30.11.10

Andar à roda

Se houve coisa que mudou nos últimos anos em Portugal foi o número de rotundas. O país está cheio rotundas. Diminuiu a natalidade, como se pode ver no site Pordata, mas não param de nascer rotundas.

Para que serve uma rotunda?

Em Matteo perdeu o emprego, o último livro de Gonçalo M. Tavares - vencedor do prémio do melhor livro estrangeiro publicado em França em 2010 -  há, pelo menos, duas rotundas. Na primeira rotunda, a personagem Aaronson, "entre os vinte e sete e os trinta anos, circula - como um insecto obcecado - em torno de uma rotunda." (p 9).

Uma rotunda serve, então, para circular. Como diria a polícia - que não entra nesta primeira rotunda - circule, circule.

Será por isso que também nós não paramos de circular, de andar à roda, como insectos obcecados, repetindo o refrão de uma música de José Mário Branco, já antiga mas sempre actual, numa altura em que se diz que ele vem, que não vem, que virá, é certo: O FMI?

"Enquanto estiver na rotunda não estou perdido, pelo menos não volto atrás. E eis um dos atractivos daquela circulação. (...) Em redor de uma rotunda ninguém volta atrás, ninguém se engana, ninguém tem de assumir o erro e fazer inversão de marcha. A vida, apesar de tudo, é fácil. Numa rotunda." (p. 10).

Mas há uma outra rotunda, a segunda: "uma rotunda, se assim se pode chamar, quadrada" (p. 89). Construída por um estranho arquitecto, de nome Holzberg, ela obriga todo aquele que a contorna a não andar simplesmente à volta. " Em rotundas normais, os automóveis não desenhavam à mão livre, na expressão de Holzberg, mas copiavam; como alguém obediente que faz sem ter a noção do que está a fazer." (p. 89-90).

Na verdade, este é um livro que não tem apenas duas rotundas, mas é em si mesmo, todo ele, uma rotunda. Uma rotunda quadrada, por assim dizer, graças ao "estilo" singular de Gonçalo M. Tavares.Um livro para todos e para ninguém, como diria Nietzche. E muitíssimo actual, ao mesmo tempo que intempestivo!

7 comentários:

Anónimo disse...

Filipe, por acaso esse é um tema que ocupa a minha mente desde os 15anos...sim, a rotunda e as muitas voltas que damos num mesmo lugar...numa mesma palavra, ou num mesmo significante... Vou diminuir meu tempo de "rotundar" Lacan e ler o Tavares, construir outra rotunda...pois a rotunda pessoana me toma quase toda a semana.
Bjs,
Cláudia.

Filipe Pereirinha disse...

Mas não serão aqueles que pensam andar em linha recta que mais "rotundam"? O inconsciente (foi o nome que Freud deu a isso, enfim!)faz-nos, de qualquer modo, andar à volta, andar à volta. Alguns acabam "atropelados" (caso de Aaronson), outros...

Filipe Pereirinha disse...

De qualquer modo, ler Gonçalo M. Tavares (para além da obra de Pessoa e do ensino de Lacan) compensa. É um grande escritor com uma escrita genuinamente singular. Na era do pronto-a-vestir, do pronto-a-comer...e calar, ele faz-nos percorrer caminhos novos, mesmo que "rotundem" em torno de qualquer Coisa (o estranho? o informe? o inomimável?). Na sua maneira de dizer: trata-se de "cartografar a desordem" (Matteo perdeu o emprego, p. 182). Voilà!

Dobra disse...

Ler Gonçalo M. Tavares é entrar numa espécie de rotunda que nos prende dentro, nos faz andar às voltas, nos aponta caminhos de saída e nos diz que também podíamos não ter entrado lá! Entrei nos livros deste senhor há dois anos e, até hoje, não consigo mais que circular por todos, as vezes que acho necessárias ao deleite e ao exercício intelectual sempre novo, de cada vez que pego neles. Poucos escritores são assim.

Filipe Pereirinha disse...

"Temos escritores "sólidos" que se afirmaram, caso inequívoco de Gonçalo M. Tavares, um tipo de escritor raro em Portugal" (João Barrento, Revista Ler, Dezembro 2010, p. 87.

Anónimo disse...

Acho que ando a "rotundar". Preciso me salvar, socorro!!!!!!

Anónimo disse...

Puxa, não é que eu ia dizer que ando meio perdida numa rotunda, que tenho saudades de mim, que não sei se encontrarei saída e acabo de ler algo igual!!! Irmão/ã de andar às voltas na rotunda, saudações! By the way, vou ler esse Gonçalo!