10.9.07

O que fazer com o nariz


Há um livro fantástico de Luigi Pirandello, Um, Ninguém, Cem Mil, cuja personagem principal, Vitangelo Moscarda, acaba progressivamente por enlouquecer com base num pormenor aparentemente insignificante: graças a um reparo da sua mulher, descobre, espantado, que o seu nariz tem uma ligeira inclinação para a direita.

Esta simples constatação torna-se num espécie de bola de neve que vai arrastando, à medida que rebola, todo o tipo de certezas subjectivas e desencadeando um autêntica revolução interior no protagonista. Toda a percepção de si mesmo e dos outros fica irremediavelmente abalada.

Claro que isto é um romance (mesmo se a vida está lá toda) e a moral da história é que a criação implica uma certa forma de "loucura" ou histerização do sujeito, no sentido em que as certezas e os baluartes que o protegem quotidianamente são de alguma forma abalados.

Dei por mim a pensar neste livro de Pirandello (tal é a lógica da associação de ideias) quando lia um artigo na última edição da revista Sábado sobre "as loucuras no mundo das plásticas" (cf. nº 175 - 6 a 12 de Setembro de 2007). Pensei: hoje, em vez de meditar ou filosofar sobre o ligeira inclinação do nariz para a direita, Vitangelo Moscarda teria simplesmente pedido uma plástica para corrigir a imperfeição.

Aliás, a ideia habitual que nós temos da cirurgia plástica é simplesmente essa: corrigir as imperfeições. Mesmo se, no limite, um tal desejo se revele impossível de satisfazer, como mostra o caso de alguém que já fez 16 cirurgias e pretende continuar (p. 42-43). Mesmo assim, isso ainda parece normal: trata-se de corrigir, por meio da arte, certas imperfeições da natureza. Ou perfazer o trabalho que a natureza começou. Num certo sentido, como diria Aristóteles, trata-se ainda, de alguma forma, de imitar a perfeição que a natureza poderia ter produzido se levasse a bom porto o seu trabalho.

Mas o que dizer de alguém que pede, não um aperfeiçoamento ou uma correcção desta ou daquela parte do corpo, mas antes um "desvio lateral do nariz" (p. 43), o mesmo que custara a sanidade mental à personagem de Pirandello?

Um e outro caso demonstram, embora por caminhos diametralmente opostos, que o corpo do sujeito que fala e que é falado (para o qual Lacan inventou o termo de parlêtre) é irremediavelmente um corpo pervertido, desnaturado, incómodo.

2 comentários:

Fernando Borges de Moraes disse...

Lacan afirma que no sintoma neurótico jaz uma fala amordaçada. Que dizer da obsessão pela estética vigente na pós-modernidade? O gozo de um narcisismo exacerbado que encontra refoço positivo em toda indústria de cosméticos e cirurgia plástica estética (de resto, um comércio tb) remete, talvez, a uma certa morbidez. Lembro de "Blade Runner", do Ridley Scott, em que os replicantes atingem tal nível de perfeição, desenvolvendo uma aversão a "programação" original, a ponto de se tornarem imperfeitos e, pois, humanos...
Ou poderíamos pensar tais sintomas como a tentativa (perversa?) de fazer no Real o que não se dá conta de simbolizar, como se o mal-estar da civilização fosse aplacável por outra via que não a simbólica(?)

Filipe Pereirinha disse...

Para o bem ou para o mal, o corpo humano "desnaturou-se". O homem não "é" um corpo; "tem" um corpo. E a pergunta que se coloca é: então o que faço com isto? Isto que é sempre a "mais" ou a "menos"...
Tradicionalmente, na impossibilidade de refazer o corpo, restava ao homem "simbolizar", isto é, traduzir por palavras essa falta ou excesso. Hoje, pelo contrário, intervém-se no próprio "real" para modificar a "imagem", sempre inadequada, que se tem de si mesmo.O défice "simbólico" inflacionou o "real".
O problema é que, na maior parte dos casos (há excepções, com certeza) o "mal-estar", no sujeito e na civilização, não diminuíram, antes se tornaram mais insuportáveis. gant