10.9.09

Inventar conceitos

Segundo Deleuze, a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos (O que é a Filosofia?, p. 10).

Haverá um conceito que permita pensar Portugal e os portugueses sem cair no mero senso comum, na simples anedota (mesmo se espírito não nos falta para anedotar sobre nós próprios) ou numa qualquer "psicanálise mítica do destino portugês" (E. Lourenço)?

Para José Gil, deleuziano convicto, a resposta é o conceito que ele mesmo propôs no livro Portugal, hoje - O medo de existir (Relógio D'Água, 2004): " a não- inscrição". Segundo a tese avançada nesse livro, Portugal seria o país da não-inscrição. Um país onde nada "acontece" realmente, mesmo se sucede muita coisa, se há um falatório geral, constante e mediático sobre tudo e sobre nada. Todo o acontecimento é, por assim dizer, esvaziado de substância, de conteúdo, restando dele a mera forma vazia e sem consequências.

Poderíamos pensar este conceito de "não-inscrição", em termos psicanalíticos, como uma espécie de "branco" (ou de branca) inconsciente que irradia, por contágio, a tudo o que se diz ou se faz, retirando-lhe toda e qualquer carga ou eficácia reais. A razão nuclear desta brancura, da não-inscrição e "desnorte" que a mesma implica (Cf. Em busca da identidade - o desnorte, Relógio D'Água, 2009) deve-se , segundo José Gil, ao facto de os portugueses não terem feito o luto do salazarismo (ideia repetida no último nº da revista Ler, p. 24-27). Mais do que uma não-inscrição desse luto a nível simbólico, tratar-se-ia de uma verdadeira "forclusão" do (seu) real, de tal modo que não cessamos de ritualizar, de celebrar (simbolicamente) o enterro do salazarismo - como acontece todos os anos por altura do 25 de Abril -, mas tais rituais ou celebrações não passam hoje de meras caricaturas formais sem o mínimo alcance real.

Esta fractura, esquize ou divórcio cada vez maiores entre a forma e o conteúdo está bem patente num exemplo dado por José Gil no seu último livro Em Busca da Identidade - O desnorte; um exemplo, aliás, bem conhecido de todos os portugueses. Quando mais de 100 000 professores, por duas vezes consecutivas, se manifestaram nas ruas de Lisboa contra o modelo de avaliação que o governo pretendia impôr-lhes, este respondeu com silêncio e inacção, justificando-os com esta frase: "Estamos em democracia, toda a gente tem o direito de se manifestar. Que se manifestem à vontade. Mas temos também o direito de continuar a fazer o que fazemos."

José Gil explica esta frase e a atitude que lhe subjaz da seguinte forma: "Deixando intactos os meios de contestação mas fazendo desaparecer o seu alvo, desinscreve-os do real. É uma técnica de não-inscrição. Ao separar os meios do alvo, faz-se do protesto uma brincadeira de crianças, uma não-acção, uma acção não performativa. Esta reduz-se a um puro discurso contestatário, esvaziado do conteúdo real a que reenviava. (...) Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz a "desactivação da acção". É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica política, à maneira de certos processos priscóticos." (p. 55-56).

O próprio modelo de avaliação que este governo quis impor aos professores (e não só) é um exemplo bastante eloquente da não-inscrição como técnica, estratégia ou retórica política: tenta cobrir-se com um manto de papéis, de burocracia, de infindáveis normas e procedimentos formais (que nem a Kafka lembrariam) o grande vazio de ideias que alimenta esta máquina infernal.

Só que a avaliação não é um caso meramente português (como tem mostrado sobejamente Jacques-Alain Miller, desde 2004). Com ela, outras "linhas de fuga" nos percorrem (a Europa, a Globalização), algo que vem de "fora" e que é cada vez mais difícil ou impossível de reduzir a um "dentro" (a uma qualquer "identidade" só nossa), um vórtice impulsionado pelos discursos da ciência e do capitalismo que tudo arrastam, no seu imparável movimento, até à mais impessoal e completa "desterritorialização".

Pensar Portugal e os portugueses não será ainda, neste contexto, uma tentativa desesperada, narcísisca, de suster a respiração, por assim dizer, antes da queda na vertigem da Alteridade que aí vem, que já mora em nós? Não continuamos desta forma a querer ser portugueses antes de sermos homens?

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