24.1.12

Ler para crer

Gonçalo M Tavares é um dos mais profícuos escritores portugueses da atualidade. A par de uma obra já vasta, mesmo se o escritor é ainda bastante jovem, ele vem percorrendo veredas - parafraseando Guimarães Rosa - que primam por um olhar absolutamente inédito e singular. Cada um dos seus livros (uns mais que outros, naturalmente) faz-nos reparar (isto é, parar demoradamente) na "ordem" e "desordem" característicos do mundo contemporâneo e, nomeadamente, do século XXI. O que é isto de estar a viver num mundo e num tempo de onde os deuses se retiraram e os homens e as mulheres procuram em vão fazer-se ouvir por entre o ruído acelerado e barulhento da máquina? Que coisa é esta de estar a viver num tempo onde a alma cedeu o lugar à "tabuada"? Será possível re-aprender a rezar na era da técnica?

Tenho acompanhado o trajeto deste escritor sempre com um grande interesse e entusiasmo. Talvez devido à minha formação filosófica, gosto de pensar que a escrita, ao mesmo tempo que é uma máquina de bem escrever, também poderia ser concebida como uma máquina de bem pensar. Os livros de Gonçalo M Tavares são, a meu ver, ambas as coisas: ele pensa bem enquanto bem escreve.Não que o pensamento seja uma espécie de caminho prévio que oriente a escrita (Gonçalo M Tavares é alguém que diz escrever instintivamente, sem pensar), mas antes que a escrita, no seu caminhar, vai desbravando um caminho possível ao pensamento. Há muitos outros escritores portugueses atuais que escrevem igualmente bem, mas nenhum me parece ter assumido, tão à letra e de forma tão lúcida e consistente, a nova (des)ordem em que vivemos e que urge aprender a ler . A maior parte dos escritores, de um modo ou de outros, continua a navegar por mares já dantes navegados, parafraseando Camões; daí que nem todos os leitores queiram embarcar neste barco que parece tão pouco seguro e, por vezes, tão difícil de situar. Afinal, onde estamos nós, hoje?

Se a escrita de Gonçalo M Tavares nos faz reparar (palavra- onde se atam diversos sentidos) é porque ela é concebida ao mesmo tempo como máquina de lentidão (que procura desacelerar o tempo acelerado do mundo), como olhar (que revela o que tende a ficar invisível sob a luz dos holofotes que iluminam o presente) e como conserto (como arranjo possível, contingente, a inventar...).

Por detrás de tudo isto há a escrita, a letra. O escritor é, antes de mais - é preciso não esquecer - alguém que escreve, que junta letra a letra, como o construtor junta tijolo a tijolo, para construir palavras. Juntando palavra a palavra, ela faz um texto, como o construtor levanta um muro, uma parede. Encadeando textos entre si, ele faz um livro, como o construtor faz uma casa. As ligações dos livros (ou de certos livros) entre si dão progressivamente origem a uma obra, como o construtor vai construindo um bairro, uma cidade, o mundo.  E a certa altura, aquele que lê, que é suposto ler, já não lê (palavras, frases..), mas vê. A escrita torna-se invisível, melhor, transparente, e o leitor vê apenas a casa, o bairro, o quotidiano de um mundo que ficou demasiado absurdo para acreditar. Como se o escritor fosse um ilusionista que faz acreditar ao leitor que não está apenas a ler histórias, mais ou menos curtas, mas a ver pequenos filmes (Short Movies).

"Não penses, Vê!", diz o escritor. Mas não é este precisamente o perigo, o imperativo que hoje, na era do olho absoluto (Wajcman) nos comenda a todos: Não penses, vê!? A ilusão, a miragem que nos faz esquecer, como o escritor sabe tão bem, que por detrás do fascínio das imagens, é a escrita, cada vez mais impessoal, automatizada, da máquina que vai traçando o nosso destino? Uma escrita acelerada que nenhuma máquina de lentidão parece já conseguir travar...

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