Há uma "fantasia" que ensombra de modo recorrente os portugueses: serem a cauda da Europa.
A "cauda", no sentido mais grosseiro do termo, é o ânus: a abertura exterior do tubo digestivo, na extremidade do recto, pela qual se expelem os excrementos, ou seja, aquilo que deve ser excluído do corpo.
Ao cortar o rating de Portugal para lixo, a Moody's torna-se um parceiro privilegiado dos portugueses na realização deste "fantasma fundamental": ela perfaz, no real - e não digo realidade porque esta sofre um abanão, um verdadeiro de tremor de terra - o que os portugueses apenas se limitavam a sonhar.
As empresas de rating são um bicho curioso: fazem tremer os países, suar os políticos e ficar "à rasca" muitos de nós, como se um deus ao contrário tivesse aproveitado a "morte de Deus" para subir ao palco e tomar conta da cena.
Freud não tinha razão. Ele acreditava que a religião sucumbiria frente à ciência. O que vemos nós, porém?
O futuro do passado é hoje. "O futuro de uma ilusão" - segundo o modo como Freud caracterizava a religião - mostra-se hoje como um "presente" envenenado. Não está hoje a religião onde menos esperaríamos?
O que vemos quando se fala dos mercados como se eles pudessem ser sensatos, complacentes? Quando é a fé, a confiança nos mercados o que se pretende recuperar? Quando se diz, humilhado e ofendido, que é preciso fazer tudo para acalmar os mercados?
Crê-se que é para combater esta "fé" nos mercados - algo que soa ainda demasiado religioso - que se dá tanto crédito - um crédito desmesurado, como dizem alguns - às empresas de rating, pois estas parecem funcionar por milagre (o milagre científico), quase sem mão humana, guiadas não pelo espírito santo, mas antes pelo "espírito científico", isto é, pela letra, pela fórmula, pelo cálculo matemático.
Ainda assim, no mais puro "deserto do real", há uma sarça ardente que continua a queimar: a fé, a confiança, a crença de que a "razão" (numérica) é em si mesma, deixada a si mesma, racional. Talvez a vacilação da "política", dos políticos europeus se deva, em parte, ao receio de abandonar esta fé, de transpor o limiar que vai da "crença" ao "lixo".
Mas não será preciso dar esse passo para agir sem receio de cair na merda? Pois se já caímos...
5 comentários:
“Freud não tinha razão. Ele acreditava que a religião sucumbiria frente à ciência. O que vemos nós, porém?”
O que vemos nós? A subida ao lugar de Deus - onde supostamente Ele deveria estar (mas não está, morreu!) - de um conjunto de novas divindades entre as quais um novo deus: “os mercados”, esse Moloch insaciável, nas palavras de Z. Bauman.
Confesso que a leitura do seu texto em particular da frase acima, que está entre aspas, me fez pensar no “Oráculo do Cão” de Chesterton, que algures reza assim:
«O primeiro efeito de não acreditarmos em Deus é perdermos o senso comum e deixarmos de ser capazes de ver as coisas tal como elas são. Qualquer coisa que qualquer pessoa diga, e declare coisa corrente, ganha uma extensão indefinida como um panorama de pesadelo. E um cão é um portento, e um gato é um mistério, e um porco é um talismã, e um escaravelho é um deus, e temos de novo todo o jardim zoológico do politeísmo do Egipto e da velha Índia; o cão Anúbis e a Leoa Pachet e os clamorosos Touros de Bashan; eis de regresso os deuses bestiais do início, que se confundem com elefantes e serpentes e crocodilos; e tudo isto, porque nos assustam as palavras que dizem: “Ele fez-se Homem”.»
Chesterton citado por Slavoj Zizek, Violência, Relógio D’Água, 2008, pág. 160
Ora estas classificações das agências de “rating” e a lógica que subjaz à atribuição das mesmas, são coisa do outro mundo, um portento, um mistério, uma coisa bestial…
Saudações.
Creio que também era Chesterton que relembrava, algures, que quando deixamos de acreditar em Deus não passamos a acreditar em nada, mas, pelo contrário, em tudo! Até na "besta" dos mercados, das empresas de rating e coisa que o valha!
Mas gostaria de fazer um pequeno reparo ao meu comentário, para que não seja mal interpretado.
É óbvio que é clara e simples a lógica subjacente ao abaixamento do "rating" de Portugal pela agência norte-americana. É a lógica especulativa. Só não vê quem não quer ver.
Mas para aqueles que idolatram estas agências, os crentes, tal decisão é um mistério desta nova divindade. Um desígnio imperscrutável deste novo deus.
Como é possível que não se aplaque, depois de tantos holocaustos?
Boas Filipe.
Já que estas agências de rating não fazem o seu próprio rating, talvez fosse bom fazer uma agência de rating das agências de rating.
O problema é se depois esta agência de rating teria legitimidade para fazer o seu próprio rating.
O problema do que é ou não legítimo, como é o caso da possibilidade de um rating (de uma medida... ou da medida correcta, como diria Aristóteles) do real é já um problema complexo. Religioso, como diz. Mas não só. Pois se a isso juntarmos uma boa dose de perversidade... temos lucro!
Ao contrário dos diversos crentes no mercado, não me parece que as agências de rating e os interesses que elas servem estejam no ramo por questão de fé. Estão pura e simplesmente para facturar com a impotência e com falta de organização dos outros no que toca aos seus interesses (como é o caso da UE).
Igor
Há aqui, é verdade, uma espécie de "salada russa", salvo seja: alimenta-se toda uma retórica para-religiosa (é preciso acalmar e ter fé nos mercados, etc.)para ocultar o verdadeiro motor, imóvel, de tudo isto: o plus-de-jouir, a mais-valia, o lucro...
E há muita gente a lucrar, até mesmo aqueles (europeus)que, expirando estado de alma como quem deita o ar pela fala, desabafam agora contra as empresas de rating "americanas".
Daí que tenha havido até agora uma enorme incapacidade de agir na UE.
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