15.4.05

Papa (i)móvel

Habituámo-nos a ver o papa andar de um lado para o outro naquele veículo à prova de bala que, se não estou em erro, se chamava ajustadamente "papa móbil". Este era um papa que andava de um lado para o outro, que se mexia.

Habituámo-nos a ouvir um chorrilho de críticas, provindas de um lado e de outro, à "imobilidade" deste papa relativamente a certas questões: o uso do preservativo, o celibato dos padres, etc.

Finalmente, um dia destes, o papa ficou imóvel e o seu papa-móvel, imóvel ficou.

Acompanhámos pela televisão, pela rádio, pelos jornais o relato da sua lenta agonia, por vezes caricata: será que está morto, será que ainda vive, será que será...?

Os jornalistas pareciam hesitar entre o chateado e o divertido: Este gajo nunca mais morre! Vá lá, decide-te! Aguns até avançaravam a (não) notícia da sua morte com o desejo de serem os primeiros!

Finalmente, soubemos, com certeza, que estava morto. A prova não foi a declaração oficial do Vaticano, nem uma qualquer certidão de óbito, não. A prova - sublinho - foi o consenso gerado à sua volta. Sabemos que alguém está verdadeiramente morto quando em torno dele se calam as vozes dissonantes e todos parecem estar de acordo, comungando de uma espécie de "sentimento oceânico" a que Freud (o velho Freud a que já ninguém liga) deu eco no seu "Mal-estar na Cultura".

Na sua "mitologia", o velho Freud também ilustrou esse instante mítico em que todos estão de acordo: logo depois de terem assassinado o pai primitivo e de terem ingerido, em refeição totémica, o que dele restava, em vez de gozarem das mulheres do pai agora disponíveis, erigiram a lei universal da sua proibição. Consenso gerado sobre o túmulo do pai.

Mas o espectáculo da morte deste papa não celebra tanto a "lei do pai" (apesar do seu nome ser muitas vezes invocado em vão), mas a "paixão do filho". É o martírio, a identificação com Cristo o que é dado a ver, hora após hora, dia após dia, pelos media.

Porém, a identificação termina aqui, pois o papa não morreu em plena juventude, como Cristo, vítima do ódio de alguns. O papa morreu de velho, porque estava velho e a máquina deixou de funcionar. Graças a Deus! Foi assim com ele, é assim com todos. Não há milagre nem transcendência nisto.

Daí que não se perceba por que se grita já, apressadamente, Santo! Queremos que seja Santo e já!

Sinal dos tempos!

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