19.1.10

Uma causa perdida?

É uma "guerra" que tem quase um século. Em 1926, Freud escreveu um artigo intitulado: "A questão da análise leiga". Leigo significava, neste contexto, "não médico".

O artigo de Freud tinha como causa imediata a acusação de charlatanismo dirigida pelas autoridades vienenses a Theodor Reik pelo facto de este exercer a psicanálise não sendo médico. Freud propõe-se mostrar, neste artigo, que o facto de ser médico não garante, só por si, uma especial capacidade para lidar com a causa analítica, carecendo esta de uma "formação" peculiar. É nesse sentido que podemos afirmar que o desejo de Freud se revela como sendo fundamentalmente laico.

Esta via da "laicidade" da psicanálise foi prosseguida, mais tarde, por Lacan, ao não discriminar entre as diversas proveniências dos membros da sua Escola (sendo indiferente, à partida, se estes eram médicos, psicólogos ou outra coisa qualquer), ao mesmo tempo que exigia um rigor apurado e um desejo decidido por parte de cada um deles. Lacan chegou mesmo a dizer, a certa altura, que o psicanalista só se autoriza por si mesmo, ou seja, que não importa a formação que ele traz de base, mas o desejo que desponta no processo de uma análise, a qual, sendo levada até ao fim, se pode revelar didáctica.

Em 2003, quando a psicanálise, juntamente com as psicoterapias de inspiração psicanalítica, sofreram a primeira onda de choque de um "sismo" que teve o seu epicentro numa simples emenda legislativa (a "Emenda Accoyer), sendo mais tarde seguida por diversas réplicas (Relatório INSERM, Livro Negro da Psicanálise...), houve quem se lembrasse do artigo de Freud. Há acontecimentos que nos avivam a memória. No maremoto de reacções diversas e efusivas que se seguiu aos referidos acontecimentos, nasceu a Associação para a Laicidade da Psicanálise; associação esta que seria entretanto dissolvida.

Qual é, em 2010, a situação?

Numa carta recente (Jounal des Jounées), o psicanalista Yves Depelsenaire manifestava surpresa por ver que a Escola parecia integrar cada vez mais o princípio de que, de ora em diante, só os médicos ou psicólogos poderiam aspirar a fazer parte dela.

Depois de tudo, não deixa de ser irónico! Não digo cínico, uma vez que o cinismo antigo apostava no “caminho mais curto”; pelo contrário, neste caso, é após um longo caminho que se chega a isto: ao princípio do terceiro excluído, isto é, dos que não são médicos nem psicólogos.

Há dentro da Escola muitos que ainda se encontram numa tal situação (como é o caso de Yves Depelsenaire e do próprio Jacques-Alain Miller, salvo erro), mas eles serão cada vez mais raros. Uma espécie - como dizia Philippe Hellebois numa outra carta - em vias de extinção: os "nem...nem". Nem médicos, nem psicólogos.

Em resposta à carta de Yves Depelsenaire, Jacques-Alain Miller insistia, a certa altura, que não se trata sobretudo de saber o que a Escola pode fazer por nós (segundo o excessivo desejo de reconhecimento que mobiliza alguns dos que a demandam), mas o que cada um de nós pode fazer pela Causa.

Não deixa de ser um modo bastante pertinente de ver a questão. Todavia, que causa é esta quando ela parece excluir o que a extimiza, descentra, singulariza, laiciza, isto é, o que faz objecção ao todo, à unanimidade e ao “unanimismo”? O que a “des-ordena” radicalmente porque não resulta da “Ordem” (qualquer que ela seja, mesmo que seja a palavra-de-ordem), mas de um encontro, singular e contingente, com a causa incurável de cada um.

Estaremos, finalmente, a assistir ao depor as armas? É esta uma guerra perdida? Uma “denegação” em acto, ou seja, o reconhecimento de que afinal as “autoridades” (que acusavam Th. Reik de charlatanismo ou os psicanalistas de “impostores”) ganharam a guerra, ainda que se diga e repita que “não” em diversos fóruns?

A ver vamos! O debate continua. Yves Depelsenaire, na resposta que deu a Jacques-Alain Miller, dizia que é preciso defender com convicção o princípio da psicanálise leiga (psychananalyse profane).

Esta tem sido também a minha convicção desde que há quase vinte anos fui atraído pela causa psicanalítica, mesmo não sendo médico nem psicólogo.

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