15.6.05

Humano, demasiado inumano

Quando se comemoram os 60 anos da libertação de Auschwitz (que não teve piada nenhuma, apesar do nome) e da "queda" do regime Nazi, vale a pena reflectir um pouco. O pretexto destas reflexões é o filme do alemão Oliver Hirschbiegel, "A Queda" (der Untergang); filme que passou recentemente nas salas de cinema, com um desempenho magistral de Bruno Ganz no papel de Hitler.

1. A "grandeza" deste filme intenso, embora polémico (os críticos não chegam a acordo sobre a qualidade do mesmo) reside no facto de conseguir misturar o humano com o inumano. Não nos apresenta uma besta fria, como estávamos à espera; pelo contrário, as cenas inciciais são quase ternurentas. A atitude compreensiva de Hitler para com a secretária, bem como os gestos carinhosos para com o cão, chegam a ser comoventes. Daí que se torne mais poderoso o efeito horrível da frieza e exaltação que move a máquina de morte, robotizada, banalizada (como se o mal pudesse ser banalizado, como sugeriu H. Arendt) que nos vai sendo progressivamente revelada.

2. Numa passagem do filme, quando a queda, inevitável, está iminente, Hitler fala da decadência das democracias ocidentais enquanto rejubila com a observação da maquete (na sua imponência clássica) do que seria a "reconstrução de Berlim" após o fim da guerra. A passagem é ética, estética e politicamente ilustrativa. Com efeito, entre outras coisas, o que combatia Hitler nas "democracias ocidentais" era a sua imperfeição. Paradoxalmente, é esta a sua vantagem relativamente a outros regimes. Não é um regime perfeito, longe disso, mas um regime que coabita, que aceita a imperfeição do mundo e do ser humano (diferentemente do nazismo ou do comunismo, Hitler e Staline irmanados, apesar de estarem em campos opostos).

3. O filme é supostamente baseado nas memórias da secretária de Hitler e concentra-se, por inteiro, nos últimos dias antes da queda do regime, quando as tropas russas já cercam Berlim por todos os lados. Há, no fim, uma frase da ex-secretária que dá sentido, après-coup toda uma vida e a todo o filme. Diz ela - cito de memória: "ser jovem não é desculpa". Ela era uma jovem quando conheceu Hitler, tinha apenas 22 anos, não queria saber, como os demais. É uma espécie de mensagem voltado para o presente e o futuro. "Aquilo" aconteceu uma vez, ali, pode voltar a acontecer noutros lugares; não, talvez, da forma que se teme - pois as coisas nunca se repetem da mesma forma -, mas segundo novas manifestações igualmente horríveis. O "real" é impossível de prever e espreita onde menos se espera.

4. Sendo baseado nas memórias de alguém, o filme situa-se num lugar intermédio entre o real e a ficção. Não abdica inteiramente do "amor da verdade", mas sabe igualmente que se trata de uma "construção" ou "reconstrução" sobre o "real". E é aqui que a questão se coloca: é ou não legítimo (e possível) que a ficção se aproprie da verdade "horrível" da Coisa mesma?

5. A Coisa- para dizê-lo assim -é o que deve, segundo alguns, permanecer sem nome, inominável. É o que pensam todos aqueles que sobre o "holocausto", por exemplo, consideram, não sem paradoxo, que os únicos e verdadeiros testemunhos seriam precisamente aqueles que não podem testemunhar porque não sobreviveram. Com a sua morte, todo o testemunho parece ferido de "culpa", de "inautenticidade". Por isso, como dizia o filósofo Wittgenstein, devemos calar-nos sobre o que é impossível de dizer. Mas não era isso, precisamente, o desejo, mais ou menos inconfessado, do nazismo: que todos se calassem sobre "isso" ...que jamais aconteceu?

6. Ao calar-se sobre o "real", o que se perpetua é a "forclusão" (Lacan), a "não-inscrição"(José Gil) do mesmo. E, além, disso, o que acontecerá quando todos os "testemunhos" vivos da Coisa tiverem desaparecido para sempre? Quem fará, então, a pergunta inevitável: como foi possível? Quem avivará a memória dos jovens - que já começam a perdê-la -, para que eles não venham depois lamentar que "não sabiam de nada". Ser jovem não é desculpa...

7. Talvez seja políticamente incorrecto defender que estes impasses só terão uma resposta quando a ficção, sem reticências, hesitações e complexos de culpa, tomar nas suas mãos as rédeas da verdade. Efectivamente, na "bulimia" de imagens a que nos habituámos, que efeito podem ter ainda em nós as imagens do "holocausto"? Cada vez mais desbotadas, insignificantes, anódinas. É por isso que um dos poucos sobreviventes ainda vivos do holocausto - Jorge Semprun - defende abertamente, e sem complexos, a via da ficção. Didáctico, não?

1 comentário:

Anónimo disse...

A pergunta: "Para onde nos levam?" Olhar,não ver ou não querer ver, a ignorância de quem obedece, a resposta: um tiro. Agora já não há a pergunta incomodativa, pelo horror que traz consigo ou meramente porque dá muito trabahlo responder.Passa-se numa praça do guetho judeu em Varsóvia, a minutos de começar a deportação de milhares de pessoas desprovidas da seu ser próprio de pessoa.
É terrível, é inumano, ou então demasiado humano (deixamos de lado a(s) característica(s) que, ainda, nos distingue(m) dos animais; avancemos na narrativa que nos pode fazer ver o que muitas vezes não queremos ver, digamos, contemos, para a que desculpa de não saber não nos torne menos responsáveis. Obrigada a todos os que são capzes de falar apesar de procurarem o esquecimento, obrigada a Wladysiaw Szpilman, a Roman Polansky e a todos os outros, apagados, anónimos, mas nem por isso menos sujeitos.