No seu Homem Sem Qualidades, Robert Musil mostra como Ulrich, o herói do romance, perdeu as qualidades no dia em que se deixou fascinar pela matemática, mãe da ciência natural exacta e a avó da técnica, mas também a antepassada da mentalidade que acabou por suscitar os gases tóxicos e os pilotos de guerra. Trata-se de uma metáfora que assinala a progressiva substituição, a partir de Galiléu, da qualidade pela quantidade.
Poderíamos pensar que os portugueses em geral (vejam-se os maus resultados persistentes na disciplina de matemática) se têm furtado a este reino da quantidade e da abstracção. Talvez seja verdade. Mas há agora uma mulher, que por sinal é ministra da educação, que tem feito tudo o que está ao seu alcance, e até - dizem alguns - o que não está para mudar o panorama e fazer entrar definitivamente os portugueses na era do "homem sem qualidades", isto é, no reino da objectividade e do número, não fosse ela da área de "estatística".
Para ela, cheia de empenho, vontade e coragem (afinal, qualidades "não quantificáveis"), não existem sujeitos ou casos singulares, mas tão só a média estatística erigida em norma: quanto podemos poupar ou ganhar com esta ou aquela medida. Os professores portugueses sabem do que eu falo.
Com isto - perguntamos nós, perguntava-se Musil, o que aconteceu à alma? Resposta: "é muito exactamente o que se retrai quando se ouve falar em séries algébricas".
Um homem sem alma é o que chamamos vulgarmente "desanimado", sem ânimo, isto é, sem desejo para "progredir".
Dou um exemplo: Um amigo meu, professor há vários anos, empenhado, tendo feito mestrado à sua custa (sacrificando fins de semana, por exemplo) preparava-se agora para iniciar o doutoramento, tendo pedido para esse efeito uma "equiparação a bolseiro". Esta não lhe foi concedida e ele, desesperado, dizia não saber se tinha capacidade para continuar, pois, com as novas regras de jogo que a ministra introduziu, obrigando os professores a passar mais tempo na escola, ia ficar sem tempo para investigar. E mais vale, segundo ele, não fazer uma coisa do que fazê-la mal feita, mesmo se esta é a regra comum. Procurei dar-lhe ânimo, um "suplemento de alma"..., mas não deixei, também eu, de pensar que já começou...
A "era da estupidificação" geral. E o que é mais grave é que tem agora o patrocínio, o selo e a garantia da ciência mais exacta e da política mais "decidida".
1 comentário:
Tomando o seu post anterior, permito-me a afirmar que a era da estupidificação geral é também a era da razão sem emoção, a era das "políticas algébricas". Se tomarmos a ficção científica como uma janela para o futuro, chegará a altura em que, para se defender uma democracia mais algébrica, o lugar do poder será assumido pela "máquina-pensante".
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