Há cada vez mais "livros negros" sobre isto e aquilo.
Estando inscrito no "programa das luzes" que a luz da razão deve eliminar progressivamente as trevas, um "livro negro" é o que pretende denunciar o que permanece de "obscuro" num domínio supostamente já "iluminado".
Ao chamar "Livro Negro da Psicanálise" (Éditions Les Arènes) ao mais recente ataque à "invenção de Freud", os autores (Mikkel Borch-Jacobsen et Didier Pleux, entre outros) não conseguem ocultar a clareza do seu propósito mais obscuro: trata-se de denunciar, de desmascarar Freud e os seus seguidores, como uma imensa turba de charlatães e uma "falsa ciência"; daí que se trate, para eles, segundo a fachada do espírito crítico que ostentam, de "aller sans Freud".
Mas "avançar sem Freud" para onde e em nome de quê? Se a psicanálise é uma "falsa ciência" (uma "impostura intelectual", segundo o termo que outros puseram na moda) e uma prática "fraudulenta", então deve opor-se-lhe a "verdadeira ciência" e a a prática adequada.
E quais são elas, segundo os autores? As "terapias cognitivo-comportamentais".
Por aqui se percebe que não é em nome de uma qualquer neutralidade científica que a psicanálise é criticada, mas antes pelo facto de que ela é o último bastião de resistência antes do triunfo definitivo destas "terapias" que, aliadas à farmacologia, pretendem "eliminar o sintoma" em pouco tempo e de forma eficaz graças à "exclusão" do sujeito (falado e falante).
Porém, cada vez que é atacada - como sublinhava Jacques-Alain Miller numa entrevista ao "Le Point"(22/09/05, p. 80) - a psicanálise demonstra que está viva, tão viva que (ainda) incomoda muita gente.
É evidente que ela pode desaparecer. Nada está ganho definitivamente, de uma vez por todas; a psicanálise não é excepção. Ela depende apenas do "desejo decidido" dos que a praticam (analistas), dos que demandam uma análise (analisandos) ou dos que, sem ser analistas ou estar presentemente em análise, a respeitam enquanto "marca" inolvidável na civilização.
José Gil levantava a questão perturbadora, no seu último livro (Portugal, hoje, O medo de existir), se um país como Portugal, com mais de oito séculos de história, não poderá pura e simplesmente desaparecer um dia destes. A longevidade não garante uma existência. A psicanálise é bem mais nova que Portugal. Poderá ela desaparecer como prática, como teoria e como fenómeno civilizacional?
Agustina Bessa-Luís dizia, numa entrevista recente na televisão, com a frontalidade que lhe é habitual, que a literatura já tem uns bons séculos e pode bem ser, por isso, que esteja a chegar ao fim. Como Hegel dizia da arte, "coisa do passado". Ou Nietzsche de Deus. O que nos resta se tudo isto desaparecer ( a literatura, a arte, a psicanálise, etc.) senão o triunfo definitivo da ciência (transformada em "cientismo", porque sem a "guerra fria" da oposição, do Outro), do "comportamentalismo" (reduzindo a complexidade do sujeito e da condição humana a fenómenos "estatísticos": observáveis, avaliáveis e quantificáveis) e da farmacologia (tratando todos os sintomas, físicos e psíquicos, com pequenas pílulas mágicas).
Italo Calvino, sem dar atenção aos que falavam já da "morte da literatura", chamou a um ensaio: "Seis propostas para o próximo milénio". Propostas que relevam de um "desejo decidido" de continuar com a literatura por muitos e muitos anos porque vale a pena continuar. Se isso desaparecer, o mundo não fica mais rico, mas mais pobre.
Na "era da ciência", os jovens reuniram-se em Colónia em torno de alguém (Bento XVI) que lhes falava não a linguagem das "quantidades", mas antes das "qualidades ético-morais"; anacronia que arrasta multidões desencantadas com a frieza do mundo técnico-científico. Não foi "Deus" que morreu, afinal, como pretendia Nietzsche...
O que retorna, com uma força nova, na religião (a tal ponto que há já vários livros e revistas consagrados ao fenómeno) é também o "sujeito" excluído da ciência e dos seus anexos.
É deste "sujeito" (sempre atópico e rebelde à "fixação") que se ocupa, desde Freud, isso a que se chama psicanálise.
2 comentários:
Contente por saber que o «homem» da atopia não morreu!
Penso que será importante a psicanálise dar uma resposta, que de resto está a ser dada, mas tendo também em conta a consideração do José Martinho, nos ditos III, de que a psicanálise "não pode nem deve querer competir com a psicofarmacologia e as psicoterapias «científicas» na actual corrida para eliminar sintomas"
Faço a sugestão de que se pode elevar a argumentação para um outro nível, que não o da rivalidade terapêutica em que eles nos querem colocar, ao fazer uma leitura do lugar que as técnicas cognitivo-comportamentais ocupam actualmente, enquanto um «sintoma» da própria sociedade «pós-moderna».
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