15.12.11

O fim dos tempos

Estaremos a viver o fim do capitalismo tal como o conhecemos?

Para o conhecido e polémico filósofo esloveno Slavoj Zizek, o capitalismo global está a chegar à sua agonia final. Segundo ele, são quatro os cavaleiros do apocalipse: a crise ecológica mundial, os desequilíbrios do sistema económico, a revolução biogenética e e as divisões sociais explosivas.

Tudo isto é desenvolvido pelo autor no livro:  "Viver no Fim dos Tempos" (traduzido pela Relógio de Água).


 A ver vamos...

A ler!

12.12.11

Não temos Papa

O último filme de Nanni Moretti, Habemus Papam, embora com altos e baixos, é um filme que toca, a brincar, em questões muito sérias. No momento em que o Cardeal escolhido para ser o novo papa (Michel Piccoli) se dirige à Varanda da Praça de São Pedro para saudar a multidão de fiéis que o aguarda, sofre um ataque de pânico, dá um grito estridente e desata a correr para o interior, deixando toda a gente perplexa.

Quem poderá ajudar o papa a assumir a função para que foi eleito quando este se deixa ir literalmente abaixo?

Supõe-se que o "melhor" para tratar do assunto seja um psicanalista (Nanni Moretti). Na verdade, esta suposição é ambígua, não só porque não lhe é permitido abordar nenhum dos temas (tabu) que definem tradicionalmente a psicanálise, como lhe é reservado um lugar de mero entertainer dos cardeais (organizando jogos de voleibol entre eles) enquanto os conselheiros mais chegados do papa, incapazes de o convencer a ocupar o cargo para que fora eleito, decidem consultar uma outra psicanalista (a mulher do "melhor", a segunda melhor) que acaba por tentar convencê-lo de que ele sofre de um "défice parental".


Perante esta segunda psicanalista, o (novo) papa - provando  dizer a verdade, mesmo quando mente -  apresenta-se como ator. Pessoalmente, creio que é a metáfora teatral que permite "ler" melhor este filme de Moretti: é o fio condutor que liga, a partir daí, os acontecimentos. Percebemos, pelas suas próprias palavras, que aquele que agora vacila perante o cargo para o qual foi eleito, é o mesmo que outrora tinha sido preterido como actor. Mas por que vacila ele: será em nome do "velho teatro" (no qual não conseguiu entrar) ou do novo (para o qual é escolhido como ator principal)? Ou porque sabe, lá no fundo, que, embora sendo da ordem teatral, a velha função papal (o mesmo é dizer paterna) tinha implicações para além do teatro, em particular para todo o mundo católico?

O que devemos ler, em resumo, naquilo que o filme nos dá a ver: que no fim de contas ninguém está à altura da "função" simbólica para que é nomeado (sendo esta essencialmente "vazia", como mostra a cena final do filme) ou que, mais do que isso, a própria "função" se tornou em si mesma problemática na nova ordem simbólica em que vivemos hoje?

2.12.11

A pele onde eu vivo

 Quando, na cena final, uma bela mulher diz para a mãe: "Eu sou Vicente!", há muitos espetadores que riem. Este riso é uma espécie de defesa, um último degrau no limiar do indizível, do inominável.

"Eu sou..." coloca-nos no coração da pergunta e, ao mesmo tempo, da resposta que nos dá o último filme de Pedro Almodóvar, A Pele onde eu vivo (La piel que habito). Afinal de contas, o que "sou eu" na era da cirurgia plástica, da ciência e da tecnologia? Será a pele que nos define, que nos "identifica"?

É fácil, mas simplista, responder imediatamente que não. O interessante no filme de Almodóvar (de uma contenção e frieza cirúrgica pouco habituais) é que ele esquiva a resposta fácil. Quando a mulher do cirurgião plástico Robert Ledgard - que ele salva in extremis de morrer num terrível acidente de viação que lhe causa fortes queimaduras e lhe desfigura o rosto - se vê finalmente ao espelho, não suporta o que vê e passa ao ato, atirando-se da janela. Eis a razão (umas das razões) que leva Robert a ficar cada vez mais doentiamente obcecado com a criação de uma "pele" que seja imune a todos os malefícios do real.

Vicente, um jovem suspeito de ter violado a sua filha, é  escolhido por Robert para testar finalmente a nova pele (vestir contra a vontade uma pele que não é a sua): é encarcerado, submetido a uma cirurgia que lhe altera o sexo, sujeito às mais diversas transformações e vicissitudes. Robert pretende demonstrar, em ato - como diz, a certa altura, numa palestra à comunidade médica - que a nossa identidade é a pele. Como se fosse possível objetivar inteiramente o que somos...

Há um  momento em que Vera - outrora Vicente - parece estar a aceitar a sua nova "pele". Como se tivesse deixado de resistir. Mas eis que depara com uma foto de Vicente (quem é aquele?) e fica, de novo,perturbada, de tal forma que pega numa arma, mata Robert e volta para casa da mãe (que nunca deixara de o procurar), dizendo, perante a incredulidade daquela: "Eu sou Vicente!"

Que importa se este não é um "grande" filme (como dizem muitos críticos), mas dá que pensar com o máximo rigor? Liberto do "espalhafatoso" de muitos filmes anteriores, este é um filme não só para ver, mas também para ler ao pé da letra.

A "ordem simbólica", no século XXI, já não é o que era, o que tem consequências desde logo na "pele". É o que mostra, à sua maneira, o último filme de Almodóvar.

11.11.11

Retificação subjetiva

Por natureza, a ciência exclui a subjetividade, sendo por isso extremamente raro que um cientista tome a palavra para falar abertamente das sua "crise" subjetiva enquanto cientista. Parece que as duas coisas não colam: ou se faz ciência (e a subjetividade é excluída) ou se fala de si (e é a ciência que fica provisoriamente a hibernar).

Não é este o caso de "Criação imperfeita", um livro do físico Marcelo Gleiser (Círculo de Leitores, 2011). Com efeito, aquilo que se lê ao longo de mais de trezentas páginas é a história, a narrativa do que eu não hesitaria em chamar de uma autêntica "retificação subjetiva".

Adepto fervoroso durante anos daquilo que em física se chama "Teoria de tudo", Marcelo Gleiser conta-nos como a "pró-cura" (expressão tomada pelo autor do psicanalista Hélio Pelegrino) de uma "Teoria final" se converteu a certa altura em doloroso impasse.

Marcelo Gleiser argumenta que essa busca (baseada na noção de que quanto mais profunda e abrangente é a descrição da natureza, maior o seu nível de "simetria" matemática) é ilusória, pois tudo aponta para um cenário
no qual tudo emerge de imperfeições, de assimetrias primordiais na matéria e no tempo.

Daí que Marcelo Gleiser proponha uma "nova estética" para a ciência: uma estética que abandone a velha ideia grega de que "beleza é verdade" (ou a verdade é bela), tal como aconteceu na arte partir do século XX.

Esta ideia, pouco usual, de que a ciência ainda não fez a sua revolução estética não deixa de desafiar todos aqueles que falam, por vezes, das teorias científicas com o adjetivo "elegante"... Como se o universo vestisse Armani!

7.10.11

i-Steve Jobs

Parece que um nome próprio nunca é suficientemente próprio para nos bastar. É preciso um complemento.

O complemento em questão pode ser uma coisa de nada, um nada que é tudo, algo irrisório mas que faz a diferença, como uma simples letra, por exemplo.

Entre muitas outras realizações (todas elas apreciáveis), Steve Jobs ficará para sempre conhecido como aquele que fez literalmente saltar uma letra do alfabeto: a letra "i" (de iPad, iPhone, iPod, iTunes e por aí além). Graças a ele, o "i", embora minúsculo, não será mais uma simples letra, uma letra comum do alfabeto, pois ele conseguiu elevá-la à dignidade de "nome próprio". Porventura, o seu nome mais próprio.

Os pais de Steve Jobs deram-no para adoção quando este era ainda bebé, alegando, ao que se diz, não ter condições para o criar. Do nome do pai biológico (Abdulfattah John Jandali) parece não ter restado grande coisa (Jobs foi dado pelos pais adotivos). Assim, ele teve de (se) inventar um nome:  

i -Steve Jobs!

3.10.11

La vida es sueño?

Nunca houve tanta "literatura" para adormecer (ou para fazer sonhar) quando a situação em que mergulhou o mundo nos últimos anos (numa contínua e persistente recessão) exigiria antes que se abrisse os olhos!

Os nomes de muitas revistas falam por si: Fugas, Escapadelas, Evasões...Tudo é bom para não pensar, para não reagir!

Desse ponto de vista, o pesadelo tem uma  importante função: desperta-nos!

Mas desperta-nos do sonho - como dizia Lacan, algures - para continuarmos a dormir.

Parece que já nenhum pesadelo é capaz de nos manter acordados por muito tempo!

26.9.11

O Grande Desígnio

Num livro recente (O Grande Desígnio, Gradiva, 2011), Sthephen Hawking (em colaboração com Leornard Mlodinow) afirma que a filosofia morreu.

A ideia não é nova. O conhecido físico limita-se a repetir algo que já afirmara em Breve História do Tempo. O argumento é simples: uma vez que a filosofia deixou de acompanhar os modernos desenvolvimentos da ciência (em particular ao nível da micro e da macro-física), ela está morta, pelo menos na sua velha aspiração ao conhecimento. Desde Wittgenstein - afirmara Hawking  em Breve História do Tempo - que a única tarefa que cabe à filosofia é a análise da linguagem.

Poderia construir-se toda uma argumentação para mostrar que a filosofia - tantas vezes dada como morta, está viva e ressurge muitas vezes de onde menos se espera; mas a questão para mim é outra: não haverá na busca de uma "teoria de tudo" , como hoje se diz (a tentativa de reduzir tudo - todo o real - à teoria?) um resto de aspiração filosófica, de "metafísica" no coração da ciência?

É um velho sonho hegeliano: que todo o real é (pode ser) racional(izável). E se, ao invés, tudo emergisse de imperfeições, de assimetrias primordiais, de cataclismos e de erros, como perguntava recentemente Marcelo Gleiser (Criação Imperfeita, Círculo de Leitores, 2011)?

E se o real fosse impossível de conhecer ou matema-tizar por completo? Se houvesse um grão de real
que a mó da teoria não conseguisse moer?

13.9.11

Cuidado com o que se diz

Tem-se dito, nos últimos tempos, muita coisa sobre a crise económica e financeira na Europa, em particular sobre a possibilidade de incumprimento ou insolvência da dívida grega.

É certo que o valor da palavra (a deusa Atena falava de Ulisses, no Canto II da Odisseia, como "homem para cumprir acto e palavra") se perdeu entretanto; daí que se insista cada vez mais, por vezes até ao sufoco, na exigência da escrita: tudo deve ser escrito, ainda que não seja para ler.

Contudo, mesmo se desvalorizada, a palavra - aquilo que se diz - não deixou de ter consequências. Tendo perdido o esteio simbólico que  lhe servia de base- ela empenhava o sujeito que a proferia, mas também a comunidade que a tinha por lei - a palavra ficou, por assim dizer, desgovernada, ao saber de ventos e caprichos. Quando alguém (um ministro alemão, por exemplo) abre a boca, as águas dos mercados agitam-se, os ventos fazem tremer as bolsas (entenda-se a palavra como se quiser) e o barco europeu (é uma imagem helénica) fica prestes a afundar...

Daí que a desbocada Angela Merkel se tenha lembrado de dizer a alguns dos seus ministros mais entusiasmados: "Cuidado com o que se diz!"

Será que ela própria acredita nisso?


30.7.11

A importância do "mas"

Perante o acto monstruoso cometido por Anders Breivik, a palavra que vem imediatamente à cabeça é: "Ele é louco!".

E talvez seja, mesmo. A forma como ele "racionaliza" o acto no extenso Manifesto 2083: Uma declaração de independência europeia parece apontar, efectivamente, nesse sentido. Ver-se-á, nos próximos tempos, se tal se confirma.

Há, porém, um "mas". Talvez seja esta, aliás, a palavra mais ouvida por estes dias.

"Ele não é simplesmente um louco mas uma personalidade fanática e obsessiva" (advogado de Breivik); foram "crimes atrozes, mas necessários" (o próprio Breivik); "o Ocidente não entende agora, mas certamente me agradecerá um dia"...

Palavras de alguém que se reconhece como "responsável, mas inocente".

Desde Sócrates, tendemos a remeter o "mal" para a "ignorância" (do bem) ou para a "loucura"; mas a história está repleta de exemplos (e este não é o primeiro nem será muito provavelmente o último) que nos apontam para outra coisa bem mais assustadora...

9.7.11

Uma nova sofística

Num tempo em que a palavra tinha a palavra, a velha sofistica - praticada pelos antigos sofistas da Grécia, nem de propósito - era baseada na "eloquência", na arte de bem dizer.

Num tempo em que a palavra já não tem a palavra, nem cotação na bolsa de valores, qual é a base da nova sofística?

A nova sofistica baseia-se no cálculo, no número, tal como a velha se baseava no logos, na arte da palavra.

Espero que o novo ministro da Educação, que tanto critica o "eduquês" (como fala vazia) não se esqueça de que há também, e cada vez mais, o "calculês": a nova retórica da era da ciência e do capitalismo.

Qual dos dois (o eduquês ou o calculês) podem ter efeitos mais "perversos"?

Nota de rodapé: Houve uma agência de rating que, ainda recentemente, fez os SEUS cálculos e chegou à bela conclusão de que Portugal era lixo. De facto, a sardinha não tem estado muito boa, este ano, mas não era razão para tanto! Aliás, desconheço se a classificação de "lixo", que já chegou à Madeira e aos Açores, também chegou à sardinha...

8.7.11

Querem ser avaliados?

Visto que o único "argumento de autoridade" que hoje nos resta é a ciência, há muita bizarria que cresce à sua sombra.

Em 2004, quando os ventos da avaliação começaram a soprar pelas bandas da psicanálise (ainda não se conhecia na altura a amplitude e vastidão dos seus estragos), Jacques-Alain Miller, com uma finura e acutilância assinaláveis, dizia o seguinte: "Sob o pretexto de que há medida, que se afere (étalonne), numera (chiffre), compara, etc, imagina-se que é científico. Isto não tem nada de científico e os melhores avaliadores, os mais inteligentes, que se defrontam com o problema, sabem perfeitamente que não se trata de uma ciência. Não é porque há cálculo que há ciência." (Voulez-vous être évalué?, Éditions Grasset et Fasquelle, p. 41).

Se a avaliação não é uma ciência, o que é então?

A resposta é dada logo no início, no subtítulo: uma "máquina de impostura" (machine d'imposture). Voilà!

Ainda assim, como se vê a olhos vistos, com efeitos reais incalculáveis...

6.7.11

Travessia de um fantasma?

Há uma "fantasia" que ensombra de modo recorrente os portugueses: serem a cauda da Europa.
A "cauda", no sentido mais grosseiro do termo, é o ânus: a abertura exterior do tubo digestivo, na extremidade do recto, pela qual se expelem os excrementos, ou seja, aquilo que deve ser excluído do corpo.
Ao cortar o rating de Portugal para lixo, a Moody's torna-se um parceiro privilegiado dos portugueses na realização deste "fantasma fundamental": ela perfaz, no real - e não digo realidade porque esta sofre um abanão, um verdadeiro de tremor de terra - o que os portugueses apenas se limitavam a sonhar.

As empresas de rating são um bicho curioso: fazem tremer os países, suar os políticos e ficar "à rasca" muitos de nós, como se um deus ao contrário tivesse aproveitado a "morte de Deus" para subir ao palco e tomar conta da cena.

Freud não tinha razão. Ele acreditava que a religião sucumbiria frente à ciência. O que vemos nós, porém?

O futuro do passado é hoje. "O futuro de uma ilusão" - segundo o modo como Freud caracterizava a religião - mostra-se hoje como um "presente" envenenado. Não está hoje a religião onde menos esperaríamos?

O que vemos quando se fala dos mercados como se eles pudessem ser sensatos, complacentes? Quando é a fé, a confiança nos mercados o que se pretende recuperar? Quando se diz, humilhado e ofendido, que é preciso fazer tudo para acalmar os mercados?

Crê-se que é para combater esta "fé" nos mercados - algo que soa ainda demasiado religioso - que se dá tanto crédito - um crédito desmesurado, como dizem alguns - às empresas de rating, pois estas parecem funcionar por milagre (o milagre científico), quase sem  mão humana, guiadas não pelo espírito santo, mas antes pelo "espírito científico", isto é, pela letra, pela fórmula, pelo cálculo matemático.

Ainda assim, no mais puro "deserto do real", há uma sarça ardente que continua a queimar: a fé, a confiança, a crença de que a "razão" (numérica) é em si mesma, deixada a si mesma, racional. Talvez a vacilação da "política", dos políticos europeus se deva, em parte, ao receio de abandonar esta fé, de transpor o limiar que vai da "crença" ao "lixo".

Mas não será preciso dar esse passo para agir sem receio de cair na merda? Pois se já caímos...

29.6.11

Salvar o diabo?

O tio Einstein (como é tratado carinhosamente pelo conhecido treinador de futebol José Mourinho) ainda acreditava que as leis que governam os fenómenos são deterministas, ao afirmar que "Deus não joga aos dados". À sua maneira, ele salva Deus; já o seu neto, digamos assim (o conhecido físico inglês Stephen Hawking) acaba por dispensar, no seu mais recente livro (O Grande Desígnio), a hipótese de Deus. Conclusão: a ciência não salva Deus.

Para que serve, então, a ciência nos dias que correm?

Para muita coisa, evidentemente. Para quase tudo. Ela é actualmente, pela eficácia dos resultados (sejam eles quais forem) o único argumento de autoridade. Para que uma carta chegue ao actualmente seu destino, ela tem de levar o selo (de garantia) da ciência. Daí que muitas "práticas" e "poéticas" de outrora estejam à rasca ou em vias de extinção.

Ela serve também, graças aos mais recentes avanços no domínio da Genética, para salvar espécies em vias de extinção. Achei curiosa a notícia que li hoje no Jornal Público: "Cientistas norte-americanos sequenciaram o genoma do diabo-da-tasmânia...em risco de extinção devido a um cancro contagioso" (p. 18).

Achei graça ao nome do marsupial carnívoro em causa e dei por mim a perguntar: será que também o diabo está em vias de extinção? Será a ciência capaz de salvar o diabo quando não foi capaz de salvar Deus?

É de crer que salvará, pelo menos, o diabo-da-tasmânia.

6.6.11

A parte da sombra III

Em nome da transparência, do direito a informar, a violência (agressões entre os jovens, entre colegas militares...) é reproduzida, ampliada até à exaustão pelas televisões a qualquer hora do dia. A mesma televisão que assinala com uma bola vermelha, no canto superior direito, programas e filmes susceptíveis de ferir a sensibilidade de alguns espectadores, repete de forma crua, e sem qualquer bola vermelha de permeio, a violência da vida real.

O problema é que à força de reduzir o real obscuro da violência a espectáculo televisivo, mediático (embora sem a mediação da palavra, pois também esta não passa de adereço quando é convocada) se tende a banalizar o mal que ela encerra ou a gerar ainda mais violência. A violência gera violência e pede sempre mais, ainda.

Contrariamente ao que sugere o termo "mediático" (medium, media), as televisões não "medeiam" (e muito menos temperam a violência), mas duplicam-na, triplicam-na...dando-lhe novos palcos para se exibir.

1.6.11

A parte da sombra II

Não é apenas no domínio da microfísica que o observador interfere com aquilo que é observado; o mesmo se passa, e por maioria de razão, no domínio da "física" do quotidiano: aquela que está mais à mão, a olho nu ou desarmado.

Um bom exemplo é a cobertura mediática dos acontecimentos: aumentando o seu tempo de "exposição" (os noticiários duram cada vez mais tempo) nem por isso se lança mais "luz" (ou se pretende lançar mais luz) sobre eles; pelo contrário, gera-se mais confusão.

Em qualquer caso, "interfere-se" no modo como os acontecimentos são vistos, na opinião se que forma sobre eles e no modo como se vão desenrolar. E tudo isto em nome do "dever" de informar ou do "direito" à informação. 

É a "democracia" mediática!

26.5.11

A parte da sombra

Há aqui diversos tipos de violência: a violência do acto em si (a agressão à jovem adolescente, em Lisboa), a violência do acto de filmar a agressão e, last but not least, o acto de exibi-la na Internet. Mesmo se a categoria de "perversão" tem vindo a ser erradicada dos manuais de psiquiatria, trata-se aqui de um acto genuinamente "perverso". Além de filmar a agressão, o jovem faz de todos nós cúmplices, não do acto de agressão propriamente dito, mas do "olhar" a que ele se reduz (usando a câmara) e nos tenta reduzir (sendo usados por ela).

Na era em que tudo se mostra, vê e dá a ver, não se exige aqui uma outra resposta que dê relevo à "parte da sombra" (como diria Agamben) que habita o coração humano?

É preciso voltar a ler, porventura, o que diz Freud (apesar de démodé) sobre a "pulsão agressiva" no Mal-estar na civilização. Um texto tão contemporâneo!

25.5.11

O que é ser contemporâneo?

Na "era do facebook", há quem pense que ser "contemporâneo" é estar constantemente ligado, on-line, expressando a toda a hora o "gosto" ou o "desgosto" que lhes vão na alma ou no corpo.

É estar sincronizado com o "tempo real" em que (quase) tudo é agora processado! Não permitir que nada se perca de tudo o que se passa (ainda que, na voragem do que passa depressa, quase nada fique)!

Ser contemporâneo, pensam alguns, é estar constantemente sob a luz sol ou dos holofotes!

Giorgio Agamben, o conhecido filósofo, num interessantíssimo texto justamente intitulado "O que é o contemporâneo" (in Nudez, Relógio D'Água, 2010), coloca o acento, pelo contrário, num certo desfasamento ou des-sincronização do sujeito em relação ao tempo presente: "só pode dizer-se contemporâneo quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue apreender nelas a parte da sombra, a sua obscuridade íntima."(p. 24).

Apreender "a parte da sombra" no que brilha, eis o contemporâneo!

14.5.11

Quem é o rato Mickey?

Há dias, Carlos Fiolhais comentava deste modo o panorama político actual:

"Por vezes a democracia não serve tanto para escolher os melhores governos, mas mais para eliminar os que se revelaram maus...Se a escolha em Portugal fosse, por hipótese, entre o actual primeiro-ministro (José Sócrates) e o rato Mickey, eu não hesitaria em votar no boneco da Disney" (Jornal Público).

Há quem pense que tudo está escrito (no acordo com a Troika) e, por isso, é indiferente votar neste ou naquele. Mas uma coisa é certa: após seis anos de descalabro, sabemos ao menos em quem não devemos votar.

Ainda que a escolha seja forçada (pois a situação não deixa muita margem de manobra), é preciso escolher. Eu já escolhi. Tal como Carlos Fiolhais, prefiro votar no rato Mickey.

Resta saber quem é o rato Mickey. Mas isso, é outra história.

28.4.11

A derrota da Vontade

O conhecido e polémico José Mourinho, treinador do Real Madrid, citou Albert Einstein para justificar aquilo que o move e que parece constituir o fórmula do sucesso: a vontade. Citar Einstein como alguém da família (o tio Alberto) diz muito sobre aquele que o cita.

«O tio Alberto disse ‘há uma força motriz mais poderosa que o vapor, a electricidade e a energia atómica: a vontade.’ E o tio Alberto não era estúpido».

No final do jogo, após a derrota, por dois zero, com o Barcelona, José Mourinho responsabilizou o árbitro pelo sucedido, revelando o seu habitual "mau feito". A sua "má" vontade?

Talvez o desejo de ganhar do Barcelona fosse mais forte que a vontade de vencer do Real Madrid. Ou talvez a vontade que anima o Barcelona tenha sido mais eficaz dentro do campo. Ou talvez...

Assistimos ontem ao triunfo ou à derrota da vontade?

14.4.11

Crise de abundância

São três. Em tempo de crise, de penúria, é muito. É uma abundância. Sobretudo porque alguns (todos eles?) são vários, uma multidão.

Quem melhor do que Nietzsche, Pessoa e Freud para diagnosticar o mal da época?

No dia 3 (Faculdade de Letras), 4 (Faculdade de Ciência Sociais e Humanas) e 5 (Fundação Calouste Gulbenkian).

Para qualquer informação sobre o Colóquio Internacional Nietzsche, Pessoa e Freud, aceder ao Blog respectivo.

2.4.11

Quem avalia os avaliadores?

Numa altura em que as empresas de rating (des)classificam a dívida da República Portuguesa para bem perto do "lixo" (é caso para dizer: do império ao lixo), tal como já acontecera com a dívida da Grécia e da Irlanda, e vai acontecer, mais cedo ou mais tarde, com outras dívidas soberanas, vem-me à memória uma frase de José Gil: quem avalia os avaliadores?

Li hoje num jornal que, perante a ameaça por parte da Comissão Europeia de responsabilizar juridicamente as empresas de notação financeira pelos erros de avaliação, estas responderam à letra, ameaçando deixar de avaliar os países periféricos, colocando dessa forma a sua dívida pública fora das rotas do investimento. Dente por dente, olho por olho. Ou melhor: se ameaças tirar-me um dente, eu ameaço tirar-te os dois olhos.

Os avaliadores não querem ser avaliados, pagar um preço pelos seus erros; não seria já tempo de começar a avaliar os avaliadores, angustiando-os da mesma forma que eles angustiam um número cada vez maior de pessoas nesta velha (e sonolenta) Europa?

Se não há forma de destronar a "retórica da avaliação" que varre o continente (é preciso avaliar isto e aquilo; no limite, tudo), ao menos que não fique nada de fora, nem sequer - e sobretudo - os sujeitos-supostos-saber-avaliar-os-outros.

Por outro lado, não deixa de ser interessante (e ter um certo efeito de verdade) que sejamos classificados perto do "lixo". Pois não é isso, afinal, o que temos andado a pregar quotidianamente com a homilia da "produtividade"? O que mais se produz por aqui - e em todo o lado onde reina o capitalismo - não é essencialmente lixo? Lixo e mais lixo. Daí que um dos grandes temas do nosso tempo seja: o que fazer com o lixo que não cessamos de produzir?

Mas quem avalia os avaliadores?

31.3.11

Haverá questão mais importante que a vida e a morte?

"Agora, para os jovens, Deus não existe em absoluto. A religião mundial é actualmente o futebol. É a única coisa capaz de congregar milhões de pessoas. Há, em Newcastle, uma expressão Maravilhosa: "Football is not a question of life or death, it's damn more important.". Isto é maravilhoso, absolutamente maravilhoso. Viver-se para o futebol, morre-se para o futebol. É a única religião do mundo." (George Steiner, Entrevista conduzida por Beata Cieszynska e José Eduardo Franco, Revista Ler, Março 2001, p. 35).

Não sei se estou inteiramente de acordo com a afirmação, até porque ainda se vive e morre demasiado em nome de Deus por esse mundo fora; de qualquer modo, se a única (a verdadeira?) religião é actualmente o futebol, estou mesmo condenado...

Há uma cena inolvidável no filme "O Segredo dos seus olhos" que nos faz sentir, por momentos, esta coisa maior que a vida e a morte que apaixona tantos por esse mundo fora. Houve um tempo em que o cinema também era uma religião...

24.3.11

Quem tem razão?

Não houve aqui um tremor de terra, mas muita coisa caiu. Caiu o governo, caíram máscaras - muitas haverão, porventura, ainda de cair - e choveram sobretudo acusações, de parte a parte: de quem é a culpa, quem são os responsáveis, quem tem afinal razão?

A neurobiologia (ver Damásio) tem insistido na importância e no papel da emoção para o (bom) funcionamento da razão. Contrariamente a grande parte da tradição filosófica (Descartes, Kant, entre muitos outros), apostada em domar, domesticar, submeter a emoção à razão, a investigação provinda da neurobiologia tem insistido sobretudo, ou igualmente, na disfunção, inoperância ou ineficácia da razão sem  o contributo, precioso, da emoção.

Tomando o exemplo da política portuguesa nos últimos anos, é fácil concluir que a emoção não tem faltado; o que tem faltado, em grande medida, é o contributo da razão.

Não há dúvida: a nossa democracia parece ter incorporado bem a lição da neurobiologia, tornando-se bastante "emotiva".

E quando a emoção se serve ainda de toda a panóplia de figuras de retórica, o seu efeito "teatral" é ainda mais eficaz.

Como entender, então, uma frase do género: "acabou o teatro!" Como efeito, ainda, do excesso de emoção; como entrada da razão em cena (na cena política); ou apenas como mais uma frase dita por um actor que acaba de entrar em palco?

Nesse caso, o teatro vai continuar. Com as consequências (bem menos teatrais) que já conhecemos.

A ver vamos.

22.3.11

geração (a)rasca

No princípio era...a canção. Dos Deolinda. Depois o fenómeno cresceu, graças, em particular, às redes sociais, como o Facebook. Nasceu a "geração à rasca". A multidão à rasca. A manifestação à rasca. Já se anunciam outros "à rasca", como o 25 de Abril: a revolução dos cravos...que murcharam. E há sobretudo cada mais textos, hipertextos, intertextos...girando em torno dessa coisa que está à rasca ou que nos deixa à rasca.
Estar ou ver-se à rasca é sentir-se em apuros, atrapalhado, em dificuldades. Mas é também, num sentido mais "popular", sentir-se já com as calças na mão, não conseguindo reter por mais tempo "o desagradável excremento que provém do interior do seu corpo", como diria Slavoj Zizek (Elogio da Intolerância, Relógio D'Água, p. 12).

Num mundo em que os velhos ideais estão em declínio, o sujeito vê-se em apuros com esse objecto abjecto que o deixa "à rasca". Se "a merda também pode servir de matéria para pensar" (permita-se dizê-lo assim cruamente, como Zizek), resta saber o que vai cada um fazer desse objecto para além de "ficar à rasca", isto é, sem saber o que fazer.

Para já, temos vindo a assistir sobretudo a um fenómeno, como diria o velho Freud, identificatório: parvos que somos.

11.3.11

Litoral

Pía Hylén é dinamarquesa, mas não vive na Dinamarca. Andou por muitas paragens: Califórnia, Paris e, agora, Lisboa: au bord du continent, où le Tage joint la mer.

Au Bord du Continent (BD-Gráfica, Lisboa, 2010) é um livro de poesia feito de palavras, cores, aguarelas, desenhos e quatro línguas: Inglês, Francês, Português e Dinamarquês. De quantas línguas é feita a nossa língua, uma língua que seja  a nossa?

Às vezes parece que uma língua se dobra na outra, como se houvesse uma passagem efémera entre ambas. À beira-mar. À beira-terra. Com a letra desenhando o litoral.

9.3.11

A (me)nina de sua mãe

Nina (Natalie Portman) foi nomeada para assumir o papel de "cisne negro". Antes de assumir este (difícil) papel, ela já tinha sido nomeada uma primeira vez por sua mãe. Nina nasceu para ser perfeita, foi nomeada para tal.

Sua mãe faz de Nina a sua (eterna) menina. Ela conta que desistiu da dança, aos 28 anos, para a dar à luz (dar à luz ganha aqui uma ressonância particular, pois se trata, verdadeiramente, de entregá-la aos holofotes, às luzes da ribalta). Mais do que desistir, a sua mãe transfere para Nina o fardo de ter de realizar um sonho interrompido.  Ela não desistiu do sonho, apenas o transferiu para a filha.Nina parece ter nascido unicamente para realizar o sonho de sua mãe.

E se Nina, em vez de carecer de um diagnóstico (é sempre arriscado diagnosticar personagens de filmes), fosse, ela sim, um diagnóstico do nosso tempo, da nova ordem vigente?

A dezanove de Março de 1974, Lacan escrevia o seguinte: "ao nome do pai substitui-se uma função que não é outra senão a de nomear para, de ser nomeado para qualquer coisa. A mãe é suficiente por si mesma para designar um tal projecto, para indicar o rasto, o caminho. O poder de nomear para institui uma ordem de ferro. Será que este nomear para não é o signo de uma degenerescência catastrófica?"

Ante o declínio da Palavra que dava nome e dizia não - abrindo ao desejo um espaço, uma clareira para respirar -, a  nova ordem de ferro faz de todos nós, de um modo ou de outro, nomeados para isto ou aquilo, sobretudo para a voragem de um gozo ilimitado, de uma pulsão de morte que nos consome, nos dilacera até às vísceras.

É isto que Nina incarna e ilustra singularmente; o resto é décor. Ou pouco mais.

15.2.11

Obscenidades

Outrora o pintor Velasquez cometeu o feito de trazer para dentro da cena o que lhe era exterior. Uma "obscenidade" que abriu um precedente. Na era em que tudo deve ser visto e mostrado, as televisões e a Internet encarregam-se de elevar a obscenidade a patamares nunca dantes alcançados. E não é só a televisão ou a Internet, mas também as rádios, os jornais e as revistas de todo o mundo.

Fala-se de tudo, mostra-se tudo. E quanto mais obsceno melhor! Veja-se o tão falado caso do jovem modelo português que assassinou um conhecido cronista social  num hotel de Nova Iorque (que melhor palco para vir à cena o obsceno, isto é, o que é suposto ficar fora de cena!).

A quantidade de informação (crónicas, debates, artigos, programas diversos...) que já se produziu sobre o assunto faz-nos porventura pensar que aquilo que se visa é esclarecer (isto é, trazer um pouco mais de luz, como diriam os iluministas) sobre este caso; porém, de uma forma geral, não parece haver outra finalidade senão alimentar, até à exaustão, a nossa necrofagia.

Em vez de máquinas de iluminar, como se propõem, os meios tecnológicos ao alcance de todos são, hoje, verdadeiras máquinas de obscurecer. Cegos de tanto ver, surdos de tanto ouvir!

3.2.11

Paixão da escrita ou escrita da paixão?

Pedro Paixão é escritor. Conhecido. Reconhecido. Embora a sua forma de escrever não agrade a todos, ela entusiasma inúmeros leitores.

Para mim, além de escritor, ele é também aquele que um dia me deu aulas, sobretudo de Hegel e Wittgenstein, na Universidade Nova de Lisboa. Eram aulas simultaneamente leves e intensas, ora cortando-nos a respiração (suspensos de um raciocínio que buscava a alquimia de conseguir dizer coisas profundas de um modo simples), ora provocando-nos uma gargalhada. Às vezes, de um modo imprevisto e intempestivo, ele dava a aula por finda, como se não houvesse mais nada a dizer ou não soubesse o que dizer mais.

Tendo acabado entretanto a licenciatura em Filosofia,  eu  fui-lhe perdendo o rasto. Só um pouco mais tarde vim a descobrir que ele tinha começado a publicar. Foram surgindo, um após outros, diversos livros que chamavam a atenção, desde logo, pelos títulos: Viver todos os dias cansa, Amor Portátil, Nos teus braços morreríamos, Os corações também se gastam, entre muitos outros. Herdeiros, porventura, da veia "publicitária" do autor (Pedro Paixão, além de Professor de Filosofia, era sócio da empresa publicitária Massa Cinzenta), os títulos ajudaram a impor um estilo que foi conquistando cada vez mais entusiastas, nomeadamente - embora de forma não exclusiva - no público feminino.

Só há pouco anos atrás soube que Pedro Paixão - além de tudo o que eu já conhecia dele - era um "bipolar assumido".  Foi, aliás, a este título que o jornal Expresso o convidou recentemente para falar, na primeira pessoa, de "uma doença que é muitas vezes associada ao mundo das artes e das letras" (Revista Única, 29 de Janeiro de 2011).

Se bem que a doença bipolar (outrora conhecida como psicose maníaco-depressiva) tivesse sido diagnosticada apenas aos 19 anos, a alternância entre estados eufóricos e depressivos que a caracteriza já se manifestara antes dos treze. Pedro Paixão fala do modo como, durante as primeiras fases depressiva até aos 13 anos, tentava lidar com o problema. Primeiro, descobriu que tocar um instrumento (um piano que existia em casa dos primos) o aliviava, tendo-lhe salvo a alma - o termo é seu - mais de uma vez; um pouco mais tarde teve lições de pintura; finalmente, por volta dos 15 anos, começou a escrever com regularidade.

Pedro Paixão descreve desta forma o que sucedia: Quando me sentia muito deprimido, ao que então nem sabia dar nome, isolava-me numa casa junto da praia. Passados alguns dias em que nada conseguia fazer, pregado a uma cama, começava a ter vontade primeiro de ler, depois de escrever. As frases e as histórias começavam a crescer dentro da minha cabeça até ao ponto de ter de pegar numa caneta e escrevê-las. Por essa altura já não sentia qualquer depressão, pelo contrário, sentia o que hoje identifico como um começo de euforia.

Mais tarde, quando começa a publicar livros, vários deles escritos muito rapidamente (como se a pressa tivesse aqui uma função, tal como na escrita da tese de doutoramento, escrita em menos de três meses), Pedro Paixão descreve assim o momento (de concluir): "aguentava" até ao seu lançamento, caindo depois, por vezes logo no dia seguinte, em depressão.

Se bem que o livro (o objecto) posto cá fora, exposto ao julgamento, à avaliação do Outro tenda a fazê-lo cair em depressão (e isto vai tão longe que o autor diz que chegou mesmo a colocar-se a hipótese - o que mostra como esse Outro exterior é também o mais interior - de ter enganado os nove professores que lhe avaliaram a tese, dado o facto de a ter escrito num tempo tão breve), é também verdadeiro, ao mesmo tempo, um outro aspecto do trabalho artístico. É o que Pedro Paixão descreve da seguinte forma: o caos que o artista sente em si é realizado, isto é, transformado num objecto, para o qual o caos migrou, dele assim, pelo menos temporariamente, se libertando.

Mas o que é, finalmente, segundo o autor, aquilo que o faz escrever?

É a dor, que também pode surgir na forma de paixão, que me faz escrever, porque ao escrever a dor esta se transforma, no melhor dos casos, em formas de beleza, que provocam uma particular, embora efémera, satisfação.

Trata-se então de sublimação (segundo o termo que Freud aplicava à arte) ou, pelo contrário, de sinthoma (como diria Lacan): o sintoma da escrita? A escrita que liga, como um fio de Ariana, os dois pólos que não sabem um do outro (o eufórico não se lembra do deprimido nem o deprimido do eufórico, como se não fossem uma só pessoa)? Algo de "intermédio" (intermediário?). Com efeito, diz o autor, essa anormal produtividade não se realiza nem no estado depressivo nem no estado de euforia, mas sim num estado de euforia suave, à qual se chama hipomania.

De tempos a tempos, o autor pergunta a si mesmo se a vida teria sido melhor e mais fácil se não sofresse desta patologia, acabando sempre por agradecer a que tem. Pelo menos, por enquanto.

27.1.11

O poder da pergunta

 Gonçalo M. Tavares foi o primeiro convidado do Café com Letras (Câmara Municipal de Oeiras) em Fevereiro de 2006. Após ter ganho entretanto diversos prémios, entre os quais o Prémio do Melhor Livro Estrangeiro 2010, em França, com o seu romance Aprender a Rezar na Era da Técnica, o escritor voltou a ser entrevistado no mesmo espaço e pelo mesmo entrevistador de então, Carlos Vaz Marques, a propósito dos seus mais recentes livros publicados, no nomeadamente, Uma viagem à Índia.

 A certa altura, falando-se de política, Gonçalo M. Tavares disse mais ou menos o seguinte (e cito de cor): Pensamos que somos livres pelo facto de podermos dizer sim ou não a uma pergunta que nos é feita, quando, pelo contrário, a verdadeira liberdade consistiria em poder escolher a própria pergunta, a nossa pergunta, pois não é certo que as perguntas que nos são feitas tenham algo que ver com os nossos problemas.

Na era do "inquérito" (Cf. Matteo perdeu o emprego, pp. 31-32), do questionário, a liberdade que resta ao sujeito parece ser apenas a de preencher um conjunto de casas vazias de perguntas já-feitas por alguém suposto saber quais são os nossos problemas e qual seria a boa solução para eles. 

Dar espaço ao sujeito para que este formule as suas perguntas e à sua maneira; eis o que é hoje também - poderíamos dizer - uma questão política.

18.1.11

Uma imensa minoria

Era o slogan de uma rádio que já não existe: para uma imensa minoria.

O senhor Manganelli, organizador das conferências do Senhor Eliot (um dos últimos livros de Gonçalo M. Tavares) começa por dizer antes de cada conferência, desculpando-se, o seguinte: Hoje não está muita gente.
 
Hoje não está muita gente nas conferências sobre poesia (quem quer saber disso em momentos de crise?). Hoje está pouca gente em quase todos os lugares onde o acontecimento não deita fumo, não faz barulho, não  explode como um homem-bomba.

Há certos lugares, até, onde não há mais do que quatro, cinco pessoas. Não obstante, se estes quatro ou cinco tiverem um desejo decidido, uma energia que não vem dos elementos, eis que podem constituir já uma imensa minoria; tanto mais que o singular - como dizia, há vários séculos atrás, quando não havia ainda televisão ou internet, Baltasar Gracián - pode por vezes ser plural, uma pessoa pode ser muitas. Resumir numa coisa ou numa pessoa uma categoria inteira é a mais intensa espécie de singularidade.

Tanta gente, afinal...

13.1.11

Nas nuvens

Não estou a ver-me proprietário de uma "nuvem". Era este o lamento de Franscisco José Viegas, no seu último Diário de ocasião (Revista Ler, Janeiro 2011), a propósito da recente criação, por parte do Google, de um leitor (ebook) de livros on line, sempre acessíveis, uma vez que não estarão alojados num determinado hardware, mas existirão virtualmente numa "nuvem". 

A nuvem (cloud) em questão, embora não existindo fisicamente, é cada vez mais a habitação dos humanos: para comunicar, para ler, para escrever, enfim, para quase tudo. Estar nas nuvens tem qualquer coisa de apelativo, que atrai os corpos para cima, como as árvores, num movimento que desafia a gravidade. Ainda assim, muitos daqueles que gostam mesmo de livros, teimam em resistir ao apelo das nuvens. A nossa vida está a mudar muito rapidamente e sinto-me um reaccionário - escrevia Francisco José Viegas.

As nuvens é uma conhecida peça de Aristófanes; mas o que nele era cómico, tornou-se ultimamente um caso  sério. Estamos a assistir, progressivamente - e a um ritmo cada vez mais acelerado - à desmaterialização do mundo. E isso pode dar-nos a ilusão de que o real - a chuva que cai realmente da nuvem - já não faz estragos. Mas faz.

11.1.11

Um pau para toda a obra

Diz-se por aqui (não sei se também é assim no Brasil ou nos outros países que falam português) que há coisas que são "paus para toda a obra". Um pau para toda a obra é uma coisa que serve para tudo, onde cabe tudo, como um recipiente sem fundo ou um armazém que se vai alargando à medida que se enche. Um armazém elástico, por assim dizer, passe a imagem "fálica".

Há palavras que são paus para toda a obra, que servem para tudo ou quase. É o caso, por exemplo, da palavra crise. Volta e meia, ela entra de novo na dança e gira como fogo preso.

Pela quantidade  e qualidade do que já se disse, dos livros e revistas que se venderam em seu nome, dos inúmeros artigos de opinião e debates televisivos consagrados ao tema, é fácil de ver que a CRISE não pára de dar frutos. É muito produtiva! Uma abundância! Há mesmo pessoas e instituições que entrariam em crise se a crise terminasse.

Mas a crise não vai terminar porque - como diz o último número da REVISTA LER (Janeiro 2001), ainda agora começou. Por isso, vai continuar a dar que PHALAR!

5.1.11

Theatro estático

Num mundo acelerado, há ainda coisas que permanecem obstinadamente lentas: ler certos autores "difíceis", fazer uma análise, escrever... Talvez a lentidão não seja a palavra certa: elas têm o seu ritmo, a sua velocidade própria. Acontece apenas que a velocidade relativa das coisas do mundo nem sempre obedece ao mesmo compasso.

Daí que o escritor M. Tavares, por exemplo, tenha dito há algum tempo, numa entrevista, que seria preciso ensinar o tédio nas escolas.

O tédio é a sensação de que nada se passa, nada está a acontecer, quando tudo, no mundo, promete ou convida ao acontecimento. Um teatro estático, como diria Pessoa.

É por isso que vale a pena ler "O Marinheiro" (agora em nova versão da Ática e com introdução, estabelecimento do texto e notas da minha amiga Cláudia F. Souza: uma apaixonada incondicional do poeta dos heterónimos).

Pessoa demonstra, aí, que a lentidão ou a imobilidade dos corpos pode atiçar a velocidade do sonho e sei lá que mais. Há "teatros estáticos" que são autênticos viveiros de acontecimentos. Ler para crer!