Para fazer eventualmente face à angústia que mina o sujeito e o mundo contemporâneos, sem vínculos ou garantias que os sutentem de forma sólida (a nossa modernidade tornou-se "líquida", no dizer de Zygmunt Bauman), certas palavras (de ordem) são elevadas à dignidade de um verdadeiro fetiche. A "avaliação" tornou-se numa dessas palavras: a promessa de solidez num mundo liquefeito, volátil.
Que as palavras, aquilo que é dito tem peso e produz efeitos no real, não deixa de ser verdade. A prova mais recente, em particular para nós, portugeses - mas não só, como demonstra a atenção da cadeia de televisão americana CNN ao assunto durante o dia de ontem - foi a decisão entretanto tomada pela agência de rating Fitch de baixar a nota da dívida de Portugal. O nosso país ( e não só) parecem estar suspensos, amarrados a essa avaliação, como se de repente nos estivesse a faltar o ar...
Mas a avaliação não é apenas a que vem de fora, é também a que se implementa, que tem servido de leitmotiv, de tema recorrente das políticas governativas nos últimos anos. Em particular no domínio da educação (porventura a sua face mais visível, mediática, embora ela tenda a alargar-se a todos os domínios, no limite a todos os portugueses). Diz-se que é preciso "qualificar" e "avaliar" os portugueses.
Em nome do imperativo da "qualificação dos portugueses", foi criado o programa Novas Oportunidades (um belo nome, sem dúvida!) que consiste, resumidamente, na "desqualificação" dos professores (passando estes a ser designados como "formadores" que se limitam a "reconhecer" e/ou "validar" "competências") e na "qualificação" dos "formandos" (ou candidatos), por meio de um "processo formativo" baseado essencialmente numa "história de vida", a moldar de acordo com um "Referencial de competências-chave", segundo um ritmo pré-fabricado admistrativamente em que o tempo singular de cada um não tem a mínima importância. Tudo isto muito bem supervisionado, acompanhado, monitorizado e avaliado constantemente por meio de um conjunto de intervenientes e procedimentos que não lembram ao diabo (ou apenas lembrariam ao diabo!) e assentes numa carga burocrática da qual se pode dizer, no mínimo, que é um "processo" kafkiano, ou um pesadelo à George Orwell...
Para quê tudo isto? Para garantir a transparência, a solidez...de um processo que tende a minar, a liquefazer os elos sociais (professor-aluno, por exemplo) que sustentavam o ensino-aprendizagem na escola das velhas oportunidades? E não se pense que esta questão diz apenas respeito (como se fosse unicamente um problema de alguns) ao Ensino Secundário. Em nome da "qualificação dos portugueses" e de fazer entrar nas universidades os chamados "novos públicos", um programa que começou pelo Básico e se alargou ao Secundário, estende-se agora à Universidade.
E qual é o problema, dir-se-ia, desde que o processo seja bem acompanhado, monitorizado e avaliado? O acesso à universidade por parte de novos públicos e estudantes não parece constituir, em si mesmo, um facto negativo. Nem sequer a entrada de estudantes menos preparados constitui um problema de maior, uma vez que os docentes têm sempre a possibilidade de os reprovar...
Porém, "a necessidade de financiamento pela via orçamental incentiva as universidades não só a admitir muitos estudantes, como também a conceder-lhes o grau de licenciatura no prazo legal. Por isso, os docentes são cada vez mais pressionados pelas instituições a passar os alunos. Na avaliação a que, a partir de agora, serão sujeitos os professores universitários, a taxa de sucesso dos alunos é crucial. Os professores que não apresentarem altas taxas de aprovação dos seus alunos serão admoestados e prejudicados na sua carreira" (Cf. João Cardosos Rosas, "A Universidade em saldo", Jornal i, 25 Março 2010, p. 3).
Avaliação: fetiche ou impostura? Uma pseudociência -recoberta de sólida retórica - para fazer face à modernidade líquida?
Se a avaliação fosse verdadeiramente eficaz e cumprisse o que promete, não teria já "chumbado" de vez muitas das políticas (em particular no domínio da educação) que nos têm governado nos últimos anos?
E agora que o chamado bullying está igualmente na ordem do dia - bem como os suicídios a ele associados - não seria de bom tom começar a interrogar em que medida a "ideologia" da avaliação não vai cada vez mais promover a "violência" (contra os outros e contra si mesmos) e as passagens ao acto?
Como dizia, em 2004, o psicanalista Jacques-Alain Miller, "não há clínica do sujeito sem clínica da civilização". Haverá frase mais actual?
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