16.3.09

Tratamentos do real

Freud era fascinado por arte clássica, sobretudo pintura e literatura, mas parecia indiferente à coisa musical. Já Theodor Reik, um dos seus venerandos discípulos, era um perfeito melómano, apaixonado em particular pela música de Gustave Mahler, em torno da qual escreveu algumas "variações psicanalíticas".

Quer seja a pintura, a literatura ou a música, a arte em geral interessa, tem interessado e não pode deixar de interessar a psicanálise. Não porque esta vá no encalço de uma espécie de "psicologia" do autor ou da obra (como tantas vezes se pensou e muitas se praticou), mas porque o artista (o seu saber-fazer) tem algo a mostrar à psicanálise. De alguma forma - é a tese de Lacan - ele precede o psicanalista, trazendo à tona formas inéditas de tratamento do real.

Eis o que exploram dois livros recentes: "Le savoir de l'artiste et la psychanalyse" (Hervé Castanet) e "Glenn Gould, ou l'invention nécessaire" (Vários). Não se trata, em qualquer caso, de "psicologizar" a obra, de dar-lhe um "sentido", mas de pôr em evidência modos inéditos, inventivos, de "tratar o real", para aquém ou para além do sentido.

Quanto à emoção, por exemplo, de escutar Glenn Gould, ela mantém-se intacta. Talvez até um pouco mais viva. Lembro-me ainda, como se fosse hoje, da primeira vez que o vi, na televisão, tocando as "Variações Goldberg", de Bach: aquele jeito desajeitado de sentar-se ao piano e trautear as notas, à medida que ia tocando, ficarão para sempre gravadas na minha alma, essa mesma que Musil dizia retirar-se perante as fórmulas algébricas.

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