, para que eles não venham depois lamentar que "não sabiam de nada". Ser jovem não é desculpa...

7. Talvez seja políticamente incorrecto defender que estes impasses só terão uma resposta quando a ficção, sem reticências, hesitações e complexos de culpa, tomar nas suas mãos as rédeas da verdade. Efectivamente, na "bulimia" de imagens a que nos habituámos, que efeito podem ter ainda em nós as imagens do "holocausto"? Cada vez mais desbotadas, insignificantes, anódinas. É por isso que um dos poucos sobreviventes ainda vivos do holocausto - Jorge Semprun - defende abertamente, e sem complexos, a via da ficção. Didáctico, não?

O neto de Freud


Lucian Freud, Leigh sob a Clarabóia, 1994

Se a "forma" do corpo que tende a ser exibida e a triunfar no mundo contemporâneo é despida de toda a rugosidade, de toda a carnalidade, aqui, pelo contrário, é o "retorno do recalcado" da carne - parafraseando o avô Sigmund Freud - que faz aparição e é exibido.

É certo que Freud, o avô, não teria apreciado isto: ele que era fascinado por pintura "clássica".

Curiosamente, por caminhos aparentemente tão diversos, o neto e o avô acabam por encontrar-se. Ambos apontam para o "real" (da carne, da pulsão) contra o "imaginário" (do corpo, do "eu").

O "inconsciente" escreve direito por linhas tortas.

14.6.05

Poesia e política

Morreram, por estes dias, dois homens que marcaram gerações.

Um era poeta: Eugénio de Andrade; o outro, político: Álvaro Cunhal.

O primeiro cuidava de dizer-bem; o segundo, de fazer-bem.

Só que o primeiro fazia bem o que dizia; enquanto o segundo dizia mal o que fazia.

Um escolheu a poesia por ser boa política; o outro, ao escolher a política, fez má poesia.

Política é má poesia. Poesia é boa política.

Paradoxalmente, ao escolher a verdade, Álvaro acabou por mentir.

Ao escolher "mentir", Eugénio acabou por dizer a verdade.

Preciosidades

Pode escutar-se actualmente, em directo ou em diferido, na rádio France Culture o programa "Histoire de...la Psychanalyse" com Jacques-Alain Miller.

Cada emissão é uma verdadeira preciosidade.

É seguir o link abaixo:

http://www.radiofrance.fr/chaines/france-culture

13.6.05

Um livro para todos e para ninguém


Filipe Pereirinha, Psicanálise & Arredores, Edições Universitárias Lusófonas, Maio de 2005

"Ao definir o inconsciente como um 'território estranho interno', Freud mostra-nos que entre o privado e o público, o interior e o exterior, a psicanálise e os seus arredores não há apenas uma simples oposição, mas igualmente uma estranha familiaridade. Bem cedo, com efeito, a invenção freudiana, extravasou para fora de muros, vindo interpelar e sendo interpelada pelo mundo. É uma eco dessa interpelação mútua o que aqui se joga".

Diz-se de um homem que ele deve fazer pelo menos três coisas na vida para sentir-se realizado: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro.

Pronto. Já está. E agora?...

"

8.6.05

Porque são as mulheres mais complicadas que os homens

Ouvi há poucos dias, numa série que passa actualmente na Sic - Mulher, uma personagem fazer a pergunta: porque são as mulheres mais complicadas que os homens? A série é interessante e está bem feita; por isso, fiquei a ver.

A resposta, vinda de uma outra personagem, foi mais ou menos esta (reproduzo de memória): porque os homens nunca sabem o que elas querem enquanto elas sabem sempre o que os homens querem, pois todos querem a mesma coisa. Creio, aliás, que quem deu esta resposta foi uma personagem do sexo feminino.

Seja como for e independentemente do maior ou menor simplismo que há sempre neste tipo de generalizações, a frase é ilustrativa pelo facto de colocar a bola do "todo" no campo masculino (todos os homens), enquanto as mulheres são sempre mais "complexas" (para os homens e talvez para si mesmas) visto que, do seu lado, não há "todo". As mulheres dificilmente fazem conjunto. Podem fazer série, mas não é sério dizer que façam conjunto. Podemos, até certo ponto e de forma sempre contingente, saber o que quer esta ou aquela ou a outra, mas dizer "todas querem" já é mais difícil, senão mesmo impossível.

Lembro que este quebra-cabeças já fazia a cabeça de Freud andar à roda. Nada de novo debaixo do sol.

Filmes. Séries.

6.6.05

Inter-ditos


José Martinho, Ditos III, Conferências Psicanalíticas

"Este é um livro indispensável para aqueles que desejam realmente saber quais os novos desafios que o mundo lança à psicanálise e esta lança ao mundo"

5.6.05

Curvas...


François Boucher, Odalisca, 1745

Um estudo dinamarquês concluiu recentemente que a esperança de vida é maior nas mulheres com "curvas" (ancas) largas.

É bem dito e bem achado! Pois se a recta é o caminho mais curto entre dois pontos, a curva é o caminho mais longo.

É por isso que o desejo gosta de curvas, preferindo o caminho mais longo e escrevendo direito por linhas tortas.

3.6.05

Aquecimento...


Christian Staub, Aquecimento, 1953

Há quem pense - e talvez com razão - que a viragem acrobática de Sócrates e deste governo, bem como a posição acrobática (nem sequer o autor do Kama Sutra chegou a tanto!) a que está a obrigar os portugueses é apenas o "aquecimento"...

Há quem pense que o "não" de franceses e holandeses ao Tratado Constitucional Europeu é apenas o aquecimento, o balão de ensaio para outros "nãos" que vêm já a caminho. É o que acontece quando se pretende construir o que quer que seja "excluindo" o interesse dos sujeitos implicados na questão. ..

Há quem pense que a balbúrdia que vai na economia (e quem sabe que mais) do mundo inteiro, devido, nomeadamente, à entrada da china na "era da globalização", é apenas o princípio, o aquecimento...

Há quem pense que o próprio "aquecimento", a grande seca a que temos vindo a assistir, é apenas o aquecimento, o começo...

Assim vamos nós, a europa e o mundo.