13.12.05

A fonte da cultura


DUCHAMP, Marcel, Fonte, 1968

Num texto recentemente publicado pelas Éditions du Seuil, « Mon einseignement, sa nature et ses fins » (in Mon Einseignement, 2005), Jacques Lacan diz o seguinte : « Diferentemente do que se passa em todos os domínios do reino animal (…) o homem caracteriza-se na sua natureza pelo extraordinário embaraço que lhe dá – como chamar isso? Meu Deus, da maneira mais simples – a evacuação da merda” (p. 82).

É uma passagem onde se fala da TV como um veículo que permitirá, de ora em diante, a cada um de nós chegar a todo o instante à cena do mundo (antes da hegemonia da televisão, dir-se-ia o palco) para estar ao corrente de tudo o que é cultural. Nada do que é cultural nos escapará.

Relacionar o mais “sublime” da espécie humana com o mais “abjecto”, não deixa de ser paradoxal. No entanto, Marcel Duchamp não fez outra coisa, ao virar toda a cultura do avesso para a fazer beber numa “fonte” de água muito pouca benta: o seu famoso “urinol”.

Quando ontem, na Sic, ao fazer um zapping entre o sexo dos anjos (a conversa fiada dos políticos) e o Absexo (conversa desfiada sobre sexual -idades), deparo com um sujeito – chamo-lhe assim porque desconheço o seu nome (não tenho muita cultura televisiva) – sentado em cima de uma sanita a dizer coisas sobre…merda. Usando metáforas, metonímias e outros quejandos retóricos, ele falou, durante um bom pedaço de tempo, das várias formas de evacuar e dos prazeres ou desprazeres a isso associados.

Eis para que serve a TV: para dar a merda a ver (pois os olhos também comem) como um prato culturalmente requintado!

Isso obra, isso fala, isso faz falar, isso dá que falar. É toda uma cultura, todo um mundo imundo.

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