13.2.06

Aqui há gato


Agostinho da Silva faria hoje 100 anos. Volta a falar-se dele um pouco por toda a parte: nos jornais, na rádio, na televisão.

Foi em finais dos anos oitenta que o conheci. Eu era estudante de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa e ele uma celebridade. Num anfiteatro a abarrotar de alunos e professores, lembro-me que lhe fiz, timidamente, uma pergunta sobre...gatos. Que mais haveria de ser? Eu desconhecia tudo acerca do seu "pensamento" e, como ele, também gostava de gatos.

Nos anos oitenta, ele estava na moda. Estar na moda não significa que houvesse "consenso" em torno do seu discurso, da sua pose ou do seu pensamento. Pensando bem, a minha pergunta sobre "gatos" (mais concretamente, qual a relação dos gatos com a filosofia?) tinha um não sei quê de "cínico" e provocador. O mais curioso é que Agostinho da Silva, em vez de a rejeitar como impertinente, lá foi desfiando uma série de paradoxos, como era seu estilo, em torno da questão que eu lhe colocara. Afinal quem era aquele homem que levara a sério - mas sempre a brincar - uma pergunta colocada em jeito de graça?

Quem é este homem perante o qual voltam a ajoelhar-se uma série de personalidades, seduzidas por um certo "efeito de fascinação" que ele produz(iu)?

Talvez a sedução derive do facto de que ele era um pensador difícil de situar, atópico, paradoxal, "nómada" - como alguns lhe chamaram - criador ou envolto numa certa "aura" (Olga Pombo, hoje, na TSF). José Gil talvez lhe chamasse "nevoeiro": o nevoeiro que tem envolvido, ao longo de séculos, um certo pensamento e um sem número de poetas, pensadores e gente mais ou menos comum: Bandarra, Vieira, Pessoa, Agostinho, Oliveira (veja-se o filme sobre o "quinto império", todo envolto em nevoeiro)...

O "nevoeiro" faz-nos recuar, por temor ou respeito. Produz em nós um fascínio semelhante ao da cobra sobre a presa que vai ser devorada.

Estive a ler recentemente um texto de Agostinho da Silva intitulado "Ecúmena" (in Dispersos. Lisboa: Instituto da Língua e da Cultura Portuguesa, 1988). É um texto não muito longo, mas nele aparecem todas as virtudes e todos os vícios do seu "pensamento". "Ecúmena" é, talvez, a palavra que diz melhor acerca do desejo que o habitava: "o desejo supremo de fusão no uno" (op. cit., p. 227).

Afinal, sob a aparente multiplicidade e diferença, paradoxo e nomadismo de conceitos e termos, há um: desejo de fusão, de elimação dos contrários, de superação das antinomias, de redução da diferença ao mesmo. O "espírito Santo" (ligando pai e filho), o "quinto império" (ligando Portugal ao mundo, a passado ao futuro) são outros tantos nomes para esse desejo de anular a diferença com vista ao estabelecimento de uma "verdade total" (p. 240). Esta verdade total não é mais do que a explanação progressiva, segundo uma história sem história, do que cada povo é, mesmo antes de o ser, segundo uma ideia recorrentemente afirmada.

A atracção do um (mítico) deve-se ao facto de que ele é suposto esbater todos os entraves a um gozo que se imagina pleno, o gozo de que estamos estruturalmente separados pelo facto de sermos animais falados e falantes.

Talvez isto ajude a perceber a razão por que Agostinho da Silva gostava tanto de gatos (imagem da harmonia sonhada) e fazia a apologia de um ensino cuja missão era, in extremis, deixar ser (as crianças, os alunos...), deixar gozar, em vez de "ensinar", de-formar, en-formar. Rousseau não anda muito longe.

Dizia Agostinho da Silva na Última Conversa (Entrevista de Luís Machado, Casa das Letras, 1991): "Creio que, para aturar a vida presente, não é de paciência que precisamos; o que é preciso é acreditarmos no futuro com entusiasmo" (p. 89).

Mas não tem sido esta impaciência e incapacidade dos portugueses em relação à transformação do presente que nos tem secularmente atraído para um passado mítico (que nunca existiu efectivamente) e para um futuro místico (que nunca chega a existir)?

Apesar de tudo, há excepções - vou referir apenas duas - que nos dizem que é possível uma outra via.

Um povo que fez, do sintoma, música e canção: o fado.

Um escritor que fez, do sintoma, obra: Saramago.

O próprio Agostinho da Silva não está todo nessa cosmo-teologia. Valha-nos isso.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Afinal, sob a aparente multiplicidade e diferença, paradoxo e nomadismo de conceitos e termos, há um: desejo de fusão, de elimação dos contrários, de superação das antinomias, de redução da diferença ao mesmo.(...) esse desejo de anular a diferença com vista ao estabelecimento de uma "verdade total" (p. 240."
Este bocadinho do teu texto fez-me pensar num texto de Jean Pierre Caillot e que passo a citar: "Nous faisons l'hypothèse que les manoeuvres perverses sont des agirs dont la visée est de créer une indifférenciation ou un renversement génerationnels, de provoquer une indistinction entre les êtres et les sexes au service de la formation d'un fantasme de corps commun paradoxal.
L'indifférenciation idéalisée serait source d'une satisfaction triomphante d'un fantasme de corps commun paradoxal." (Rev. française Psychanalyse. 3/2003)
Nem ouso fazer o paralelo...