22.12.10

A paixão da elucidação

Lacan era um psicanalista difícil, diz-se. E é verdade. A sua escrita não convida ao fast food. À compreensão fácil e apressada. Não se pode ler Lacan a correr. Nem toda a velocidade é adequada para ler qualquer autor. É preciso encontrar a velocidade, o ritmo certos.

Criou-se a ideia de que era impossível ler Lacan. Tal como o último Joyce, por exemplo.

O que fez Jacques-Alain Miller, ao longo de vários anos, foi mostrar que esta ideia não passa de um mito. Não só é possível ler Lacan como, além do mais, ele é um "autor" cristalino.

Significa isto que Miller se limitou a "elucidar"  Lacan (como o discípulo que se apaga frente ao brilho do mestre) ou, pelo contrário, que foi trilhando o seu próprio caminho na esteira da "orientação lacaniana? Há um pensamento de Jacques-Alain Miller?

Nicolas Floury - Psicólogo clínico e doutorando em filosofia na Universidade de Paris X - responde afirmativamente à questão. Daí que se tenha proposto introduzir-nos ao pensamento de Jacques-Alain Miller.

É um livro de fácil leitura, e que mostra que o rigor e a profundidade casam perfeitamente (há casamentos felizes!) com a clareza a a simplicidade de expressão. Foi isto, aliás, o que sempre mostrou o próprio Jacques-Alain Miller. Sem qualquer esquema complicado no seu interior, este é um livro que introduz não só ao pensamento de Miller, como esclarece, de um modo claro, certos pontos obscuros do pensamento de Jacques Lacan.

A ler.

16.12.10

"O senhor acontece"

Há um "bairro" muito particular que é habitado apenas por "senhores": O Senhor Valéry, o Senhor Calvino, o Senhor Breton, o Senhor Eliot e muitos outros. É um bairro em construção. O seu arquitecto é o escritor Gonçalo M. Tavares.

Os habitantes desse bairro, são, no fundo, nomes que habitam o lugar da coisa. Epitáfios. Inscrições tumulares que desenham o contorno de um vazio, elevando à dignidade do significante o que falta no real.

"O Senhor acontece" - como gostava de ser chamado Carlos Pinto Coelho - se bem que não habitasse o "bairro", deixa, também ele, um vazio, em particular no mundo da comunicação social. Era um dos raros nomes que continuava a resistir contra o lixo televisivo que não pára de crescer.

Um senhor.

14.12.10

Discurso da crise

Jacques Rancière, em entrevista conduzida por António Guerreiro (Revista "Actual", Expresso, 11 de Dezembro), estabelecia uma diferença, crucial, entre a "polícia" e a "política".

No discurso "policial" sobre a crise, a "política" demite-se. A ideia é que não há alternativa e, como tal, devemos seguir a via, única, do "consenso", do "politicamente correcto".

Se a política, mais do que a legitimação ou o exercício "natural" do poder, é uma abertura de "possíveis", tal significa que não tem havido lugar para a política no(s) discurso(s) sobre a crise; apenas a via - inescapável - do pensamento, da solução única: "o economicamente correcto".

Quantos passos vão da "solução única" à "solução final"?

2.12.10

Tudo a céu aberto

Procura-se o homem: Julian Assange, o australiano, fundador da Wikileaks, que divulgou documentos que comprometem, em particular, a diplomacia norte-americana. Ele é actualmente uma dor de cabeça monumental para muitos responsáveis (responsáveis?) do planeta. 

Mas não se limitou este jornalista a levar à letra aquilo a que Gonçalo M. Tavares chama, no seu último livro, "racionalidade do século XXI"?

Há ainda quem julgue "que ser racional é pensar. Mas nada disso, pois claro. No século XXI: ser racional é ver" (Matteo perdeu o emprego, p. 173).

A era do "olho absoluto", das portas escancaradas - para o bem, para o mal, para outra coisa qualquer - está ainda no começo e já faz inúmeros estragos. É o lixo do mundo a vir à tona, a subir de nível, como se diz numa outra história de Matteo perdeu o emprego ("Diamond e o ensino", pp. 41-45).

Foi-se o pudor, ficou a vida nua.

Nua?

30.11.10

Andar à roda

Se houve coisa que mudou nos últimos anos em Portugal foi o número de rotundas. O país está cheio rotundas. Diminuiu a natalidade, como se pode ver no site Pordata, mas não param de nascer rotundas.

Para que serve uma rotunda?

Em Matteo perdeu o emprego, o último livro de Gonçalo M. Tavares - vencedor do prémio do melhor livro estrangeiro publicado em França em 2010 -  há, pelo menos, duas rotundas. Na primeira rotunda, a personagem Aaronson, "entre os vinte e sete e os trinta anos, circula - como um insecto obcecado - em torno de uma rotunda." (p 9).

Uma rotunda serve, então, para circular. Como diria a polícia - que não entra nesta primeira rotunda - circule, circule.

Será por isso que também nós não paramos de circular, de andar à roda, como insectos obcecados, repetindo o refrão de uma música de José Mário Branco, já antiga mas sempre actual, numa altura em que se diz que ele vem, que não vem, que virá, é certo: O FMI?

"Enquanto estiver na rotunda não estou perdido, pelo menos não volto atrás. E eis um dos atractivos daquela circulação. (...) Em redor de uma rotunda ninguém volta atrás, ninguém se engana, ninguém tem de assumir o erro e fazer inversão de marcha. A vida, apesar de tudo, é fácil. Numa rotunda." (p. 10).

Mas há uma outra rotunda, a segunda: "uma rotunda, se assim se pode chamar, quadrada" (p. 89). Construída por um estranho arquitecto, de nome Holzberg, ela obriga todo aquele que a contorna a não andar simplesmente à volta. " Em rotundas normais, os automóveis não desenhavam à mão livre, na expressão de Holzberg, mas copiavam; como alguém obediente que faz sem ter a noção do que está a fazer." (p. 89-90).

Na verdade, este é um livro que não tem apenas duas rotundas, mas é em si mesmo, todo ele, uma rotunda. Uma rotunda quadrada, por assim dizer, graças ao "estilo" singular de Gonçalo M. Tavares.Um livro para todos e para ninguém, como diria Nietzche. E muitíssimo actual, ao mesmo tempo que intempestivo!

23.11.10

Da ciência dos sonhos ao sonho da ciência

O cientista sonha? Sabemos que o filósofo sonha; por vezes, tem sonhos bem curiosos (veja-se o caso dos famosos "sonhos de Descartes").

E o cientista? Quando alguém como Stephen Hawking, por exemplo, diz que estamos à beira de explicar tudo (coisa que já disse, desdisse e voltou a dizer em momentos diferentes), trata-se ainda de ciência ou já entrámos no domínio do sonho, mais do que isso, da megalomania?

A prova de que um cientista também sonha, se houvesse por acaso dúvidas, é dada no último livro do conhecido e prestigiado neurobiólogo António Damásio. A páginas tantas, ao fazer uma pequena incursão pelo "inconsciente freudiano", ele conta um sonho que costuma ter frequentemente e a que chama "pesadelo ligeiro".

Para a psicanálise, o que conta num sonho não é tanto o emaranhado de imagens de que é tecido e o respectivo suporte neuronal, mas o "relato" do mesmo feito pelo sonhador. Qual, então, o relato que é feito por Damásio do "pesadelo breve" que o atormenta de forma recorrente?

"As variações giravam sempre em torno do mesmo tema: estou atrasado, tremendamente atrasado e falta-me qualquer coisa essencial. Os meus sapatos podem ter desaparecido; ou a barba não está apresentável e não consigo encontrar a máquina de barbear; ou o aeroporto está fechado devido ao nevoeiro e eu fiquei em terra. Sinto-me torturado, e por vezes embaraçado, como quando (no meu sonho, claro) entrei mesmo em palco descalço (mas num fato Armani). É por isso que até hoje nunca deixo os sapatos à porta de um quarto de hotel para serem limpos." (O Livro da Consciência, Círculo de Leitores, 2010, p. 225).

Entrar no palco (no palco?) descalço, mas num fato Armani,  tendo a sensação (ou o sentimento?) de que nos falta algo, é um fenómeno perfeitamente explicável do ponto de vista neuronal, ou não será? De qualquer modo, todo o cuidado é pouco com o lugar onde se deixam os sapatos, não vá o diabo tecê-las, como se diz por aqui (também isto será obra dos neurónios...ou do diabo da linguagem, que Damásio remete para segundo plano no grande esquema das coisas?)

Mais recentemente, numa entrevista concedida a Carlos Vaz Marques (Revista Ler, Novembro 2010, pp. 30-34), Damásio não conta um sonho, mas responde assim a uma pergunta formulada pelo entrevistador:

Vê mesmo que num futuro que ainda não sejamos capazes de prever haja possibilidade de virmos a resolver o mistério último? "É difícil dizer. Por vezes dá a impressão que sim, outras que não. Claro que a resposta mais lógica seria: "provavelmente não". Mas ao mesmo tempo podemos dizer: "porque não?" (p. 34)

Enquanto a ciência não avança tão depressa como o cientista (vestido com um fato Armani, e sentindo que está atrasado e que lhe falta algo de essencial) gostaria, resta-lhe ir sonhando o sonho de "compreender tudo" (p. 34).

E "porque não", se é pelo sonho que vamos - como diria o poeta?

Ainda assim, há, hoje, sonhos que parecem, no mínimo, "pesadelos ligeiros", ainda que provenham de uma área tão respeitável como a ciência.

Acto de contr(ad)ição!

Esperava-se que após a Irlanda aceitar pedir ajuda financeira, os mercados acalmassem. Esta tem sido, aliás, a retórica dos políticos, da direita à esquerda: pede-se mais sacrifício e aperto, numa voragem sem fim, com vista à acalmia dos mercados.

Pois bem: os mercados não acalmam, ficando pelo contrário mais enfurecidos, como se em vez de água lhe tivessem dado a beber gasolina.

O mercado tornou-se uma espécie de deus num mundo sem Deus. Um sujeito-suposto-saber?

Dizia Lacan, algures, torcendo um pouco uma conhecida frase, que "não há fumo sem fumador". Diríamos nós: não há mercado sem mercador (entenda-se, especulador).

Se os mercados não acalmam, exigindo sempre mais ainda, não seria altura de os começar a irritar em vez de procurar acalmá-los?

O mercado tornou-se - como diria Giorgio Agamben - num "improfanável! Como se já ninguém ousasse tocar-lhe...com receio de ficar manchado ou, então, de sofrer as suas represálias. Pois o mercado é bom e todos nós somos...pecadores. Ajoelhemos, pois!

21.11.10

Tormenta

Tive há algum tempo atrás a oportunidade de ver uma exposição de Isabel Garcia na sala de Exposições temporárias do belo Mosteiro de Alcobaça, património da humanidade. O título da exposição remete para a "tempestade" que tanto pode agitar os elementos (físicos) como as ideias. Além disso, ela pode ser vista como uma metáfora dos tempos que correm: (a)tormentados pelas mais diversas "tempestades".

Mas aquilo que me interessou, acima de tudo, não foi tanto a desordem dos elementos que se manifesta através de raios metálicos, pedras de chuva e estrelas (espalhadas, como restos, ao longo da sala de exposição), mas o "poço de luz": uma estrutura cilíndrica em forma de poço, revestida interiormente por vidro espelhado, de tal modo que umas poucas lâmpadas acesas no seu fundo, davam a impressão de se multiplicarem até ao infinito, irradiando luz em todas as direcções.

Parece que o escritor japonês Tanizaki (1933) tinha razão: a estética ocidental está voltada para a luz. E não só a estética! Há que iluminar tudo, varrer a sombra do mundo! o imperativo do "olho absoluto"  não dá tréguas (ver entrevista, ao lado, de Gérard Wajcman).

Tal imperativo mostra-se, até, nas mínimas frases, ditas (por exemplo) pelo professor X ao aluno Y: "Ele é um menino apagado".

Isto quer dizer: ele não se chega à frente, não se expõe como os outros (na era da exposição), não gosta dos brilho dos holofotes, preferindo a sombra.

O poder da luz é aqui tão forte - tão inconscientemente forte - que até aqueles que não brilham por se chegarem à frente, por serem como os outros, querem brilhar por serem diferentes, mas querem brilhar de qualquer maneira.

É verdade que também há aqueles, em número crescente, que não querem, que preferem não, que não desejam brilhar desta ou daquela forma e que se deixam simplesmente ficar. Apagados.

Resposta, irónica, à luz, ao olho absoluto que (a)tormenta o século XXI?

18.11.10

Cali-grafias

A Lello (Porto) foi eleita como a terceira melhor (mais bela) livraria do mundo (Lonely Planet´s Best in Travel 2011).

A quem nutriu, desde muito cedo, um grande amor pelos livros, esta notícia só pode encher  de júbilo.

E aos outros também, embora por razões diversas.

Uma verdadeira cali-grafia arquitectónica, um templo à letra, uma terra da literatura - uma lituraterra, a Lello.

15.11.10

Desmedir a felicidade

Há cada vez mais políticos e economistas que advogam que deveria medir-se a "felicidade", tal como se mede, por exemplo, o PIB.

É uma ideia interessante. Na verdade, que importa que o PIB não cesse de crescer (ainda que este não seja o nosso caso, como é sabido) se a felicidade dos indivíduos não pára de murchar?

Contudo, a ideia de introduzir uma "medida" na felicidade (um conjunto de parâmetros susceptíveis de manipulação) não deixa de arrepiar. A felicidade tornar-se-á cada vez mais uma questão política e económica.

E, tal como já declaramos os nossos rendimentos, quem nos garante que não vamos ter de declarar, em breve, a nossa felicidade?

O imperativo da avaliação e da medida não conhece fronteiras. Que liberdade - que felicidade - restará então  ao sujeito na era da "loucura quantitativa"?

10.11.10

O dever de pensar

O tempo é de crise, diz-se.

Vivemos numa época  - dizia Bernard-Henri Lévi no seu último livro - que não é só de crise mas, sobretudo, de uma grande confusão. Uma confusão generalizada. (Cf. De la guerre en philosophie, p. 7-10).

Aos que baixam os braços, de um lado, sentindo-se impotentes ante a fugacidade, a liquidez e a completa soltura dos acontecimentos - sem nada que os ancore, que os amarre - respondem, do outro, os imperativos da avaliação, da produtividade, cujo modelo é a azáfama - incansável e inútil (inútil?) - de um formigueiro ou a linha de montagem de carros altamente "cilindrados"...

O que fazer, então?

"(...) o dever de pensar, continua de longe, de muito longe, o mais elevado." É ainda Bernard-Henri Lévi que o diz.

Eis a guerra da filosofia. Mas será apenas, nesta época de muitas guerras, uma guerra da filosofia?

8.11.10

Momentos críticos

No último número da revista Hurly-Burly, Jacques-Alain Miller dizia o seguinte acerca da "crise financeira" que tem assolado o mundo:

"O psicanalista é amigo da crise. Entrar em análise constitui sempre para um sujeito um momento crítico, que corresponde ou revela uma crise." (Cf. "Financial Crisis", Hurly-Brurly, nº 4, Outubro 2010, p. 203).

Sendo o nome de um "real desencadeado, impossível de dominar", ela é apenas, não obstante, o início de um "trabalho". É a primeira palavra, mas não a última.

3.11.10

Darwinismo financeiro

Ocorre-me a seguinte imagem:

Alguém está caído no chão, com dificuldade de se levantar. Chegam transeuntes (ou não chegam, pois na era na internet não é preciso chegar para chegar) e, em vez de estenderem a mão à pessoa que está caída, começam a pontapeá-la com violência; a cada grito de dor ou de socorro, cresce a intensidade do pontapé.

Parece sádica, a cena; mas é apenas a ilustração - ainda que sádica - do que tem vindo a acontecer a alguns países na era do capitalismo de casino.

Os analistas - sujeitos supostos saber destas coisas - concordam em que alguns países estão a ser alvo de ataque por parte dos mercados internacionais, da especulação financeira porque são os mais débeis, os elos mais fracos da cadeia.

Darwin teve o cuidado de nos ensinar: só os mais fortes sobreviverão. Os que dão pontapés!

2.11.10

Educação impossível

Na era do "tudo é possível" (Hervé Castanet), o jovem e brilhante escritor Gonçalo M Tavares - um dos melhores que este chão em crise produziu - adverte no seu livro, Uma Viagem à Índia:

"E também não há isto:
aprendizagem do imprevisível. Não se ensina
o que não se prevê, o que é óptimo." (Canto IV, p. 179).

26.10.10

O instrumento conta

Numa entrevista concedida ao Jornal de Letras, Artes e Ideias acerca do seu último livro - Uma viagem à Índia -, o escritor Gonçalo M. Tavares dava a seguinte imagem: Se alguém sai à rua com um martelo na mão o mundo torna-se em algo de martelável.

O instrumento conta: ele lança na sombra tudo aquilo que está fora do seu raio luminoso.

Se o instrumento se chama, por exemplo, "Padrões de Desempenho" (segundo o último Despacho ministerial sobre a avaliação), o mundo transforma-se em algo de "padronizável": com muitos "indicadores" e "descritores", é certo, mas sem nenhuma atenção ao que é imprevisível, imponderável.

Desprovida da singularidade, a roda do moinho - pedra redonda e pesada - torna-se mais leve e gira mais depressa, uma vez que lhe falta grão.

Mas de que serve a uma roda rodar se lhe falta grão?

25.10.10

Uma era cínica

O humor que se faz tende a resvalar cada vez mais para o "cinismo"; veja-se, por exemplo, o "Tubo de Ensaio" (Bruno Nogueira, TSF) ou aquele programa de que não lembro o nome e em que o mesmo Bruno Nogueira teve um diálogo deveras edificante com o seu entrevistador (?) Rui Unas (cito de cor, pois não me lembro dos termos exactos):
E se eu te comesse agora?

Perante a anuência do seu interlocutor, os dois (Nogueira e Unas) parodiam um acto de sodomia ao vivo. No fim, Rui Unas remata do seguinte modo:
- Obrigado por teres sido meigo.

Longe vai O dito espirituoso nas suas relações com o inconsciente (como escrevia Freud há pouco mais de um século). O humor é, tradicionalmente, uma curva, um passar ao lado: o caminho mais longo entre dois pontos. Tal como defendiam os antigos "cínicos" - mas sem a convicção destes - o humor que se faz hoje em dia é cada vez mais objectiva e abjectivamente directo: "o caminho mais curto".

Há algum tempo atrás, alguém perguntava (creio que ao Bruno Nogueira); há limites para o humor? Ao que este respondeu: Não!

Nem sequer o "bom gosto" é já um limite para o humor; basta ouvir algumas emissões do Tubo de Ensaio.

Definitivamente, a ordem simbólica está a mudar. E o (nosso) humor também.

14.10.10

Amizade líquida

Costuma dizer-se que uma imagem diz mais do que mil palavras. Talvez por isso, à deflação da palavra tem correspondido uma crescente inflação de imagens; veja-se, por exemplo, a quantidade extraordinária de fotografias, de cenas da vida íntima ou de filmes caseiros que povoam o facebook ou Youtube...


Há palavras, ainda assim, que dizem mais acerca do estado do mundo do que qualquer imagem consegue mostrar. É o caso, por exemplo, do termo "desamigar" (unfriend). Aristóteles, que dedicou inúmeras páginas ao tema da amizade, teria agora - se fosse vivo - de reescrever a sua Ética a Nicómaco para que nela coubesse a crescente (des)amizade que assola o mundo...virtual.

Como diria o poeta, o mundo pula e avança.

Se tudo derrete - e não apenas o gelo dos polos - por que não haveria a amizade também de derreter?

3.10.10

Filme do Desassossego

Acabei de regressar, há algum tempo, do CCB. O auditório foi pequeno - literalmente - para tantas pessoas que não queriam perder o último filme de João Botelho, baseado na obra do semi-heterónimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares. Não houve Coca-Cola nem Pipocas (como pedia o realizador), mas um silêncio atento do princípio ao fim.

Confesso que eu amo o livro de Bernardo Soares desde que o li pela primeira vez, já lá vão mais de vinte anos. Ao longo das inúmeras releituras que fiz deste livro, ele sempre teve a capacidade de me surpreender. Por isso, ia com poucas expectativas; foi o que disse, aliás, a quem me acompanhava.

Mas talvez não fosse bem assim - e - como se diz na gíria psicanalítica - tudo não passasse de uma "denegação", isto é, um modo de afirmar, negando. Na verdade, eu tinha muitas expectativas, demasiadas...

Por isso, talvez por isso, não partilho das várias opiniões (unânimes) expressas nos inúmeras comentários que tive ocasião de ouvir e ler entretanto sobre o filme de João Botelho: magnífico, esplendoroso, sublime...

Há sequências magistrais, sem dúvida; fragmentos que valem por si mesmos; desempenhos irrepreensíveis; mas há também inúmeros trechos desenquadrados, inconsequentes e, sobretudo, assentes num mero virtuosismo (exibicionismo?) estético. É um filme demasiado saturado de palavras  (por opção deliberada do realizador) e, igualmente, de imagens; mas faltam, para mim, aquelas "intercalações de luz e sombra" (não sei como dizê-lo melhor senão recorrendo a esta frase de Bernardo Soares) que fazem tinir em cada palavra a campainha do silêncio e em cada imagem o brilho do que fica na sombra.

O livro do desassossego está repleto de vazios, cheio de pequenos nadas, é tecido de intervalos, de meios tons; eu esperava, talvez, que este filme, mais do que reproduzir muitas falas do livro, pondo-as na boca, ora de um, ora de outro personagem, quase sempre do próprio Bernardo Soares (Cláudio da Silva), pudesse "mostrar" um pouco desses intervalos e meios tons. Mostrar o que a palavra roça, contorna, mas não diz.

Talvez eu tivesse demasiadas (infundadas?) expectativas. Admito.

30.9.10

E vai mais um pacote

Poderão estas medidas agora tomadas - como último recurso, diz o primeiro ministro - acalmar os mercados? É a pergunta do momento.

O mercado tornou-se numa espécie de monstro caprichoso que nada consegue acalmar.

Antigamente, era hábito fazer sacrifícios para  saciar ou acalmar a fome ou a ira dos deuses agitados; de quando em vez, umas quantas vidas, por exemplo, tinham de ser imoladas à sua voracidade. Lembremo-nos, por exemplo, do Minotauro (esse monstro grego, por sinal) que exigia, para saciar a fome, um "pacote" de rapazes e raparigas.

Na era do capitalismo, o novo Minotauro é ainda mais exigente, cruel e obsceno: nunca está satisfeito. Pacote atrás de pacote, ele vai exigindo sempre mais ainda, numa voracidade desmedida e insaciável.

Perante isto, o que fazem os políticos da esquerda à direita, por mais que dancem o tango ou refilem uns com os outros: limitam-se a embalar, com mais ou menos agilidade, o pacote! São meros acólitos do monstro, servidores (in)voluntários deste novo deus obscuro.

Tanto mais obscuro  quanto anda de cara descaradamente destapada e não esconde, sequer, as suas "reais" intenções.

26.9.10

O segredo dos seus olhos

Qual é afinal o segredo? De quem são os olhos?

Na verdade, o filme de Juan José Campanella - vencedor do Óscar para melhor filme estrangeiro em 2010 - não revela nem uma coisa nem outra. Vai abrindo portas - pode ser isto ou aquilo, deste ou daquele - mas no fim a porta é fechada e o filme termina; talvez porque os olhos - e o segredo que os (en)cerra, que eles (en)cerram - sejam também os nossos, de cada um de nós, que vê este filme.

É um filme magnífico com um enredo aparentemente banal: Benjamin Esposito (Ricardo Darín), reformado da polícia, não sabendo como encher o vazio dos dias e vivendo atormentado pelas circunstâncias de um crime passional ocorrido há vinte e cinco anos atrás, que ele próprio investigara na altura  - e, até certo ponto, resolvera - decide escrever um romance para acertar as contas com o passado, incluindo o seu. Também ele tinha um caso por resolver com a sua superiora hierárquica (Irene Menéndes Hastings), a quem - por "temor" -  jamais confessara o seu amor. Temia dizer-lhe que a amava.

Porém, as várias tentativas de resgatar a história parecem falhar. Vários começos de romance - fazendo lembrar os começos de romance do livro de Italo Calvino Se numa noite de Inverno um viajante - vão parar ao lixo. Benjamin Esposito não está satisfeito com o resultado. Há algo que falta, que teima em faltar.

Pelo meio, há uma palavra que lhe ocorre - palavra sunâmbula, por assim dizer, no limbo entre o sono e a vigília - e cujo sentido permanece em suspenso até ao fim: Temo. Há igualmente um detalhe engraçado: uma velha Olivetti que não consegue escrever a letra a. 


São pormenores, sem dúvida. Detalhes. Mas talvez a grandeza deste filme resida, precisamente, nos pequenos detalhes. Como os piropos, a veia humorística de Sandoval - o colega e amigo de Esposito.

O que obceca, afinal, Esposito? Qual a verdade que ele pretende restituir, o segredo que busca desvendar por meio da escrita?

Na verdade, há vinte e cinco anos atrás, com a ajuda inestimável do seu amigo Sandoval, ele acabara por descobrir  - e fazer prender - o assassino da bela jovem assassinada; porém, há algo que continua a atormentá-lo (até porque o assassino fora entretanto liberto e vivia sob protecção do regime). Mas não era apenas isso: havia algo, por assim dizer, ainda mais tocante - o amor, a paixão inabalável que ligara para sempre o marido à sua jovem esposa assassinada.

Mas não é tanto a sombra da melancolia que sobrevive ao luto impossível - como diria Freud - mas o sol da vingança que ilumina o seu acto. Quando, numa das últimas cenas do filme, Esposito faz uma visita ao marido da jovem assassinada, descobre, espantado, que ele mantinha em cativeiro o assassino da sua esposa. Mais do que matá-lo de uma vez por todas, ele queria mantê-lo em "prisão perpétua". Para fazê-lo pagar para sempre - e em silêncio - o castigo do crime hediondo que cometera. Ele sabe que o Inferno não é uma morte rápida, mas um sofrimento lento e perpétuo.

À ignorância (obsessiva) de Esposito - na sua busca atormentada pela verdade - responde o amor (também obsessivo) do eterno marido da vítima e, sob aquele, o ódio, a terrível paixão da vingança.

Razão tinha Sandoval, o amigo de Esposito, quando justificava o seu próprio comportamento (alcoólico) e o comportamento da maior parte dos homens com o termo: paixão (pasión). A paixão do álcool, do amor, do ódio. Ou  "gozo": aquilo que move cada um (o violador, o polícia, o escritor, o marido, o vingador...o espectador?) e que faz, para cada um deles, que o universo não seja vão. Ou, pelo menos, aparente não o ser.

Numa das últimas cenas, vemos Esposito escrevendo uma letra, como se tivesse de repente descoberto que a letra que a velha Olivetti não conseguia escrever era, precisamente, a única letra que faltava para dar sentido à estranha palavra "temo" que um dia (uma noite) lhe ocorrera: TEaMO, vemo-lo então escrever; a palavra que nunca ousara dizer à sua colega e superiora Irène Menéndez Hastings.

Uma letra apenas. Uma vida.

15.9.10

Para bom atendedor...

Mudam-se os tempos, mudam-se as palavras.

Como a substituição de "justa causa" por "razão atendível" não foi bem "entendida" - diz o PSD - foi preciso deslizar um pouco mais na semântica e na pragmática (sobretudo nesta) para chegar à bela e sonante: "razão legalmente atendível".

Não voltamos, com isto, ao ponto de partida, no fim de um longo desvio?

Não, diz o PSD. E tem razão, pois não é certo, afinal, que a "razão legal(mente) atendível" nem sempre é uma "causa justa"?

Para bom entendedor...

13.9.10

A injusta causa

Como chamar a um projecto de revisão constitucional que prevê o "despedimento sem justa causa", tal como propõe este novo PSD, liderado pelo jovem, mas já maratonista da política, Passos Coelho?

É certo, como se diz, que vivemos num "mundo líquido"...

Mas não estará o PSD, como este projecto, a confundir "enliquidescer" com "enlouquecer"?

Um mau começo para quem ainda nem sequer começou. Um mau passo.

Um descomeço!

6.9.10

Bulimia informativa

Ao mesmo parecem chover sobre nós, sem descanso e repetidamente, como gorda saraivada, mil informações diversas.

É assim o mundo globalizado, a era da informação: morreram tantos aqui; incendiou-se um barco além, uma floresta algures; explodiu outro homem-bomba nos lugares do costume; foram pelos ares não sei quantos para lá do sol posto devido a não sei quê; uma bala perdida encontrou o seu destino em alguém - curioso - que andava sem destino, a passear; enfim...

E tudo isto em catadupa - e cada vez mais a toda a hora - sem termos tempo para respirar!

Um homem não é capaz de mastigar, de absorver tanta e diversa informação ao mesmo tempo: ou a vomita ou a caga. De qualquer modo, expele-a: por enjoo ou indiferença.

21.7.10

Mais real que a própria realidade

Tendemos ainda, porventura, a pensar a Internet como um apêndice ou uma espécie de anexo ao mundo real. Dizemos "virtual" como quem diz "aparente". Uma espécie de véu encobrindo a nudez da própria coisa. Um novo manto de Noé.

E se, não obstante, o "virtual" fosse tão ou mais "real" que a própria realidade que pisamos todos os dias com os nossos pés e vestimos com a nossa fantasia? E se a Internet fosse, hoje, a divisão principal da casa e a realidade - lá fora - um simples anexo?

Fala-se já de novas patologias ligadas ao abuso da Internet, mas também de (novas) terapias que recorrem cada vez mais ao seu uso.

X. fica angustiado cada vez que pensa abrir o email após um fim de semana "desligado"; Y não consegue deixar de pensar no que haverá no email de urgente para resolver, mesmo quando está "desligado". Z. fica inibido quando abre o email e se depara com um sem número de coisas urgentes para resolver...ontem.

Exemplos de novas formas de inibição, sintoma e angústia na era da Internet.

Não é Freud, porventura, que carece de um upgrade, mas a Internet que o torna cada vez mais updated. 

18.7.10

Sugestão para férias, por que não?


Quem preferir outra coisa, poderá eventualmente aproveitar a ocasião para dar uma espreitadela em Freud, o ídolo! Terá, com certeza, boas surpresas! Proponho, por exemplo, Mal-estar na civilização, um texto já com muitos anos, mas com pouquíssimos cabelos brancos!

16.7.10

Já era previsível

Enquanto Michel Onfray ataca a psicanálise "freudiana" como se esta fosse uma religião travestida de ciência, a "verdadeira" religião - católica, apostólica, romana - propõe-se atacar o problema que a tem afligido ultimamente: a pedofilia.

Ao mesmo tempo, aproveita para reafirmar as suas convicções mais atávicas e pôr em dia o seu catálogo de "pecados". E pecado "grave" não é somente a pedofilia - não é sobretudo a pedofilia - mas a  ordenação das mulheres.

Nada de novo, portanto, debaixo do sol, como diria o Eclesiastes. Já era previsível. Afinal, ele sabe, como intelectual que é - falo naturalmente de Bento XVI - que é o cimento unissexual que tem servido para ligar entre si, para cimentar, os tijolos da instituição. É a exclusão do "outro" sexo (que não o masculino) o que tem assegurado o fortalecimento dos laços entre os "irmãos", unidos pelo mesmo "ideal".

Ele sabe que no dia em que as mulheres forem abertamente admitidas, em pé de igualdade, mas com a sua diferença no seio da igreja, esta "comunidade de irmãos" ficará seriamente em risco e surgirá, sem dúvida, algo de "imprevisível" no seio da igreja.

Mas não é essa, precisamente, a beleza da coisa: a sua imprevisibilidade?

A polémica vai continuar

Afinal de contas, Freud está vivo, continua vivo. Os mortos não são, em princípio, atacados. A não ser por vandalismo.

Quem o prova é o filósofo Michel Onfray: um dos homens do momento, pelo menos em França, pois em Portugal, como dizia há pouco tempo Eduardo Lourenço, nem uma palavra sobre o assunto. O significante "crise" é por aqui hegemónico, não se falando praticamente de outra coisa. A nossa pobreza não é apenas económico-financeira, por certo.

No seu último livro - Le Crépuscule d'une idole. L'affabulation fredienne - ele aplica a Freud o método que já aplicara à história da filosofia: virar do avesso, desmontar, destituir...até fazer ressaltar os podres de um sistema, de uma teoria, de uma "lenda".

Michel Onfray é um filósofo para quem a "biografia" não é mera paisagem ou música de fundo. No seu livro "Puissance d'exister", por exemplo, ele faz anteceder as suas reflexões de uma extensa nota autobiográfica onde mostra como a filosofia que se faz não se pode desligar da pessoa que se é, que se foi, que se veio a ser.

Sob o desejo de "cientificidade" da psicanálise freudiana, ele descobre afinal uma "auto-biografia" do seu autor, uma (má) filosofia... daquele que tanto quisera demarcar-se desta última.

Dizia Lacan que é aquele que odeia - e não o que ama - que melhor sabe ler. Percebe-se que não é propriamente o amor aquilo que move Michel Onfray. Por isso, há esperança de que ele saiba ler...todos aqueles que destitui, sejam os velhos filósofos ou o velho Freud.

Mas também é verdade - sendo claro, como diz o próprio Onfray, que a (auto)biografia conta e que o ódio é uma das marcas que ficaram indelevelmente gravadas da sua passagem pelo famoso orfanato da infância, dirigido por salesianos, mesmo que ele diga e repita que não guarda qualquer ressentimento - que faz sentido perguntar, como é o caso de Elisabeth Roudinesco, "mas porquê tanto ódio"?

Se é verdade que o ódio - como mostrou Freud - não é propriamente o contrário do amor (Cf. Pulsões e Suas Vicissitudes), pois o contrário deste é a indiferença, sabemos ao menos que, por enquanto, Freud não é indiferente ao filósofo Michel Onfray.

E a coisa vai, por isso, continuar a mexer, a dar que falar.

14.7.10

Escrever torto por linhas direitas

Toda a gente esperava qualquer coisa do Cristiano Ronaldo - um milagre, sei lá! - e, por isso, teria mesmo de haver qualquer coisa.

Pedia-se à bola que entrasse na baliza adversária, mas esta teimava em acertar no poste, na trave ou em passar ao largo (salvo uma rara, acrobática e jocosa excepção).

Pedia-se ao Ronaldo que demonstrasse em campo - sobretudo em campo - "a potência de existir" (como diria o filósofo hedonista Michel Onfray) que ele aparenta - pelo menos aparenta - demonstrar fora dele.

Como toda a gente pedia muito qualquer coisa e o Cristiano não gosta de defraudar as expectativas, acabou por mostrar, mais uma vez, aquilo de que é capaz (não fosse ele considerado, ainda, um dos melhores "jogadores" do mundo!). E o que fez, então, Cristiano Ronaldo?

Cuspiu para a câmara!

Cuspiu uma indirecta para o seleccionador!

E last but not least cuspiu para..., quer dizer, anunciou ao mundo que é finalmente pai de uma criança.

Eis o golo que faltava! Não importa se é fora do campo, pois é aí mesmo que o nosso Cristiano Ronaldo tem marcado mais pontos!

12.7.10

Escrever direito por linhas tortas

Para além do tão famigerado polvo, fica deste mundial a queixa persistente em relação à bola (Jabulani) fabricada pela Adidas para o mesmo: que não era previsível, que fugia das mãos dos guarda-redes, enfim, que fazia lembrar (houve quem dissesse!) uma bola comprada no supermercado.

Contudo, após um exame levado a cabo por cientistas da NASA, chegou-se à conclusão que a tão criticada bola era, afinal, "perfeita". A mais perfeita que alguma vez se produzira. Uma "esfera quase perfeita" que, sem dúvida, faria as delícias de Aristóteles e c.ª, se por acaso fossem vivos e gostassem de futebol. A sua imprevisibilidade resulta, segundo o estudo referido, do seu grau de perfeição. A uma certa velocidade, ela torna-se imprevisível.

Quando sonhamos com uma coisa perfeita tendemos a imaginá-la " como algo que não salta das mãos, que se cola ao pé e, sobretudo, que desenha trajectórias previsíveis, ou seja, que escreve direito por linhas direitas. Mas não é bem mais incrível que a perfeição máxima contenha, afinal, essa imponderabilidade, esse impossível de prever? Que quanto mais perfeita é uma coisa, mais imprevisível se torna?

Pelo menos a esta hora, quando ainda celebram a vitória, os nuestros hermanos  poderão dizer: ela escreveu direito por linhas tortas!

9.7.10

Uma boa mãe

A empresa-mãe" não gostou que a versão portuguesa da revista Playboy tivesse o descaramento de brincar com coisas sérias na capa do seu último número, ao fazer do "Evangelho Segundo Jesus Cristo" (o polémico romance de Saramago) a cama onde um homem vestido como Jesus estava junto de uma mulher nua.

Parece que a intenção da revista era homenagear Saramago; contudo, a empresa-mãe - como boa mãe que é - não poderia permitir um tal escândalo. Afinal, não se trata  de uma mãe qualquer!

Diz-se que a revista pode fechar por causa da brincadeira. E não é para menos! De facto, pôr lado a lado Jesus e mulheres nuas ainda vá que não vá - e não seria inédito, aliás -, agora, meter lá no meio o nome de Saramago, o desterrado, é que não!

8.7.10

O problema não é que ele acerte, mas que não consiga duvidar

Diferentemente do polvo, que "acerta" tudo (o que é suposto acertar) e não consta que duvide, nós duvidamos. O ser falante duvida.

O mundo "líquido", dominado pela incerteza e pelo risco, está aí para ajudar. A civilização torna o sujeito cada vez mais histérico (insatisfeito) e, simultaneamente, mais obsessivo (sujeito à dúvida permanente).

Nesse contexto, faz sentido retornar à questão da dúvida. É o que acontece com o último número da revista Le Magazine Littéraire (Nº 499, Julho-Agosto 2010), consagrada ao tema.

Contrariamente a Descartes, que via na dúvida apenas um caminho provisório para se chegar a uma certeza indubitável, absoluta e definitiva, sendo esta, por assim dizer, a cura para aquela, as coisas podem ser vistas de outro modo: afinal - como se diz na revista citada - "são as certezas que nos enlouquecem" e não a "dúvida".

Na página de abertura do dossiê (48), pode ler-se esta bela frase de kant: "Mede-se a inteligência de um indivíduo pela quantidade de incertezas que ele é capaz de suportar."

Daí que alguns - como o nosso Pessoa - pudessem dizer: duvido, logo escrevo.

Que eu saiba, nem os mortos nem os animais duvidam. Ou os deuses. Duvidar é um privilégio dos seres seres falantes. Para o seu bem e para o seu mal.

Ou não será?

7.7.10

A voz do polvo

Não deixa de ser irónico: quando os políticos não se entendem, os economistas não acertam, a crise não ata nem desata, a incerteza alastra, há um polvo que "adivinha" os resultados do mundial.

"Adivinhou" que a Espanha ganhava à Alemanha, e não é que ganhou mesmo?

Por isso, meus caros, sigamos o polvo!

Já dizia o nosso querido e saudoso Zeza Afonso: O "polvo" é quem mais ordena!

5.7.10

Elogio da inutilidade

Um grupo de trabalho (ou vários?) prepara-se no Ministério da Educação para mais uma...(adivinhe-se!) reforma educativa.

Num primeiro relance, apercebo-me - é só um exemplo! - que a "filosofia" deparece do 10º ano.

A coisa sempre fez muita comichão a alguns, a muitos. A começar, para os alunos (e não foram outrora os que agora nos governam também alunos?): para que é que isso serve, perguntam eles?

Houve um tempo em que isso serviu para expandir a cultura humanística, as humanidades, como se dizia. Na era da ciência e da "especialização" que ela implica, as próprias humanidades tendem a ser vistas como uma coisa estranha, atópica, sem lugar: algo que não sabemos exactamente como e onde arrumar.

Na verdade, a filosofia é apenas um exemplo. Há cada vez mais disciplinas, teorias e práticas que vão cair em desuso ou serão lançadas para o caixote das "inutilidades" a breve trecho. De resto humanidades rima com inutilidades.

Vem-me à memória - enquanto escrevo - um poema de Angelus Silesius:

"A rosa é sem porquê,
Floresce porque floresce,
Não cuida de si mesma,
Não pergunta se a vêem."

Não serão também as coisas "úteis" fundamente inúteis? Como sabê-lo se cada vez mais o questionamento, a capacidade e a liberdade de nos  interrogarmos será descartada porque não se encaixa nos critérios dos "especialistas"?

1.7.10

MAIS, AINDA

















Todas as semanas às 10:30 (salvo raríssimas excepções) o Pedro lá estava para dizer algo que é tão raro em Portugal: só vocês e Lacan conseguiriam fazer-me levantar da cama a estas horas! Ele sabia que o tempo lógico do desejo não se compadece com o tempo dos relógios.

Embora não soubesse por quanto tempo ainda poderia trabalhar connosco (mas quem sabe?),  tal não o impedia de querer sempre mais, ainda .

Durante quase um ano "praticámos" mais e ainda um texto difícil - mas extraordinário - de Jacques Lacan: Encore.

Ele queria despedir-se de nós, mas foi apanhado a meio da frase, ficando esta interrompida.

É por isso que ainda nos custa - todas as quarta-feiras, às 10:30 - olhar para o lugar, agora vazio - puro significante - que ele ocupava.

É para tornar esse vazio um pouco mais habitável que aqui se deixa uma foto do Pedro.

29.6.10

A vida sexual de Kant

Parece que até os mais avisados acabam, uma vez ou outra, por morder o isco. Foi o caso, por exemplo, do filósofo francês Bernard-Henry Lévy que, no seu livro De la guerre en philosophie, citou uma suposta obra dedicada à vida sexual de Kant, da autoria de um tal Jean-Baptiste Botul. O filósofo teria de reconhecer, depois, que este autor não passava afinal de uma invenção jornalística.

O caso parece constituir um bom exemplo de uma velha acusação atribuída a Freud: o "pansexualismo". Ou seja, caricaturando, a tendência a ver sexo em tudo e todos. Ele pode igualmente ser uma boa ilustração dos tempos que correm: ansiosos de ver tudo, de pôr tudo a nu. Até mesmo o que não existe...

Mas talvez a questão seja outra: o que é, afinal, mais estranho? Que Kant tivesse uma "vida sexual" ou que, tal como reza a lenda, nada de semelhante, de "patológico", tivesse abanado, perturbado, feito tremer o edifício lógico, gelidamente racional, em que ele se encerrou?

27.6.10

Dizer a verdade e apenas a verdade!

"Quem quiser saber a verdade, repito, a verdade, insisto, a verdade (do que eu penso), basta consultar o site da Presidência da República - lá está toda a verdade!" (O presidente Cavaco Silva, ontem, em resposta aos jornalistas).

Eis o apelo de alguém que diz ter como princípios fundamentais, de que não abdica, ser honesto e dizer sempre a verdade.

Há muitos anos, o psicanalista francês Jacques Lacan iniciou uma emissão televisiva afirmando igualmente dizer sempre a verdade. Eu digo sempre a verdade, mas não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível materialmente: faltam palavras. ("Televisão", Outros Escritos).

Serão mais perigosos aqueles que não dizem a verdade ou aqueles que têm a ilusão de poder dizê-la toda?

21.6.10

Até onde pode chegar a loucura...quantitativa?

Confesso a minha ignorância: desconhecia a existência de tal coisa.

Foi ao passear pelas ruas de uma cidade do Sul do Brasil que deparei com um...Tesômetro: um objecto suposto medir a intensidade da paixão, segundo a legenda. Como vim depois a saber, este objecto não é tão inédito assim. Basta procurar no Google (ferramenta onde quase tudo se acha, excepto o "remédio" para a "crise" que vem afectando a Europa) para encontrar abundantes e ilustrativas referências ao dito objecto.

Vivemos, sem sombra da dúvida, na era da avaliação: tudo tem de ser medido, avaliado, quantificado.

Depois de tanta "loucura", restará ainda alguma espécie de "paixão" para medir?

18.6.10

A morte serve para continuarmos a viver, muito simplesmente

A frase é de José Saramago, que nos deixou hoje.

Nos últimos dias, a morte levou  duas pessoas que eu estimava muito: um escritor, de quem eu era leitor assíduo, e um colega e amigo - Pedro Lau Ribeiro, fundador de SPPB - com quem eu  trabalhava e confraternizava semanalmente.

Saramago deixou um livro inacabado - ainda que a sua obra estivesse "fechada", como se dizia hoje na rádio; o Pedro deixou um desejo...inacabado.

Um e outro estiveram "vivos" até ao fim.

Eles continuarão a "viver" em nós, leitores e amigos.

Que a sua morte seja uma inspiração para continuarmos a viver.

Muito simplesmente.

17.6.10

In-disciplina

É uma frase do conhecido filósofo espanhol Fernando Savater: uma "autoridade" apreciada, lida e recomendada em muitas escolas portuguesas.

É a frase que abre um texto sobre o problema da indisciplina nas escolas e reza assim: "o aumento da violência nas escolas reflecte crise de autoridade familiar."

O texto de Savater é interessante, levanta muitas questões pertinentes, apela ao envolvimento de toda a sociedade na resolução do problema, mas parece-me que - tal como acontece em outros domínios - que se continua aqui no JOGO DO EMPURRA: a culpa é dos pais, a culpa é dos professores; no meio disto tudo tende a esquecer-se que tanto uns como outros, pais e professores, família e escola, também têm estado em mutação, juntamente com a sociedade, o país, a Europa, o mundo. Nos "tempos líquidos" que vivemos (Zygmunt Bauman), é preciso, talvez, "liquefazer" também, um pouco, o nosso modo de pensar e agir. Não podemos ser demasiado "sólidos" (rígidos), apelando aos velhos esquemas e respostas, quando o mundo se tornou "líquido". É preciso inventar novas soluções, não se limitando a repisar os caminhos já percorridos. 

É uma ideia.

4.6.10

Vanitas

Em 1973, no Seminário Encore, o psicanalista Jacques Lacan escrevia o seguinte: "o discurso científico engendrou toda a espécie de instrumentos que é preciso (...) qualificar de gadgets. Vós sois de ora avante, infinitamente mais do que podereis pensá-lo, sujeitos de instrumentos que, do microscópio à rádio-televisão, se tornam elementos da vossa existência." (Lição de 13 de Março de 1973).

Passados que são mais de trinta anos sobre o dito de Lacan, na era da Internet, a "realidade" está aí para confirmar o poder...do discurso.

Capitalismo e ciência dão-se as mãos para (in)satisfazer o desejo e mergulhar o sujeito num banho de "objectos" descartáveis.

27.5.10

A economia nervosa

Numa economia "nervosa", a grande escala, tende porventura a acontecer o mesmo que ao nível da "microfísica": quando se pretende "avaliar" objectivamente um determinado fenómeno acaba por se influenciar o comportamento do mesmo.

Não será também o que sucede com as empresas de Rating: ao pretenderem avaliar o "risco" da dívida deste ou daquele país não influenciarão - e, mais do que isso, determinarão - o seu próprio comportamento?

Não estaremos, então, perante aquilo que se chama - em particular no domínio da educação - uma profecia auto-realizada: os países considerados em risco acabam mesmo - quer estejam ou não verdadeiramente em risco à partida - numa tal situação?

Eis um dos paradoxos na era da "avaliação" (Jacques-Alain Miller) e da "sociedade do risco" (Ulrich Beck).

24.5.10

Tudo a nu...

Toda a gente fala, contra ou a favor, da jovem professora, Bruna Real, que acabou afastada das actividades lectivas por ter posado na revista Playboy.

Numa escola alemã da Hungria, uma jovem professora decidiu animar os seus alunos fazendo um streaptease.


Há algum tempo atrás, uma conhecida cientista e professora portuguesa  fez uma exposição com a matéria prima dos seus próprios orgasmos.

Em breve assistiremos, com toda a certeza, a outras manifestações do género:  numa sociedade da transparência, haverá cada vez mais desejo de ver e ser visto, de dar-se a ver.

É por isso que não deixam de ser, no mínimo, estranhas e paradoxais algumas reacções de indignação perante o caso da professora que posou na Playboy.


Mas não será, por outro lado - como acontece nalgumas comunidades com a reivindicação do uso do véu numa era supostamente dessacralizada - que estamos aqui perante algo que faz parte intrínseca da própria sexualidade: o retorno do "escuro" na era do "claro"?

Este é, na verdade, um domínio onde o claro-escuro é rei e senhor.

A nova panaceia

Na era da "loucura quantitativa", a "avaliação" surge como uma espécie de nova panaceia: pretende-se avaliar tudo e todos, acreditando, dessa forma, restituir ao mundo a confiança e a garantia perdidas.

A prova de que a "avaliação" pode chegar a ser uma ideologia e, mais do que isso, uma verdadeira impostura, é visível nas chamadas empresas de rating, que tantos estragos têm causado nos últimos tempos, em particular na economia e nas finanças europeias.

Há já quem fale na necessidade de "avaliar" a "avaliação" levada a cabo por estas empresas "avaliadoras". Seria preciso, talvez, revisitar Aristóteles para entender que estamos aqui ante o perigo de uma "regressão ao infinito": a avaliação precisa de ser avaliada; por sua vez, a avaliação da avaliação precisa de ser avaliada; e por aí fora até...ao infinito.

Um beco sem saída, portanto!

É natural, por conseguinte, que até a economia ande nervosa...

14.5.10

Que pensaria Marx

Diz-se por aí que os mercados andam "nervosos", "deprimidos"...

O que é isto: economia ou psicologia?

Que pensaria Marx desta linguagem?

13.5.10

Mudam-se os tempos...

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Quem não conhece este famoso verso do poeta Luís Vaz de Camões?

Porém, ao ver o mar de gente que se espraiou em Fátima, dei comigo a pensar: ainda que mudem os tempos, a "vontade" permanece igual.

Dizendo de outro modo: se bem que mudem as vontades, o "desejo" mantém-se.

Ou então: mesmo quando o desejo parece mudar, eternamente deslocalizado de si mesmo, há uma estranha satisfação (um gozo, dizia Lacan no seguimento de Freud) que nos mantém inertes.

A prova está no ritornelo, no refrão que teima em repetir-se, indiferente à mudança e à passagem do tempo: Fado, Fátima e Futebol.

Fátima é o que se vê.

O futebol vem aí.

E o fado...é ainda mais antigo que a República.

12.5.10

Do pior ao pai

Em tempo de crise "permanente" - como outrora se dizia da revolução - o apelo a um "pai" - se bem que os pais de agora já não sejam exactamente como eram - volta a juntar multidões.

Bento XVI está em Portugal e trouxe com ele o barco do "sentido" - como se ouviu, hoje, no seu discurso inaugural - e garantiu, na missa que celebrou junto ao Tejo, na Praça do Comércio, que nenhuma força adversa  poderá destruir a igreja.

Nem os recentes casos de pedofilia no seu próprio seio, nem a ciência ou o capitalismo vigentes conseguiram destronar o fervor religioso.

"O futuro de uma ilusão" (Freud) está à vista: inabalável, triunfante. Com a vinda do Papa assistimos, não ao declínio, mas ao "triunfo da religião" (Lacan).

7.5.10

Fala quem sabe

Comentando algumas vozes críticas da sua posição adversa relativamente às "grandes obras públicas" e, em particular, ao facto de se preparar para ouvir sobre o assunto um grupo de ex-ministros das finanças que se opõem abertamente a tais investimentos, o Presidente da República, num tom algo jocoso, entre o desplante e o enfado,  disse o seguinte (e cito de cor): Eu sei muito bem o que estou a fazer. Esta é uma matéria de que ainda não me esqueci.


Mas será que o Sr Presidente da República Portuguesa, Professor Doutor em Economia, Cavaco Silva, ainda não ouviu dizer que os mercados andam "nervosos"?

Apesar de "saber" muito de economia - mas alguém pode dizer que sabe muito de economia nos tempos que correm? - o Sr Presidente não sabe muito de literatura; competência, como sabemos - eis algo que se pode ainda  saber - da sua querida esposa.

Se soubesse um pouco mais de literatura - ele que até é conhecido como uma pessoa cuidadosa e prudente, fazendo, por assim dizer, a "economia" das palavras - poderia citar Baltasar Gracián, dizendo por exemplo: atenção, meus caros, é preciso, nos tempos que correm, uma certa "arte da prudência".


Mas nada: ele parece querer abordar a nova economia "nervosa" com os velhos instrumentos do "Discurso de Método", de Descartes.

E, no entanto, ele também sabe...que já não sabe nada, como diria Sócrates (refiro-me ao verdadeiro, o grego, não a qualquer simulacro). Com efeito, na sequência do mesmo comentário, e tendo como pano de fundo os milhões emprestados pela União Europeia e pelo FMI à Grécia, o Sr Presidente desabafou: Se isto não consegue acalmar os mercados, então o que conseguirá? Foi a pergunta que eu mesmo coloquei ao Sr Trichet (presidente do Banco Central Europeu - Sujeito-Suposto-Saber...de finanças e economia mais  do que ninguém) e ele teve dificuldade em responder (quem diria?).

Como "acalmar os mercados"...que andam tão agitados, tão sensíveis, tão "nervosos": lançando mais "gasolina" na fogueira (como fazem as empresas de Rating), vendo-se grego (como os gregos) ou com tiradas destas (como as do nosso querido Presidente)?

Venha o o Senhor das Moscas - ou o diabo, se preferirem - e escolha!

A loucura dos mercados

Diz-se que os mercados andam "nervosos"...

É a psicologização do mundo e da vida a chegar à economia.

3.5.10

WWW

Será que a resposta à velha questão freudiana "O que quer a mulher?" (Was Will das Weib) se tornou mais fácil na era da World Wide Web?

É em torno desta e de outras questões similares que irão decorrer as próximas jornadas do Centro de Estudos de Psicanálise.

É já no próximo dia 15 de Maio.

Para mais informações, consultar o site da Antena do Campo Freudiano.

28.4.10

Navegar à deriva na era do GPS

"Comissões de ética" (no Parlamento), "empresas de rating"...

Novos simulacros de bússula num mundo desbussolado?

Mas como podem tais bússulas querer indicar o Norte se de cada vez que se procunciam o mundo fica ainda mais atordoado, mais baralhado?

Parafraseando o poeta (quem diria?), entrámos a todo o vapor na era do "desassossego".

23.4.10

Jogos perigosos

Em época de crise, em que tudo parece devir incerto, liquefazer-se (Zygmunt Bauman), faltando uma instância Outra que possa garantir ou dar confiança ao(s) sujeito(s) - na era do risco e da desconfiança generalizada - o modo como algumas vozes continuam a pregar no deserto as virtualidades do "mercado" faz lembrar uma nova (velha) religião. A alternativa costuma ser posta nos seguintes termos: os que "acreditam" e os que não "acreditam" no mercado...

Acontece, porém, que nenhuma religião (como se tem visto ultimamente a céu aberto) está isenta de "pecado", muito menos a sacrossanta religião capitalista do mercado. Como dizia o velho Pascal, no domínio da fé, o que conta é a "aposta";  o mesmo se poderia dizer, por maioria de razão, do capitalismo.

Durante uma emissão de rádio que eu tive oportunidade de escutar há alguns dias atrás (Rádio Clube Português), o sub-director do Diário Económico, respondendo a uma questão sobre a tentativa do Estado de limitar, ou mesmo diminuir, o salário de alguns gestores, defendia que tal não deveria acontecer. Questionado pelo locutor se tais salários, em momento de crise e dificuldade para os portugueses, não eram uma vergonha, ele respondeu: goste-se ou não, o capitalismo funciona assim. Ao que acrescentou: não se questionam da mesma forma os salários escandalosos de certos jogadores, como Messi ou Ronaldo, por exemplo. 


Voilà: o capitalismo - e e tão apregoada "lei do mercado" - é comparável a um jogo, basicamente um jogo. Um jogo em que a "aposta" é (quase) tudo. Um jogo cada vez mais perigoso, como se tem visto pelos seus  efeitos, reais, um pouco por todo o mundo.

Talvez, por isso, o enorme sucesso da China: um país "comunista" celebrando festivamente e à grande (se bem que não à francesa, apesar das "imitações"!) o triunfo do "capitalismo" e do "jogo". O jogo do capitalismo.

16.4.10

A ponta do iceberg

Tem-se falado muito, nos últimos tempos, da pedofilia no seio da igreja católica. Como o vulcão da Islândia, que vai ensombrando com seu manto de cinza os céus do Norte da Europa, levando ao encerramento de muitos aeroportos do velho continente, também a cinza do escândalo vai ensombrando a velha instituição.

Mas há algo verdadeiramente novo debaixo do sol?

O que é novo não é a coisa propriamente dita - basta ver uma simples exposição sobre instrumentos de tortura concebidos no tempo da Inquisição, por exemplo, para nos apercebermos a que ponto chegava a mente perversa daqueles homens -, mas a sua exposição, a sua visibilidade a céu aberto.

Sejamos claros: isto é apenas a ponta do iceberg. A "sociedade da transparência" vai exigir sempre "mais, ainda", como se fosse possível ver tudo, expor tudo.

Parece ridículo, por isso, que a igreja tente enviar a bola para os homossexuais ou estes reenviá-la para a igreja. A coisa propriamente dita está em toda a parte, como se dizia outrora do bom velho Deus. Outras igrejas se juntarão à católica - pois não adiante dizer que este é um problema "católico" ou "protestante", "homo" ou "hetero", "casado" ou "celibatário"...

Como na pesca de "arrasto", quando a rede passa leva tudo com ela. Ou quase. E tudo será cada vez mais apanhado na rede da hipervisibilidade. Como recordava Gérad Wijcman, há algum tempo (Cf. L'Oeil Absolu), não se pode conter este processo inevitável, imparável - apesar dos esforços abnegados de alguns -, mas apenas mostrá-lo.


Por isso, uma passo mais, ainda!

25.3.10

Um novo "fetiche"?

Para fazer eventualmente face à angústia que mina o sujeito e o mundo contemporâneos, sem vínculos ou garantias que os sutentem de forma sólida (a nossa modernidade tornou-se "líquida", no dizer de Zygmunt Bauman), certas palavras (de ordem) são elevadas à dignidade de um verdadeiro fetiche. A "avaliação" tornou-se numa dessas palavras: a promessa de solidez num mundo liquefeito, volátil.

Que as palavras, aquilo que é dito tem peso e produz efeitos no real, não deixa de ser verdade. A prova mais recente, em particular para nós, portugeses - mas não só, como demonstra a atenção da cadeia de televisão americana CNN ao assunto durante o dia de ontem - foi a decisão entretanto tomada pela agência de rating Fitch de baixar a nota da dívida de Portugal. O nosso país ( e não só) parecem estar suspensos, amarrados a essa avaliação, como se de repente nos estivesse a faltar o ar...

Mas a avaliação não é apenas a que vem de fora, é também a que se implementa, que tem servido de leitmotiv, de tema recorrente das políticas governativas nos últimos anos. Em particular no domínio da educação (porventura a sua face mais visível, mediática, embora ela tenda a alargar-se a todos os domínios, no limite a todos os portugueses). Diz-se que é preciso "qualificar" e "avaliar" os portugueses.

Em nome do imperativo da "qualificação dos portugueses", foi criado o programa Novas Oportunidades (um belo nome, sem dúvida!) que consiste, resumidamente, na "desqualificação" dos professores (passando estes a ser designados como "formadores" que se limitam a "reconhecer" e/ou "validar" "competências") e na "qualificação" dos "formandos" (ou candidatos), por meio de um "processo formativo" baseado essencialmente numa "história de vida", a moldar de acordo com um "Referencial de competências-chave", segundo um ritmo pré-fabricado admistrativamente em que o tempo singular de cada um não tem a mínima importância. Tudo isto muito bem supervisionado, acompanhado, monitorizado e avaliado constantemente por meio de um conjunto de intervenientes e procedimentos que não lembram ao diabo (ou apenas lembrariam ao diabo!) e assentes numa carga burocrática da qual se pode dizer, no mínimo, que é um "processo" kafkiano, ou um pesadelo à George Orwell...

Para quê tudo isto? Para garantir a transparência, a solidez...de um processo que tende a minar, a liquefazer os elos sociais (professor-aluno, por exemplo) que sustentavam o ensino-aprendizagem na escola das velhas oportunidades? E não se pense que esta questão diz apenas respeito (como se fosse unicamente um problema de alguns) ao Ensino Secundário. Em nome da "qualificação dos portugueses" e de fazer entrar nas universidades os chamados "novos públicos", um programa que começou pelo Básico e se alargou ao Secundário, estende-se agora à Universidade.

E qual é o problema, dir-se-ia, desde que o processo seja bem acompanhado, monitorizado e avaliado? O acesso à universidade por parte de novos públicos e estudantes  não parece constituir, em si mesmo, um facto negativo. Nem sequer a entrada de estudantes menos preparados constitui um problema de maior,  uma vez que os docentes têm sempre a possibilidade de os reprovar...

Porém, "a necessidade de financiamento pela via orçamental incentiva as universidades não só a admitir muitos estudantes, como também a conceder-lhes o grau de licenciatura no prazo legal. Por isso, os docentes são cada vez mais pressionados pelas instituições a passar os alunos. Na avaliação a que, a partir de agora, serão sujeitos os professores universitários, a taxa de sucesso dos alunos é crucial. Os professores que não apresentarem altas taxas de aprovação dos seus alunos serão admoestados e prejudicados na sua carreira" (Cf. João Cardosos Rosas, "A Universidade em saldo", Jornal i, 25 Março 2010, p. 3).

Avaliação: fetiche ou impostura? Uma pseudociência -recoberta de sólida retórica - para fazer face à modernidade líquida?

Se a avaliação fosse verdadeiramente eficaz e cumprisse o que promete, não teria já "chumbado" de vez muitas das políticas (em particular no domínio da educação) que nos têm governado nos últimos anos?

E agora que o chamado bullying  está igualmente na ordem do dia - bem como os suicídios a ele associados - não seria de bom tom começar a interrogar em que medida a "ideologia" da avaliação não vai cada vez mais promover a "violência" (contra os outros e contra si mesmos) e as passagens ao acto?

Como dizia, em 2004, o psicanalista Jacques-Alain Miller, "não há clínica do sujeito sem clínica da civilização". Haverá frase mais actual?

24.3.10

De cara lavada!


O sítio da Antena do Campo Freudiano está de cara lavada: mais limpo e agradável à vista.

A Antena do Campo Freudiano (ACF) de Portugal é uma associação científica, técnica e profissional, sem fins lucrativos e com personalidade jurídica. Sob a égide da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e enquanto Grupo da Nova Escola Lacaniana (NLS) ela orienta aqueles que querem, no campo aberto por Freud, prosseguir com Lacan.

Para tal, ela desdobra a sua actividade num conjunto de vertentes que vem animando desde há vários anos: grupos de trabalho ("cartéis", na terminologia lacaniana), um Centro de Estudos de Psicanálise (CEP), jornadas anuais, colóquios diversos, publicação de livros e revistas, um Seminário que decorre semanalmente, várias colaborações internacionais...

Nenhuma aposta está ganha de antemão, mas - como dizia Pascal - é preciso apostar, na medida em que estamos embarcados. É o que tem acontecido a alguns desejos decididos nos últimos anos, apesar das muitas adversidades e resistências que o ensino de Lacan (ainda) suscita em Portugal.

19.3.10

Vigiar e prevenir

Na sequência de casos de violência,  física e psicológica (bullying) ocorridos em escolas portuguesas nos últimos tempos (supostamente na origem de passagens ao acto suicidas por parte de um aluno e de um professor, segundo o que tem sido notíciado), todas as vozes (inclusivamente aquelas que outrora se calaram ou,  pior ainda, deram o seu Ámen a um Estatuto do Aluno que era francamente "laxista" para estes e "punitivo" para os professores), vêm agora clamar: punição! Punam-se os alunos, punam-se os pais dos alunos, puna-se toda a gente, se for o caso! É preciso acabar com a violência nas escolas! E quem discorda? (O caso foi hoje discutido na Assembleia da República).

Mas a punição é um último recurso; por isso, há cada vez mais quem defenda que a resposta está sobretudo na "prevenção". É preciso "prevenir"!

Não há prevenção sem "previsão". Por isso, é previso "pre-ver": ver antes, com antecedência. Vigiar.

Eis a nova "palavra-de-ordem": PREVENÇÃO! Isso pode ir muito longe: desde antes do nascimento até depois da morte. Entrámos definitivamente, e a todo o vapor, na "civilização do olhar". Vigiar (isto é, prever) para  prevenir.

Pôr a sociedade sob vigilância faz com que toda a gente se torne progressivamente vigilante de toda a gente, e de si mesma. Se o mal está em mim, o "chui (flic) também. É preciso que eu me vigie. Culpado e vigilante, assim será o sujeito da civilização do olhar (Cf. , Gérard, Wajcman, L'oeil absolu, p. 103).

O melhor é ficar, desde já, PREVENIDO!

11.3.10

Elogio da sombra

Em "O Olho Absoluto", um admirável ensaio do escritor e psicanalista Gérard Wajcman sobre a "civilização do olhar", há um capítulo dedicado ao "elogio da sombra". Este curioso título evoca um outro admirável livro, do escritor japonês Junichiro Tanizaki, sobre a importância da sombra e dos seus efeitos na estética tradicional japonesa. Opõe-se aqui uma estética e uma cultura da luz (ocidental) a uma estética e uma cultura da sombra.

Na "sociedade da transparência" em que vivemos, onde tudo devém sujeito ou objecto do olhar e onde o imperativo da "visibilidade absoluta" exige que nada do que é exterior ou interior escape ao raio da "iluminação" (até para os mortos se exige agora uma "autópsia psicológica", pois se deve ver tudo, saber tudo, dissecar tudo...até já não restar nada da subjectividade ) poderá este "elogio da sombra", vindo de um Japão anterior ao fascínio pelo ocidente (1933) iluminar, de alguma forma, o momento sombrio que atravessamos?

Traduzo o que diz Gérard Wajcman (L'Oeil absolu, Éditions Denoël, 2010, pp. 50-51) sobre o assunto :

"Em breve se irá no encalço das sombras.
Restaurar os direitos da obscuridade é o que está em jogo.
Nunca havemos de reler suficientemente o admirável Elogio da sombra de Junichiro Tanizaki (1933). Este formidável escritor fala aí do amor, do seu amor pela sombra, do lugar e das funções da sombra na arte de viver japonesa. Eis um mundo em que harmonizar-se com a sombra constitui um modo de ser e de pensar e acima de tudo o móbil de uma intensa emoção estética. É também uma posição ética orientada pelo real e não por ideais transcendentes.
É, portanto, hoje, para nós, uma posição política.
Repete-se que o Japão é um mundo outro, povoado de signos misteriosos, estranhos e estrangeiros ao nosso, onde o gosto pela luz nos afasta do canto de amor pela sombra. Na verdade, quando se lê Tanizaki, compreendemos como tudo isso é idiota. Que o Japão é como aqui, que os japoneses são tal como nós, tão semelhantes e singulares como nós e que a sua relação com a sombra não tem nada de estranho ou exótico - apenas magnífico. E que se queremos compreender algo do que se passa em nossos nossos países é urgente ler o admirável elogio da sombra de Junichiro Tanizaki". 


Cultivar a sombra: eis uma nova proposta para o século XXI!

4.3.10

A hora do crepúsculo

Dizia Clarice Lispector, numa bela expressão, que o crepúsculo é a hora de ninguém (Cf. A Hora da Estrela).

Desconheço se o filósofo Michel Onfray já leu alguma vez Clarice, mas sei com toda a segurança que leu bastante Nietzsche, o criador da expressão: "crepúsculo dos ídolos". De tal forma que decidiu intitular o seu último livro, a sair em breve: "O crepúsculo de um ídolo. A efabulação freudiana".

Na apresentação que faz do seu livro, num dossiê consagrado A Freud (Lire, Março 2010, pp. 32-49), o autor começa por desfiar uma série de acusações relativamente ao inventor da psicanálise, todas elas começadas por "se" (se Freud isto, se Freud aquilo) para concluir do seguinte modo: "então, como explicar o sucesso de Freud, do freudismo e da psicanálise durante um século?"

Se Freud isto e aquilo, como explicar que ele permaneça tão vivo, a ponto de continuar a desencadear tamanhas paixões? Os mortos não são (geralmente) atacados, a não ser em caso de vandalismo, não é verdade? E Freud não pára de fazer comichão...

Que há erros na obra (o próprio Freud, acusado por Michel Onfray de desonestidade, o reconhece), avanços e recuos no método (é próprio de tudo o que começa) ou contradições no homem (Freud) não deixa de ser verdade e já foi, por muitas vezes, denunciado. Mas aquele que estiver livre de contradições que atire a primeira pedra!

Aliás, o que é um pensamento livre de contradição? Não será o sonho de muitos filósofos, por exemplo, ao longo da história da filosofia: um saber absoluto, sem falha e sem resto, fechado sobre si mesmo? Nesse caso, bem aventuradas as contradições freudianas.

Só os mortos não são contraditórios.

3.3.10

(Des)acordo ortográfico?

Se o "inconsciente está estruturado como uma linguagem" (Lacan) e se as linhas com que se cose o destino do ser falado e falante também são as da língua (lalangue), então quando se procede a alterações orto-gráficas, como é o caso, tal não pode deixar de ter consequências para esse mesmo ser.

A língua é uma coisa viva e não há, por isso, que lamentar as "alterações". Elas acabam por acontecer de um modo ou de outro, com ou sem "acordo".

Claro que uma língua não é feita unicamente para "comunicar", mas também e, fundamentalmente, para atrapalhar, enredar, provocar equívocos e mal-entendidos. E nenhum "acordo" orto-gráfico vai conseguir, alguma vez, "endireitar" a língua...

E ainda bem, pois o que seria, por exemplo, da "piada", do dito espirituoso se o equívoco desaparecesse?

Mas não há que temer: com ou sem acordo, o mal-entendido vai continuar!

1.3.10

Um homem sério

No último filme dos irmãos Coen, "A Serious Man", há um estudante universitário que tenta subornar o seu professor de física (Larry Gopnik), que o acabara de chumbar na respectiva cadeira. Como "homem sério" que é, Larry Gopnik não aceita o suborno; em vez disso, tenta explicar ao aluno a razão pela qual o chumbou: ele não domina a matemática e sem esta não é possível avançar na física.

Lição de Galileu: se o universo está escrito em caracteres matemáticos, mais do que "compreendê-lo", de buscar um "sentido" para ele, importa saber escrever, equacionar, reduzi-lo à fórmula matemática. Mesmo se Larry Gopnik desenha no quadro negro dois gatos (Schrödinger) para ilustrar o famoso "princípio de incerteza", ele explica ao referido aluno que o essencial não é isso,  mas antes a possibilidade de tratar a "incerteza" por meio da "escrita" matemática. Uma das imagens impressionantes do filme mostra, precisamente, o quadro negro completamente coberto de letras, de fórmulas matemáticas.

Porém, o que faz Larry Gopnik quando a sua mulher pede o divórcio e toda a sua vida começa literalmente a desmoronar, sem razão aparente, como se o céu e a terra conspirassem contra ele? O mesmo que toda a gente: busca um sentido, uma razão para aquilo, junto de quem é suposto-saber: no caso, recorrendo a três rabinos. Para um homem formado na ciência mais exacta (apesar de o "princípio da incerteza" parecer sugerir outra coisa), na "racionalidade" mais exigente, aquilo que lhe acontece é causa de grande perturbação, uma vez que parece ser rebelde a toda e qualquer lógica "causal", não existindo aparentemente nenhuma "razão" que o justifique. Para quem defendia junto do aluno que o tentou subornar que as nossas acções têm consequências, nada na acção de Gopnik parece justificar uma tal consequência. Ele confronta-se aqui com a ilogicidade: nenhuma causa, nenhuma razão suficiente. Tal como Job, a famosa personagem bíblica, ele parece ser "castigado" por um crime que não cometeu.

Finalmente, tal como veio, sem razão, aquilo que lhe acontece também se foi. Sem razão. Como se, na (i)lógica da vida, nem tudo fosse escrito ou pudesse ser escrito previamente ou de uma vez por todas. Mesmo que não se pare de sonhar com isso, que cada qual vá forjando um sonho para si mesmo. Um sonho de que que a vida - ou os "pesadelos", como acontece no filme - se encarrega de nos despertar.

26.2.10

A coisa vai continuar a aquecer...

Há alguns anos, dois cientistas de renome (Alain Sokal e Jean Bricmont) propuseram-se denunciar uma série de "imposturas intelectuais", isto é, de erros, abusos ou mistificações de conceitos científicos, provenientes em particular da física e da matemática, por parte de conhecidos intelectuais franceses (filósofos, sociólogos, psicanalistas...) com grande sucesso e acolhimento nalgumas universidades americanas.

O rastilho da bomba que então explodiu foi ateado na Primavera de 1996, quando uma conceituada revista americana - a Social Text - publicou um artigo com o título: "Transgredir as fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica". Em breve, a citada revista teve de reconhecer que o artigo em causa era, afinal, uma paródia, uma sátira forjada pelo próprio Sokal para denunciar as diversas extrapolações abusivas das ciências exactas levadas a cabo, nomeadamente, por um certo ""pós-modernismo" " que tende a "relativizar" o valor da objectividade científica.

Temos, portanto, de um lado, a objectividade da ciência e a honestidade dos cientistas dessa área; do outro, a impostura e a desonestidade intelectual dos demais.

Esta ideia está de tal modo enraizada, disseminada que ninguém se atreve hoje a contestar uma informação quando ela se apresenta com o selo de garantia da ciência "exacta". Os próprios "abusos" denunciados por Alain Sokal e Jean Bricmont seriam porventura inconcebíveis se a ciência não desse uma tal garantia. Ela atrai, serve de referência a todos aqueles que pretendem revestir de "objectividade", de "cientificidade" os seus procedimentos.

De um lado, portanto, a objectividade da ciência exacta; do outro, a impostura...

Era isto, pelo menos, o que rezava a história até há alguns meses atrás quando alguns hackers conseguiram ter acesso a uma série de e-mails trocados entre importantes cientistas de uma prestigiada universidade inglesa (East Anglia) onde funciona um dos mais reputados centros de investigação do mundo sobre "alterações climáticas". Os e-mails em causa mostravam que os cientistas em questão manipularam dados para reforçar o seu argumento de que o famigerado "aquecimento global" é um facto inconstestável e é causado pela acção humana. O que tem servido, muitas vezes, para instigar uma certa ecologia "desumanizada"...

Contra tais argumentos...não há factos! Sobretudo quando os argumentos têm selo de garantia da ciência exacta! Isso permitiu, durante anos, escamotear, manipular e falsear toda uma série de dados sobre o "aquecimento global",  impedindo  nomeadamente a publicação de outros argumentos em sentido contrário nas revistas científicas de prestígio internacional.

Será que vamos assistir, em breve, a uma nova edição do livro de Sokal e Bricmont (Imposturas Intelectuais - Parte II), agora incidindo sobre os "abusos" no domínio da sacrossanta ciência "exacta", levada a cabo por reputados e honestos cientistas? Será esta a prova de que os cientistas, mesmo quando são "exactos", nem sempre dizem "toda a verdade"? Aliás, dizer "toda" a verdade é impossível por estrutura ao ser falante. E os cientistas, por mais que tentem reduzir o real à letra (para aquém ou além do afecto) também são "afectados" por outros discursos e interesses (para aquém ou além da ciência).

Queiramos ou não, o mundo está mesmo a aquecer!

19.2.10

Fazer-se olhar

O que aconteceu à deflação da palavra (já ninguém dá a sua palavra) no nosso tempo? Proponho: a inflação do olhar. Vivemos numa "civilização do olhar" (Gérard Wajcman)

Tudo devém objecto de "olhar" desde o mais íntimo e privado até ao mais público: a videovigilância, a imagiologia cerebral, a tele-realidade...

Inumeráveis dispositivos que visam tornar-nos completamente visíveis e transparentes. E cada um de nós participa activamente, festivamente, nessa desocultação da face e da alma.

A ciência e a técnica fabricam novos deuses omnividentes (após a "morte de Deus"), um novo Argos dotado de milhões de olhos que nunca dormem. Outrora, apenas os criminosos eram objecto de vigilância, hoje somos todos.

O "olhar global" infiltra cada pedacinho da nossa existência, do nascimento à morte. Novas ferramentas são criadas todos os dias para que cada um saiba o que todos os outros andam a fazer: facebook, twitter, buzz, etc., etc.etc. Tudo visível, tudo registável.

Se ver é uma arma de poder, então cada um de nós participa neste novo poder do "olho absoluto". Uma nova ideologia do "hipervisível".

Como resistir a tal uma omnivisão se cada um de nós é cada vez mais sujeito, como diria Étienne de La Boétie, a uma "servidão voluntária"?

11.2.10

Quem é Michel Onfray?

Um filósofo contemporâneo. Vivo. Jovem. Tem apenas 51 anos, salvo erro. É talvez um dos filósofos mais lidos de França, um país onde ainda se lê...filosofia. Há mesmo revistas de filosofia que se vendem em quiosques. Procurei por todo o lado, em Portugal, mais concretamente em Lisboa, em busca de uma delas (Philosophie Magazine) e só encontrei Playboy, Maxmen e outras que tais em grandes quantidades. Não está mal... e tem, aliás, algo a ver com este filósofo jovem, hedonista, libertário e defensor de um "erotismo solar".

Confesso que esta personagem me é de alguma forma simpática. Habituado a um país de "fado" e "fadistas" (de fatalistas de toda a laia), cantando a eterna ladainha do sofrimento, do ressentimento, da vitimização - tudo nos serve para chorar, lamentar e descrer de nós -, do "sacrifício" (agora erigido, por alguns políticos, em nova religião nacional), é bom saber que há alguém que se propõe afirmar a vida (à maneira de Nietzsche), "desteologizar" e "descristianizar" a existência (no que ela tem de paixão pelo "valor" do sofrimento) e de empreender uma crítica a toda a "razão dietética"...

Além disso, para o bem ou para o mal, ele teve de "esculpir-se" a si próprio, não herdando (quase) nada para além de uma história que parecia ter todos os condimentos para não não dar certo (tal a série de abandonos sucessivos: a avó que abandona a mãe, a mãe que o abandona a ele...num orfanato dirigido por padres salesianos, onde viveu, ou "morreu", segundo conta, quatro anos de Inferno)...

Apesar disso - quem o diz é o próprio - a filosofia salvou-o, permitindo-lhe viver. A filosofia que recupera aqui o sua vertente prática "terapêutica", como meio para viver...melhor, antes de se transformar numa especulação demasiadamente abstracta.

É por isso que Michel Onfray se propõe recuperar muitos dos filósofos "abandonados" pela história oficial da filosofia, propondo uma "contra-filosofia" (Cf. La Puissance d'exister, Grasset, 2006). Uma filosofia do avesso, por assim dizer. Levantando do chão, como diria Saramago, todos aqueles que a tradição filosófica (de Platão a Heidegger) deixou cair.

Para isso, criou sozinho uma Universidade Popular: livre, aberta a todos, sem burocracias (ai de nós, atolados cada vez mais em normas, legislações, avaliações...), sem elitismos balofos, movida tão pelo pelo "gosto" (também no sentido culinário do termo, ele que escreveu um livro que se chama: "A razão gulosa - filosofia do gosto"); enfim, um lugar onde reina o prazer e a descontracção. É isso possível? Michel Onfray mostrou, ao longo de mais de dez anos, que (pelo menos em França) é ainda possível.

Por fim, dá gosto ler um autor que escreve muito (mais de trinta livros em poucos anos), mas sempre com uma agilidade, uma frescura assinaláveis. Dá vontade de ler, de voltar a ler.

Pois bem, este filósofo propôs-se recentemente, no curso da sua Universidade Popular, tomar Freud como o seu inimigo e desmontar as suas ideias. Confesso que fiquei algo desiludido ao ler alguns dos argumentos que ele desfiou na seu debate com o psicanalista Jacques-Alain Miller: dizer que Freud era "cocainómano", por exemplo, não tem novidade e é irrelevante; além disso, Freud não esperou que viessem os críticos denunciar os seus "erros", pois ele foi o primeiro a reconhecer grande parte deles.

Já sou mais sensível à denúncia de um certo pessimismo (alicerçado, por exemplo, na "Pulsão de morte") que parece emanar da obra de Freud. Como se a cultura do "sofrimento" (o "cristianismo" do sofrimento) continuasse a laborar, por outros meios, na teoria e na prática freudianas. Desse ponto de vista, ante o projecto de "descristianização" da  vida e da existência, não deixa de haver aqui uma certa coerência.

Mas tudo isto em nome de quê?

Não pude deixar de estremecer ao ler a seguinte frase no seu livro "La puissance d'exister": "(...) a conclusão impõe-se: nós somos o nosso cérebro" (p. 239). Mais arrepiado fiquei quando percebi que ele era, finalmente, um dos adeptos do Livro Negro da Psicanálise (Éditions les Arènes), apesar de não estar de acordo com muitas coisas que aí se diziam.

Será este o desfecho de uma filosofia que se pretende libertária, hedonista, descristianizada: a rasura da "singularidade" em nome dos novos imperativos generalistas, uniformizadores? A ser assim, como dizia Clotilde Leguil numa "Carta aberta a Michel Onfray" (Le Nouvel Âne, nº 10, pp. 36-39): "a psicanálise - essa mesma que Freud inventou - não se tornará jamais a regra, visto que, por natureza, ela é feita para convidar cada um a não renunciar a ser uma excepção."