Qual é afinal o segredo? De quem são os olhos?
Na verdade, o filme de Juan José Campanella - vencedor do Óscar para melhor filme estrangeiro em 2010 - não revela nem uma coisa nem outra. Vai abrindo portas - pode ser isto ou aquilo, deste ou daquele - mas no fim a porta é fechada e o filme termina; talvez porque os olhos - e o segredo que os (en)cerra, que eles (en)cerram - sejam também os nossos, de cada um de nós, que vê este filme.
É um filme magnífico com um enredo aparentemente banal: Benjamin Esposito (Ricardo Darín), reformado da polícia, não sabendo como encher o vazio dos dias e vivendo atormentado pelas circunstâncias de um crime passional ocorrido há vinte e cinco anos atrás, que ele próprio investigara na altura - e, até certo ponto, resolvera - decide escrever um romance para acertar as contas com o passado, incluindo o seu. Também ele tinha um caso por resolver com a sua superiora hierárquica (Irene Menéndes Hastings), a quem - por "temor" - jamais confessara o seu amor. Temia dizer-lhe que a amava.
Porém, as várias tentativas de resgatar a história parecem falhar. Vários começos de romance - fazendo lembrar os começos de romance do livro de Italo Calvino Se numa noite de Inverno um viajante - vão parar ao lixo. Benjamin Esposito não está satisfeito com o resultado. Há algo que falta, que teima em faltar.
Pelo meio, há uma palavra que lhe ocorre - palavra sunâmbula, por assim dizer, no limbo entre o sono e a vigília - e cujo sentido permanece em suspenso até ao fim: Temo. Há igualmente um detalhe engraçado: uma velha Olivetti que não consegue escrever a letra a.
São pormenores, sem dúvida. Detalhes. Mas talvez a grandeza deste filme resida, precisamente, nos pequenos detalhes. Como os piropos, a veia humorística de Sandoval - o colega e amigo de Esposito.
O que obceca, afinal, Esposito? Qual a verdade que ele pretende restituir, o segredo que busca desvendar por meio da escrita?
Na verdade, há vinte e cinco anos atrás, com a ajuda inestimável do seu amigo Sandoval, ele acabara por descobrir - e fazer prender - o assassino da bela jovem assassinada; porém, há algo que continua a atormentá-lo (até porque o assassino fora entretanto liberto e vivia sob protecção do regime). Mas não era apenas isso: havia algo, por assim dizer, ainda mais tocante - o amor, a paixão inabalável que ligara para sempre o marido à sua jovem esposa assassinada.
Mas não é tanto a sombra da melancolia que sobrevive ao luto impossível - como diria Freud - mas o sol da vingança que ilumina o seu acto. Quando, numa das últimas cenas do filme, Esposito faz uma visita ao marido da jovem assassinada, descobre, espantado, que ele mantinha em cativeiro o assassino da sua esposa. Mais do que matá-lo de uma vez por todas, ele queria mantê-lo em "prisão perpétua". Para fazê-lo pagar para sempre - e em silêncio - o castigo do crime hediondo que cometera. Ele sabe que o Inferno não é uma morte rápida, mas um sofrimento lento e perpétuo.
À ignorância (obsessiva) de Esposito - na sua busca atormentada pela verdade - responde o amor (também obsessivo) do eterno marido da vítima e, sob aquele, o ódio, a terrível paixão da vingança.
Razão tinha Sandoval, o amigo de Esposito, quando justificava o seu próprio comportamento (alcoólico) e o comportamento da maior parte dos homens com o termo: paixão (pasión). A paixão do álcool, do amor, do ódio. Ou "gozo": aquilo que move cada um (o violador, o polícia, o escritor, o marido, o vingador...o espectador?) e que faz, para cada um deles, que o universo não seja vão. Ou, pelo menos, aparente não o ser.
Numa das últimas cenas, vemos Esposito escrevendo uma letra, como se tivesse de repente descoberto que a letra que a velha Olivetti não conseguia escrever era, precisamente, a única letra que faltava para dar sentido à estranha palavra "temo" que um dia (uma noite) lhe ocorrera: TEaMO, vemo-lo então escrever; a palavra que nunca ousara dizer à sua colega e superiora Irène Menéndez Hastings.
Uma letra apenas. Uma vida.
2 comentários:
Gostei!
Eu diria que o segredo de quaisquer olhos é o segredo do seu olhar, aliás, de qualquer olhar que se predisponha à visão até ao fim.
"Há algo que falta".
Se calhar, o essencial do que há para ver é sempre, precisamente, a(quilo que nos) falta. Eventualmente, um grande "a", ainda que pequeno...
Carlos Pereirinha
O segredo estava no olhar dele para a vida. Uma vida que ele desejava e não viveu.
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