1.5.05

Rimar contra a maré

Devo a Afreudite (Miguel Mota) o achado que é esta definição: "Poesia é rimar contra a maré". E tudo isto graças à simples modificação de uma letra. É uma espécie de ready-made à Marcel Duchamp em que bastou descontextualizar e renomear objectos já existentes para que todo o sentidos das coisas (e da arte) se modificasse.

Devo a Bartleby (Melville) uma frase que, mesmo se não rima, não deixa de remar contra a maré do pensamento positivo, do sim a qualquer preço: "Eu preferia não" (I would prefer not to). É uma espécie de "objecção de consciência", quando esta já não está na moda; um grito de liberdade, quando esta parece não ser o politicamente correcto.

Sirvamo-nos da rima como um remo e talvez seja possível (ainda) alguma liberdade na era do "homem sem qualidades"!

Qual foi a ideia?


Joseph Kosuth, Intitulado (Arte como Ideia como Ideia), (ideia), 1967

Ernst Junger diz, no Problema de Aladino (Lisboa, Cotovia), que "é precisamente quando nada se encontra escondido que o problema se torna ainda mais inquietante". Nada de "psicologia das profundezas", portanto.

O problema do trabalho que pôde ser visto em Serralves até ao dia 27 do mês que ontem findou, é que, num certo sentido, não pôde ser visto nem ouvido, apesar de não estar de modo algum escondido e ser, pelo contrário, bem visível.

É um trabalho paradoxal, atópico, que não tem sala própria nem está exposto em lado nenhum. A sua principal característica é a "imaterialidade". O seu principal efeito, a "surpresa". Mesmo do ponto de vista da arte mais "experimental", isto não deixa de ter algo de arrojado, insituável. São os próprios vigilantes e monitores, auxiliares habituais do processo artístico, que aqui são transformados - para surpresa geral - na própria obra de arte.

Em vez do manuseamento e transformação de objectos, o artista - Tino Seghal - propõe-se transformar/transmitir acções. O que sustenta essa transformação/transmissão é o "dinheiro" (objecto material, mas também simbólico por excelência) movimentado na venda/compra do "trabalho" deste artista, bem como o "contrato oral", na presença de um advogado ou notário, por meio do qual o autor ensina/transmite ao comprador o o estilo, isto é, a maneira de fazer, de executar as suas acções ,ficando este com os direitos sobre elas. Quando ele (um museu, por exemplo) quiser vender, por sua vez, ensina/transmite ao futuro comprador como fazer e assim por diante. É uma espécie de "corrente de transmissão" o que assim se gera. Desta forma, a arte é acontecimento efémero: ideia (i)materializada.

Hegel dizia que a arte é coisa do passado; este artista poderia retorquir: é coisa de passagem. Passa-se de uns (S1) para os outros (S2). Que bela fórmula do inconsciente: nem individual nem colectivo, mas o sujeito que passa entre-dois.

22.4.05

Um novo papa?


F. Bacon, Estudo Sobre o Retrato do Papa Inocente X de Velazques, 1953

Na grande seca de inteligência que tem fustigado o país, é bom sentir uma gota de água.

José Gil - o filósofo do momento - tem uma coluna no Courrier International - Edição Portruguesa que se chama, deleuziamente, "Linhas de Fuga".

A "linha de fuga" da semana anterior (nº 2 - 15 a 21 de Abril de 2005) foi consagrada à "Segunda morte de João Paulo II". Nela se fala essencialmente de algo que resiste ao conceito e que, por isso, é nomeado de várias formas: o carisma, a graça, a aura, o charme, o estilo. Mas todos os nomes parecem deixar um resto inapreensível por nomear. Um resto insituável, atópico.

Lacan - retomando um termo grego no Seminário que dedicou em grande parte ao "Banquete de Platão" (Seminário VIII, A Transferência) - poderia, talvez, ajudar-nos a entender de que se trata.

Trata-se de que o segredo, necessário à maturação da vida (segundo o artigo de José Gil), é verdadeiramente a a(g)alma deste negócio "carismático". É por isso que os media - em particular a televisão - ao eliminarem "brutalmente o silêncio e a sombra", ao vasculharem a intimidade até ao abjecto, ao furtarem ao sujeito, seja ele qual for, o direito ao "segredo", em nome da sacra transparência, acabam por elimar todo e qualquer "carisma" e, com isso, o que pode causar o desejo de saber. Quando se alimenta demasiado a pulsão escópica, o desejo morre de fome.

Mas não foi precisamente o ex-papa, João Paulo, o principal responsável ao decidir revelar, finalmente, os "segredos" de Fátima? Depois de revelados, não têm "graça" nehuma. Parvoíces de crianças!

***

Um novo papa "nasceu" entretanto.

Um novo papa - como mostra à evidência o actual - não é um papa novo. Já nasceu velho para o cargo. Sem surpresa e sem mistério. A tradição do Espírito Santo já não é o quer era!

"Que morra Joseph Ratzinger (se a frase terminasse aqui tinha um outro sentido...) para que viva Bento XVI!"

Conseguirá este papa morrer de uma "segunda morte" para nascer de um "segundo nascimento?"

21.4.05

o santomem


A publicação de um novo seminário de Jacques Lacan é sempre um acontecimento. E quando o texto tem em Joyce o pretexto, como é o caso, o acontecimento redobra. Ele é a prova de que a psicanálise, dentro e fora de muros, não perdeu ainda a sua produtividade. Ou não deveria ter perdido! Quando se fala tanto do "santo padre", este seminário mostra o que pode haver para além ou para aquém do "pai": o "sintoma" (que Lacan escreve de uma forma não usual, com uma grafia antiga - segundo uma preferência que era também a do nosso Pessoa em alguns escritos, como o Livro do Desassossego).

Saúda-se o estilo e essa espécie de "língua estrangeira na língua" que Lacan, Mallarmé, Joyce, Pessoa, entre outros, cultivaram: uma autêntica pedrada no charco da linguagem conformista e conformada que faz as delícias dos bem-pensantes do nosso tempo.

É uma linguagem que, por não estar na moda, nos permite recuar um pouco, tomar balanço e dar um salto em direcção ao futuro. É o que se espera!

15.4.05

Pausa para descanso (?)


Edward Hopper, Pessoas ao Sol, 1960

O trabalhador ideal

Ouvi há poucos dias num órgão de referência da comunicação social que, segundo um estudo italiano, as pausas para fumar implicam um prejuízo da ordem de milhões para as empresas durante o ano.

Eis o que leva, talvez, a este "furor prohibendi" relativamente ao fumo e aos fumadores: não perder tempo, pois não há tempo a perder. Não é porque "fumar mata" (pois trabalhar em excesso, sem pausas, também pode matar), mas porque "fumar interrompe" a laboração contínua, que se proibe ao fumador de fumar o seu cigarro.

O trabalhador ideal - segundo o discurso do capitalista - seria aquele que mesmo de noite, de férias... não deixa de trabalhar, de pensar no (seu) trabalho; daí que uma distribuição estratégica de telemóveis de última geração - em vez de maços de cigarros ou charutos - em alturas festivas pudesse ajudar!

Até houve quem tivesse a ideia, na igreja católica, de criar uma estranha organização, cujo nome é "Obra de Deus" e cujo lema é a "santificação pelo trabalho". Talvez seja por isso que muitos empresários são também da "Opus Dei". Valha-nos Deus, que até Esse fez uma pausa para descansar da sua "obra" ao sétimo dia!

Na verdade, o "trabalhador ideal" existe: é o inconsciente. Não há fins de semana, feriados, pausas para este trabalhador incansável. Alguém quer contratá-lo?

Os mimos do significante no real

É do senso comum que os mimos fazem bem. O filho, por exemplo, gosta dos miminhos da sua mãe. Até há aquela ideia de que a falta de mimos é prejudical ao pleno s são desenvolvimento da criança.

Até aqui, não há novidade. Porém, um estudo recente de uma equipa de investigação canadiana (Science et Vie, nº 1051, Abril de 2005, pp. 90-94) vem acrescentar novos dados ao problema.

Tradicionalmente, no desenvolvimento do indivíduo, a questão reside em saber qual a importância relativa entre dois factores em presença: o hereditário (genético) e o adquirido (ambiente, meio).

O que é novo neste estudo é que ele parece modificar os dados do problema. Com efeito, não se trata apenas de saber qual o factor (isoladamente considerado) tem mais peso na determinação das características, diferenças e comportamentos dos indivíduos, mas em demonstrar (ainda que de forma inconclusiva, pois o objecto de análise, até agora, incidiu apenas em ratos; uma fase seguinte, que toma por objecto indivíduos humanos, está já em andamento) que os mimos, as carícias a que é sujeita a cria por parte da mãe têm capacidade de modificar o próprio factor genético, predispondo o indivíduo para reagir melhor ou pior, por exemplo, ao stress (objecto da presente investigação). Uma nova disciplina, a "Epigenética", encarrega-se de estudar, não a própria sequência do ADN, que constitui o "alfabeto" de base dos genes, mas as subtis modificações químicas produzidas em torno desta famosa molécula graças ao impacto, por exemplo, do comportamento materno sobre os genes.

Sem ser (ainda) conclusivo, este estudo abre novas questões, ao mesmo tempo que fecha outras.

Um exemplo. O "ambiente" especificamente humano - a não ser que se admita, como parece ser a tentação nalguns meios científicos nos últimos tempos, que não há uma descontinuidade essencial entre o ser humano e as demais espécies - não é apenas o reino do "toque", mudo e silencioso, da mãe no seu bebé, mas também o reino em que esta lhe fala, mesmo quando isso não quer dizer nada, ao mesmo tempo que o mima e acaricia.

As carícias do significante no real biológico - eis um dado "epigenético" a não descurar!

Papa (i)móvel

Habituámo-nos a ver o papa andar de um lado para o outro naquele veículo à prova de bala que, se não estou em erro, se chamava ajustadamente "papa móbil". Este era um papa que andava de um lado para o outro, que se mexia.

Habituámo-nos a ouvir um chorrilho de críticas, provindas de um lado e de outro, à "imobilidade" deste papa relativamente a certas questões: o uso do preservativo, o celibato dos padres, etc.

Finalmente, um dia destes, o papa ficou imóvel e o seu papa-móvel, imóvel ficou.

Acompanhámos pela televisão, pela rádio, pelos jornais o relato da sua lenta agonia, por vezes caricata: será que está morto, será que ainda vive, será que será...?

Os jornalistas pareciam hesitar entre o chateado e o divertido: Este gajo nunca mais morre! Vá lá, decide-te! Aguns até avançaravam a (não) notícia da sua morte com o desejo de serem os primeiros!

Finalmente, soubemos, com certeza, que estava morto. A prova não foi a declaração oficial do Vaticano, nem uma qualquer certidão de óbito, não. A prova - sublinho - foi o consenso gerado à sua volta. Sabemos que alguém está verdadeiramente morto quando em torno dele se calam as vozes dissonantes e todos parecem estar de acordo, comungando de uma espécie de "sentimento oceânico" a que Freud (o velho Freud a que já ninguém liga) deu eco no seu "Mal-estar na Cultura".

Na sua "mitologia", o velho Freud também ilustrou esse instante mítico em que todos estão de acordo: logo depois de terem assassinado o pai primitivo e de terem ingerido, em refeição totémica, o que dele restava, em vez de gozarem das mulheres do pai agora disponíveis, erigiram a lei universal da sua proibição. Consenso gerado sobre o túmulo do pai.

Mas o espectáculo da morte deste papa não celebra tanto a "lei do pai" (apesar do seu nome ser muitas vezes invocado em vão), mas a "paixão do filho". É o martírio, a identificação com Cristo o que é dado a ver, hora após hora, dia após dia, pelos media.

Porém, a identificação termina aqui, pois o papa não morreu em plena juventude, como Cristo, vítima do ódio de alguns. O papa morreu de velho, porque estava velho e a máquina deixou de funcionar. Graças a Deus! Foi assim com ele, é assim com todos. Não há milagre nem transcendência nisto.

Daí que não se perceba por que se grita já, apressadamente, Santo! Queremos que seja Santo e já!

Sinal dos tempos!

11.3.05

Homem&mulher


Allen Jones, Homem Mulher, 1963

O último número da revista Visão (de 10 a 16 de Março de 2005) é dedicado, entre outras coisas, à re-visão da matéria dada sobre a velha guerra dos sexos: quem tem o cérebro maior, é mais inteligente ou dotado? Se estivéssemos a falar de telemóveis, a questão seria diferente: quem o tem mais pequeno?

Num tempo em que se pugna pela igualdade, não deixa de ser interessante colocar a tónica na diferença. Para o bem e para o mal, homens e mulheres são diferentes, é o que se pode concluir.

Além do mais, essa diferença parece ter uma base científica, neurológica: o que lhe dá um selo de garantia. É como o rótulo nos vinhos: denominação de origem controlada. O Zé povinho anda a dizer isto desde o princípio dos tempos, mas só agora foi possível uma certificação.

Se o tamanho conta, de alguma forma, também é verdade que o mais decisivo está no desempenho, daí que ter uns milímetros a mais disto ou daquilo não signifique grande coisa só por si. Lá diz o povo...

O mesmo se pode dizer da base neurológica: devemos contar com ela da mesma forma que devemos, igualmente, contar com as expectativas, a sugestão, o desejo e as exigências do Outro, ao qual nós estamos suspensos mesmo antes de virmos ao mundo.

Finalmente, dizer "homens" e "mulheres" não passa de uma generalização. Cada caso é um caso e, mais do que isso - parafraseando Nietzsche - o que são cada homem e cada mulher senão uma "dissonância feita criatura humana"?...

Mesmo se não parece haver dúvidas quanto à existência de um lado homem e de um lado mulher.

Má temática do amor


A. Blomberg, Exposição das Artes industriais no Parque Frisens, Stockholm, 1909

Recentemente, o título de capa de uma revista (Focus, nº 282 de 9 a 15 de Março) chamou-me a atenção: matemática do amor. Comprei a revista, pois o título prometia.

Lá dentro, no meio de um chorrilho de banalidades, faz-se alusão a uma professora de matemática inglesa, Clio Cresswell, que acredita, segundo a tese defendida no seu livro Matemática e Sexo que é possível traduzir o amor em fórmulas contas e equações. Se alguém pretendesse argumentar que isto é coisa de mulheres, repare-se na grande bojarda de Sergio Rinaldi, um outro matemático, homem: quanto mais atraente uma pessoa for, maior é a possibilidade de ser amado. Eva Mendes, a nova bomba sexy de Hollywood, não teria dito melhor. É caso para dizer: ser matemático não livra ninguém da imbecilidade.

A ciência moderna nasceu de uma des-sexualização mundo: em vez de procurar casar a forma e a matéria (Aristóteles) ou o micro e o macrocosmos, Galileu propôs que a natureza não era um sistema de correspondências ou afinidades sexuais, mas antes um livro escrito em caracteres matemáticos. Daí em diante, Eros & companhia ficaram por conta do génio poético, enquanto, do outro lado, crescia o rigor frio, por vezes gélido, da ciência.

O que é novo nesta história é a tentativa (a crença?) de que é possível casar ciência e poesia, matemática e amor. Não deixa de ser aliciante uma tal hipótese: chegar a escrever o "matema" do amor, sem, ao mesmo tempo, lhe destruir a poesia (o mitema).

Por mais aliciante que seja uma tal hipótese, ela é, no fundo, apenas um sinal dos tempos que correm e do paradigma que o domina: nenhum recanto da vida pode escapar ao império da ciência, nem mesmo o amor.

Com isso, porém, a ciência tende inevitavelmente a ultrapassar os seus limites e a escorregar facilmente para o "cientismo" (que já não é a ciência, mas filosofia: má filosofia), caindo no domínio da ilusão e da impostura.

Mas, ao mesmo tempo, ela revela - porque não! - um desejo secreto, inconfessado que porventura (ainda) a habita: conseguir escrever a fórmula (o matema) da proporção sexual: a tal que Lacan dizia não cessar de não se escrever.

3.3.05

Depressão


Bas Jan Ader, Estou Demasiado Triste para To Dizer, 1970

Segundo o último relatório da ONU, Portugal é o país da Europa onde é mais elevada a taxa de crescimento e consumo de fármacos anti-depressivos e afins, apenas superado pela Irlanda. Nalguma coisa tínhamos de ser dos primeiros!

De forma oportuna, como é seu hábito, a TSF apressou-se a dar a palavra aos ouvintes, médicos e alguns psis, para, de viva voz e em nome próprio, cada um dizer o que pensa do assunto. Se não tivesse outro mérito, o Fórum da TSF valeria por isto: enquanto se fala, não se consome!

Muitas foram as razões indicadas para explicar o fenómeno: a situação económica do país e o seu reflexo na vida das pessoas, com a consequente falta de auto-estima; a receita "ilegal" de medicamentos; a pressão social que obriga, segundo uma espécie de imperativo de gozo (como diria Lacan, se tivesse participado no Fórum) as pessoas a ser felizes a todo o preço, custe o que custar, e a estar alegres o tempo inteiro, como se o direito a estar triste tivesse sido pura e simplesmente banido do simbólico; enfim, a precipitação dos próprios médicos que, sem tempo para escutar o sintoma, se apressam a mandar calar o doente: tome lá e cale-se!

Gostava de contribuir para este debate, recolocando as coisas sob a forma de uma altenativa: o logos ou o pharmacon, a fala ou o fármaco? Ou então: não será a fala, em certos casos, o melhor dos fármacos?

Talvez não seja desprezível, nesta história, o facto de que em Portugal (contrariamente ao que se passa em muitos outros países) Freud e os seus seguidores "psi" - sobretudo os que realçaram os poderes da palavra na abordagem e tratamento do sintoma - sejam tão raros e marginalizados.

O paradoxo (como assinala António Damásio, algures, no Erro de Descartes) é que a medicina evoluiu extraordinariamente do ponto de vista científico e tecnológico nos últimos anos, mas estagnou, se não até regrediu, do ponto de vista "humano", isto é, quando se trata não apenas de receitar um fármaco, mas de escutar o sujeito na singularidade do seu sintoma. Como se alguém dissesse, quando o sujeito vai abrir a boca para falar, explicando as suas razões "subjectivas", singulares: cale a boca! Ou então: coma e cale!

Com isso, em vez de abrir a garrafa, lançada ao mar algures, e ler a mensagem endereçada que esta contém, enterra-se ainda mais a rolha e relança-se ao mar.