23.11.10

Da ciência dos sonhos ao sonho da ciência

O cientista sonha? Sabemos que o filósofo sonha; por vezes, tem sonhos bem curiosos (veja-se o caso dos famosos "sonhos de Descartes").

E o cientista? Quando alguém como Stephen Hawking, por exemplo, diz que estamos à beira de explicar tudo (coisa que já disse, desdisse e voltou a dizer em momentos diferentes), trata-se ainda de ciência ou já entrámos no domínio do sonho, mais do que isso, da megalomania?

A prova de que um cientista também sonha, se houvesse por acaso dúvidas, é dada no último livro do conhecido e prestigiado neurobiólogo António Damásio. A páginas tantas, ao fazer uma pequena incursão pelo "inconsciente freudiano", ele conta um sonho que costuma ter frequentemente e a que chama "pesadelo ligeiro".

Para a psicanálise, o que conta num sonho não é tanto o emaranhado de imagens de que é tecido e o respectivo suporte neuronal, mas o "relato" do mesmo feito pelo sonhador. Qual, então, o relato que é feito por Damásio do "pesadelo breve" que o atormenta de forma recorrente?

"As variações giravam sempre em torno do mesmo tema: estou atrasado, tremendamente atrasado e falta-me qualquer coisa essencial. Os meus sapatos podem ter desaparecido; ou a barba não está apresentável e não consigo encontrar a máquina de barbear; ou o aeroporto está fechado devido ao nevoeiro e eu fiquei em terra. Sinto-me torturado, e por vezes embaraçado, como quando (no meu sonho, claro) entrei mesmo em palco descalço (mas num fato Armani). É por isso que até hoje nunca deixo os sapatos à porta de um quarto de hotel para serem limpos." (O Livro da Consciência, Círculo de Leitores, 2010, p. 225).

Entrar no palco (no palco?) descalço, mas num fato Armani,  tendo a sensação (ou o sentimento?) de que nos falta algo, é um fenómeno perfeitamente explicável do ponto de vista neuronal, ou não será? De qualquer modo, todo o cuidado é pouco com o lugar onde se deixam os sapatos, não vá o diabo tecê-las, como se diz por aqui (também isto será obra dos neurónios...ou do diabo da linguagem, que Damásio remete para segundo plano no grande esquema das coisas?)

Mais recentemente, numa entrevista concedida a Carlos Vaz Marques (Revista Ler, Novembro 2010, pp. 30-34), Damásio não conta um sonho, mas responde assim a uma pergunta formulada pelo entrevistador:

Vê mesmo que num futuro que ainda não sejamos capazes de prever haja possibilidade de virmos a resolver o mistério último? "É difícil dizer. Por vezes dá a impressão que sim, outras que não. Claro que a resposta mais lógica seria: "provavelmente não". Mas ao mesmo tempo podemos dizer: "porque não?" (p. 34)

Enquanto a ciência não avança tão depressa como o cientista (vestido com um fato Armani, e sentindo que está atrasado e que lhe falta algo de essencial) gostaria, resta-lhe ir sonhando o sonho de "compreender tudo" (p. 34).

E "porque não", se é pelo sonho que vamos - como diria o poeta?

Ainda assim, há, hoje, sonhos que parecem, no mínimo, "pesadelos ligeiros", ainda que provenham de uma área tão respeitável como a ciência.

4 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito de ler a crítica, se tivesse a suspeita que também ia gostar tanto do livro, comprava já.

JB

Igor Lobão disse...

Muito bom o enquadramento que o Filipe fez do sonho de Damásio.

Também ele, tal como Descartes, anda à procura de um 'fundamento', que desta vez já é não metafísico, mas neuronal.


É caso para dizer que, na relação com os sonhos, não é só Damásio que anda descalço com um fato Armani (ou em tensão com algum outro qualquer tipo de 'falta'), mas com ele toda uma determinada ideologia genetico-mecanicista do ser humano.

Irá o rei não somente descalço mas completamente nu?

Igor

Filipe Pereirinha disse...

Na era supostamente "pós-ideológica", há "ideologias" que provêm, de facto, de onde menos se espera. "A teoria de tudo" (quer seja a explicação "física", "genética", "neural" ou outra qualquer) não passa, no fundo, de uma ideologia de pé descalço, ainda que vestida com um fato Armani (um grande aparato teórico, matemático, empírico...).
Os cientistas deixaram, e bem, de ter a velha filosofia (repleta de "erros") em consideração); mas há muita "filosofia" (não assumida) na ciência mais avançada. Como dizia Lacan, num outro contexto, "aquilo que é abolido do simbólico retorna no real". O real da ciência? "E porque não"?

Jorge Rocha disse...

Referindo-me ao comentário do Igor, julgo que não devemos ter reservas de princípio acerca da investigação genético-mecanicista. Simplesmente deve a filosofia ficar atenta aos desvios, sinalizando aquilo que é inconsciente teorização filosófica e que se apresenta insuficientemente fundamentada e embrulhada em informações e teorias de ciência genético-mecanicista. Guiemo-nos pela máxima bíblica «a César o que é de César...» e será a nossa civilização que muito sairá a ganhar.