2.12.11

A pele onde eu vivo

 Quando, na cena final, uma bela mulher diz para a mãe: "Eu sou Vicente!", há muitos espetadores que riem. Este riso é uma espécie de defesa, um último degrau no limiar do indizível, do inominável.

"Eu sou..." coloca-nos no coração da pergunta e, ao mesmo tempo, da resposta que nos dá o último filme de Pedro Almodóvar, A Pele onde eu vivo (La piel que habito). Afinal de contas, o que "sou eu" na era da cirurgia plástica, da ciência e da tecnologia? Será a pele que nos define, que nos "identifica"?

É fácil, mas simplista, responder imediatamente que não. O interessante no filme de Almodóvar (de uma contenção e frieza cirúrgica pouco habituais) é que ele esquiva a resposta fácil. Quando a mulher do cirurgião plástico Robert Ledgard - que ele salva in extremis de morrer num terrível acidente de viação que lhe causa fortes queimaduras e lhe desfigura o rosto - se vê finalmente ao espelho, não suporta o que vê e passa ao ato, atirando-se da janela. Eis a razão (umas das razões) que leva Robert a ficar cada vez mais doentiamente obcecado com a criação de uma "pele" que seja imune a todos os malefícios do real.

Vicente, um jovem suspeito de ter violado a sua filha, é  escolhido por Robert para testar finalmente a nova pele (vestir contra a vontade uma pele que não é a sua): é encarcerado, submetido a uma cirurgia que lhe altera o sexo, sujeito às mais diversas transformações e vicissitudes. Robert pretende demonstrar, em ato - como diz, a certa altura, numa palestra à comunidade médica - que a nossa identidade é a pele. Como se fosse possível objetivar inteiramente o que somos...

Há um  momento em que Vera - outrora Vicente - parece estar a aceitar a sua nova "pele". Como se tivesse deixado de resistir. Mas eis que depara com uma foto de Vicente (quem é aquele?) e fica, de novo,perturbada, de tal forma que pega numa arma, mata Robert e volta para casa da mãe (que nunca deixara de o procurar), dizendo, perante a incredulidade daquela: "Eu sou Vicente!"

Que importa se este não é um "grande" filme (como dizem muitos críticos), mas dá que pensar com o máximo rigor? Liberto do "espalhafatoso" de muitos filmes anteriores, este é um filme não só para ver, mas também para ler ao pé da letra.

A "ordem simbólica", no século XXI, já não é o que era, o que tem consequências desde logo na "pele". É o que mostra, à sua maneira, o último filme de Almodóvar.

1 comentário:

" PASTOUTE" disse...

Pena que ainda não vi o filme, mas mesmo assim me parece ser pertinente esse comentário tendo em vista as transformações que se pode fazer neste século. Pela experiência e observação creio que sempre se estranha a nova pele após uma cirurgia. E quantas transformações nos são facultadas agora!
Selma