22.12.08

Mais-valia...

Num tempo e numa época de colapso generalizado das finaças e da economia a nível global, vale  a pena recordar uma frase de Lacan, retirada do Seminário II: "o dinheiro não foi feito para pagar, mas para ficar a dever." (p. 239). 

Não foi a "crise" desencadeada por um certo tipo de crédito, de endividamento, de sobre-endividamento...?

O capitalismo constitui-nos a todos como devedores, sujeitos a uma dívida perene, a uma ordem de pagamento. 

7.10.08

Simplex

O que está a acontecer nas escolas portuguesas, por obra e graça da implementação do novo regime de avaliação de desempenho dos professores, poderia resumir-se no desabafo de um deles: "com tanta legislação que temos para ler e tanto documento, impresso, ficha...que temos de preencher, será que ainda nos resta tempo para dar e preparar aulas?

Ironia das ironias: supostamente, a avaliação visaria melhorar o ensino e a aprendizagem!

Quando o meio é extremamente complexo, sinuoso e labiríntico, rapidamente se perde de vista o fim pretendido. O processo burocrático torna-se kafkiano - para não dizer perverso - segundo uma lei, insensata, que a todos comanda. 

Só este Ministério da Educação parece não ver, não querer ver (o que assenta num recalcamento) o que é claro para toda a gente, em particular aqueles que estão directamente implicados num tal processo: este sistema é inútil, cansativo, injusto  e não tem futuro. 

Entretanto, alguma coisa já se conseguiu: desmotivar os que estavam motivados, irritar os pacíficos, instalar a crispação entre velhos colegas, fazer sorrir os "oportunistas"...

Alguma coisa mexe. O mundo pula e avança, como dizia o poeta. Chama-se a isto: fazer reformas no ensino. Para o bem comum. O progresso do país e do mundo. E, já agora, o controlo do défice.

17.9.08

Uma nova "Hontologie"?

Se o preço do crude sobe nos mercados internacionais, há razão - segundo os donos das petrolíferas - para subir o preço dos combustíveis; se, pelo contrário, o preço baixa, há razão para o diminiuir...

Haveria razão, se a lógica (aristotélica) funcionasse como deveria. Pelo menos em Portugal, ela não funciona. Toda a razão é suficiente para subir o preço dos combustíveis, quer o seu valor nos mercados internacionais aumente ou diminua.

Aliás, as mesmas razões podem funcionar - segundo um discurso predominantemente falacioso - quer num sentido, quer noutro, a fazer-nos lembrar a lógica do inconsciente, com uma ressalva: eles sabem o que fazem! Por exemplo: se o dólar desvaloriza face ao euro, a culpa da subida dos combustíveis reside nessa desvalorização; se valoriza, como é o caso presente, a culpa reside na valorização. 

Mas não é só o discurso falacioso que dá que pensar; também a atitude descarada, sem pedir desculpa, com que tudo isto é feito, é um sinal dos tempos: a vergonha, emoção de tantos pesares e desconfortos e objecto de tantos tratados, já não parece comandar o sentir, o pensar e o agir da maior parte de nós.

3.9.08

Inteligência e estupidez

Tive oportunidade de realizar, nestas férias, um velho desejo: visitar as famosas grutas de Altamira (Cantábria). Como todo o desejo realizado, também este me provocou aguma desilusão. Não devido à importância das grutas em si - pois essa é incontestável -, mas a um certo desfasamento que sempre existe entre a expectativa (isto é, a imaginação) e a realidade.

Aquela que alguns consideram a "Capela Sistina" da arte paleolítica fica situada num dos lugares mais bonitos de Espanha, em Santillana del Mar. Esta é conhecida, pelos espanhóis, como "a cidade das três mentiras", visto que não é santa (santi), nem plana (llana) nem tem mar. Apesar das mentiras, é indiscutivelmente verdade que este é um lugar encantador e inolvidável.

Foi percorrendo devagar as bonitas e tranquilas ruas desta cidade do Norte de Espanha que eu deparei, subitamente, com um Museu da Tortura, onde eram exibidos uma série de instrumentos de suplício usados pelos dignitários do Santo Ofício para, supostamente, combater os hereges.

Lado a lado, o que há de melhor e de pior no ser humano: a arte ao serviço da beleza (os famosos bisontes de Altamira) e a arte (de fabricar instrumentos) ao serviço do...gozo "inquisitorial".

Não se trata apenas de que a inteligência more ao lado da estupidez, mas - como denunciou Robert Musil - de que a estupidez pode assumir todos os trajes da inteligência. Com efeito, como diz o autor, se a estupidez não se confundisse com o talento, com a inteligência, se não tivesse as aparências do progresso, do génio, da esperança, ninguém desejaria ser estúpido e não existiria a estupidez (O Homem sem Qualidades e Da Estupidez).

24.7.08

Sem-título (Cigarro com mão na porta)


É a mão que segura o cigarro ou o cigarro que segura a mão?

Sobre uma porta que se abre ou se fecha para um espaço ou um tempo (in)certos, o que resta de um vulto, aparecendo ou desaparecendo, numa Outra Cena, suspensa, é um pedaço fragmentado do corpo.

O que resta do corpo vivo, na era da ciência, são apenas fragmentos, pedaços.

São os dedos de um homem ou de uma mulher que seguram o cigarro - um objecto entre os demais - ou é este que os segura, descrevendo, em cinza e fumo, o seu destino de homens e mulheres sem qualidades?

É como se a mão, que resta, na era da tecnologia, não quisesse abrir mão do cigarro, ao menos do cigarro, ainda que digam que mata o corpo e corrói a alma.

Mas é a mão que segura o cigarro, ou este, com mão na porta, que segura a mão?

O fotógrafo não diz e a imagem não fala. Apenas des-vela, no sentido em que mostra e oculta ao mesmo tempo, o real de que se trata.

Agradecimento especial ao fotógrafo Manuel Silva.

Sem-título (uma cadeira olhando o mar)

Um banco é um objecto fabricado pela mão do Homem, que tem, em princípio, uma função delimitada: serve para nos sentarmos.

Um banco, à beira mar, é uma tentação. Apetece demorar-se nele, ouvindo o som das ondas que explodem na rocha e vendo a sua brancura festiva aí se espreguiçando.

Também fui tentado e ali me sentei por mais de uma vez. Como eu, muitos outros. Com excepção dos que têm vertigens ou receio da proximidade da água, toda a gente acaba por sentir, uma vez ou outra, o desejo de experimentar a sensação de estar ali sentado por algum tempo. Às vezes, apenas o fugaz instante de ver, de olhar o mar; outras vezes, o instante efémero de ser olhado pela objectiva fotográfica, de fazer-se olhar. Uns e outros se demoram ali, por algum tempo, até que são de novo chamados à realidade.

Quando o ciclo da semana recomeça e todos se vão embora, o banco fica sozinho...olhando o mar. É então que ele adquire uma aura e uma beleza especiais: já não serve para nada. É nesse instante que o fotógrafo, surpreso com um tal objecto , o eleva à dignidade da Coisa: vazia, inútil, espantosa.

Uma figura do espanto. No limiar da vertigem. À beira mar.

Um agradecimento especial ao fotógrafo Manuel Silva. Só o texto é meu; a máquina, o olhar e a sensibilidade fotográfica são dele.

23.7.08

Ilha das Flores

Onde se prova, por A mais B, que Deus não existe!

Um novo telemóvel ou a lógica do capitalismo

Houve quem fosse vestido de pijama para não perder o lançamento, em Portugal, da última criação da Apple: o novo iPhone 3G.

A tentação dos primeiros foi compensada com um paradoxo: uma maravilha tecnológica que não tinha algumas funcionalidades básicas de outros telemóveis comuns, por exemplo, a possibilidade de enviar um SMS. Seria isto deliberado ou um simples lapso?

Diferentemente do marxismo - que pretendia funcionar segundo uma lógica de satisfação da necessidade - o capitalismo funciona segundo uma lógica da insatisfação do desejo. Com efeito, ele não se limita a satisfazer as necessidades já existentes, mas produz sempre novas necessidades e novos objectos para as (in)satisfazer.

O capitalismo gera insatisfação, histerizando o indivíduo. Para alimentar o desejo, fabrica constantemente novos objectos que desacreditam, diminuem, desvalorizam os objectos já existentes. Se eu não tenho o último grito da tecnologia, o novo iPhone, sou infeliz; mas se eu, vestido de pijama ou em roupa normal, o adquiro, eu continuo a ser infeliz, pois ele não é perfeito. Novos objectos surgirão em breve para continuar a alimentar a máquina infernal do desejo.

É por isso que esta lógica só pode levar a mais e mais insatisfação, produzindo mais e mais infelicidade (numa era, curiosamente, em que basta esticar a mão para que a felicidade, como se diz, esteja ao nosso alcance, ao alcance da mão); infelicidade para a qual o capitalismo também se encarrega de produzir os seus remédios, as sua pílulas...da felicidade

16.7.08

O prazer da releitura


O prazer da leitura não é para todos. Em Portugal, por exemplo - a ter fé nas estatísticas - é cada vez mais para menos pessoas. Lê-se pouco e com desprazer.

No entanto, há ainda quem se reveja nesta afirmação de Marcel Proust: "Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido." (Marcel Proust, Journées de Lecture). Como eu entendo este "prazer divino" de que fala Marcel Proust!

Não sei, todavia, se o "prazer" dá inteiramente conta daquilo que nos prende aos livros. Há livros que nos agarram como uma espécie de doença, como um desprazer, sem que por isso os larguemos. Eles tornam-se parte de nós, a parte mais íntima e estranha ao mesmo tempo, como um sintoma de que não queremos curar-nos.

Na verdade, também eu leio cada vez menos livros. Ao mesmo tempo, releio cada vez mais. A releitura é não só um prazer redobrado, como a possibilidade de explorar recantos que permaneceram na sombra numa primeira leitura. Deixar-se agarrar de novo por um livro de onde já não esperávamos novidade, pode ter efeitos surpreendentes.

Uma das surpresas mais agradáveis que tive ultimamente foi um livro de Freud, que eu já não lia há vários anos: o Mal-Estar na Civilização (Relógio D'Água). É um livro de 1930. Da pré-história, pensamos.

Pois bem: quando abrimos o livro e começamos a ler, somos tomados de uma satisfação (é a palavra certa, mais do que prazer) por ver que a inteligência e a acuidade de análise por parte de Freud, não só não perderam actualidade, como mantêm a mesma frescura dos primeiros dias.

É um livro que poderia ter acabado de nascer!

10.7.08

O mito de Sísifo

Sob a aparente diferença entre a direita e a esquerda, há hoje, em Portugal, um significante-mestre ou uma palavra-de-ordem que faz elo entre ambas:sacrifício. Pede-se aos portugueses sacrifício para enfrentar as dificuldades que aí vêm ou que já estão aí.

Sacrificar uma coisa por outra, um bem por outro, faz parte integrante da própria lógica da escolha: o que quer que se escolha, há sempre algo que se perde, que se sacrifica.

O que acontece, porém, quando o sacrifício é vão ou há uma espécie de sacrifício pelo sacrifício? Quando este já não é um meio para atingir um fim, mas um fim em si mesmo, uma finalidade sem fim?

Após anos de sacrifício, para, supostamente, controlar o défice ou acertar as contas públicas - em particular desde que este governo tomou posse -, os portugueses começam a sentir que tudo foi em vão. Graças a uma conjuntura internacionalmente desfavorável, o produto do esforço, do sacrifício elevado até ao cume, resvala por aí abaixo, sem dó nem piedade.

O que prometem os novos políticos que se afiguram já no horizonte? Sacrifício, mais sacrifício. Seria bom que lessem, durante as férias, O Mito de Sísifo. O mito tem o poder de revelar a verdade, ainda que se trate de uma ficção.

6.7.08

Contra-senso

Para quem gosta de cinema e não se contenta com meras con-fusões emocionais (sem palavras), apreciações mínimas do tipo "gostei", "não gostei" ou sofisticadas reflexões estétic0-formais, geralmente desprovidas de substância, existe um autor incontornável. Não porque alguns tenham feito dele, nos últimos tempos, uma espécie de estrela Pop, mas apesar disso. Chama-se Slavoj Zizek.

Em praticamente toda a sua obra (de que uma boa parte foi vertida para português em 2006, pela Relógio D'Água) o cinema marca presença: ou porque é directamente abordado ou porque serve de fundo a outras reflexões.

Temos agora, em português, um conjunto de quatro ensaios sobre quatro cineastas (Kieslowski, Lynch, Hitchcock e Tarkovski), num volume intitulado "Lacrimae Rerum" e publicado pela Orfeu Negro.

Num estilo que mistura a anedota com o exemplo mais corriqueiro, e em que a constante digressão (arriscando fazer perder a paciência aos que preferem a linha (quase) recta das auto-estradas às curvas e contra-curvas das estradas secundárias), Slavoj Zizek consegue escrever a contra-senso, num mundo em que predomina cada vez mais o bom-senso e o senso-comum, mesmo que a ideologia new age nos faça acreditar no contrário.

5.7.08

Ver-se grego!

Um amigo meu, que está a concluir um doutoramento, revelou-me há algum tempo atrás que há noites em que sonha com frases inteiras em grego. Neste caso, o sonho fala...grego. É preciso acrescentar que o doutoramento é sobre Aristóteles;um grego, por sinal.

Pois eu, que não sonho em grego, também me vejo grego, às vezes; sobretudo em dias como hoje, às duas da manhã, em que em vez de estar a dormir ou a beber um copo, algures, estou para aqui a alinhavar palavras, em busca de uma ideia que possa abrir uma clareira na floresta.

E chegarei a concluir o meu doutoramento?

Claro que sim...pson. Homer Simpson!

21.6.08

La vie en close


Em Curitiba, descobri um poeta, Paulo Leminski, que definia assim o amor:

"Amar é um elo
entre o azul
e o amarelo"

Dizia Lacan, algures, que o amor é poesia.

A poesia é um dom da palavra.

Os animais copulam mas não amam. Não têm o dom da palavra. Não são poetas. Não sofrem de amor. Não fazem elo entre o azul e o amarelo.

Serão mais felizes?

17.6.08

Des (acordos) ortográficos


A Orto-grafia é a parte da gramática que ensina a escrever correctamente as palavras de uma língua.

Quem escrevia mais correctamente: Fernando Pessoa, que escrevia "de facto", ou Drumond de Andrade, que "de fato" escrevia?

Ou será o inverso: Fernando pessoa escrevendo de fato e Drummond de facto escrevendo ?

Eu, que amo a poesia de ambos, sei que os dois tinham a arte e a ciência de bem escrever em língua portuguesa. Ambos amavam a língua como a si mesmos ou até mais do que a si mesmos.

Pouco importa se com ou sem acordo!

16.6.08

Caçadores de papagaios

Pelo segundo ano consecutivo, desloquei-me a Curitiba, a capital do Paraná (Brasil), a pretexto das V Jornadas de Direito e Psicanálise, promovidas pelo Núcleo de Direito e Psicanálise da Universidade Federal do Paraná.

Cada uma das jornadas anteriores teve como "objecto-pretexto" uma obra de um grande autor da literatura universal (por exemplo, "O Processo", de Kafka ou "O Mercador de Veneza", de Shakespeare). Este ano, o cenário mudou, tendo sido escolhido o livro de um autor "menor", ainda que constitua um verdadeiro sucesso de vendas a nível mundial. Evidentemente, o sucesso comercial não garante a profundidade ou a qualidade intrínseca de uma obra; caso contrário, o Segredo" (The Secret) seria garantidamente uma das maiores obras de sempre. Mesmo se a espécie humana gosta de alimentar e correr atrás de segredos - não só os de Fátima! - é claro que uma tal conclusão seria ilegítima.

Porém, como ensinou Duchamp, até certo ponto o "objecto", qualquer que ele seja, acaba por ser indiferente. Muita coisa interessante tem sido dita (e escrita) sobre o fenómeno que constitui o Segredo, por exemplo; da mesma forma, o autor e a obra, aparentemente menores, deste ano não impediram que se tivesse assistido, em Curitiba, a um trabalho de excelente qualidade, em nada inferior àquele em que tive o prazer de colaborar no último ano.

O título original do romance, The Kite Runner, foi vertido diferentemente para o português falado no Brasil e em Portugal: enquanto os brasileiros o traduziram por Caçador de Pipas (o que não deixou de provocar-me o riso, pois imaginava alguém caçando "pipas" de vinho), os portugueses, menos fiéis à letra (quem sabe se devido ao "espírito" do vinho!) optaram por um título inócuo: "O Menino de Cabul". Na realidade, ambos estão certos, na medida em nenhum está certo: quer sejam "pipas" (como dizem os brasileiros) ou "papagaios de papel" (como dizemos nós) são apenas "modos de dizer" a coisa, sem nome, de que se trata.

Numa altura em que se tenta fazer mais um acordo ortográfico, é bom saber que o desacordo não é apenas (orto)gráfico, mas também sintáctico, semântico e pragmático. A língua é um animal vivo que não se mata por decreto. De um modo ou de outro, nas suas imensas veredas, labirintos ou linhas de fuga, todos os que falam a "língua portuguesa" vão continuar a divergir, trilhando novas sonoridades e novos caminhos. Isto enquanto uma outra língua qualquer (o inglês?) não matar todas as outras. Só "o amor da língua" (Milner) poderá salvá-la do aniquilamento. Quer seja no português de aquém ou de além mar, amemos, por isso, a língua, como a nós mesmos. Não falar (ou não ser falado) é deixar de existir.

2.6.08

Uma velha e respeitada senhora


Com a recente eleição de Manuela Ferreira Leite para comandar os destinos do maior partido da oposição, volta de novo à ribalta a relação entre "verdade e política", segundo um conhecido texto de Hannah Arendt. Nesse texto, a autora pergunta-se, a certa altura, se a mentira não fará parte intrínseca dos políticos.

Os políticos contornam geralmente esta realidade, fingindo ou fazendo de conta que dizem a verdade. Sabemos todos, por experiência recente, o que isso significa. Mais cedo ou mais tarde, a verdade, como se diz, vem ao de cima.

É por isso que a senhora Manuela Ferreira Leite, sendo alguém que "não inventa e não mente" (Fórum TSF, hoje) e que insiste em "dizer a verdade aos portugueses" (onde é que eu já ouvi isto!), é encarada, por muitos, como a resposta à crise que tem atravessado, nos últimos anos, o país e, em particular, a oposição.

Qual é, então, a "verdade" que esta senhora, rigorosa e "com mão de ferro", tem a dar aos portugueses? Ou, dizendo de outra maneira: uma vez que "a verdade tem estrutura de ficção" (Lacan), qual é a ficção que se oculta sob o manto diáfano da tão proclamada verdade?

É simples: a retórica da verdade, a que esta senhora se agarra, e a que se agarram todos aqueles que votaram recentemente nela, tem a sustentá-la a "ficção" do capitalismo. Há que dizer aos portugueses que, segundo a "verdade" do capitalismo mais neo-liberal, não lhes resta senão continuar a apertar o cinto, num auto-sacrifício heróico e abnegado. Tudo para bem do país, quer dizer, para bem da "verdade"...

Acontece, como dizia alguém um dia destes (num dos fóruns TSF), que os portugueses sabem que não lhes resta mais nada onde apertar o cinto, "a não ser no pescoço". Por isso, estão cansados da velha e respeitada senhora que é a verdade" e talvez haja surpresas nas próximas legislativas.

Fartos de verdades que se revelam mentiras, não seria mais criativo, original e verdadeiramente inovador alguém que ousasse inventar uma mentira capaz de se tornar verdade? Uma "verdade inventada", como diria Clarice Lispector?

15.5.08

Pequenas vitórias

O preço do petróleo não pára de aumentar. No entanto, a diferença entre o "dólar" e o "euro" também não tem parado de aumentar. Por isso, o aumento do petróleo deveria ser de alguma forma atenuado graças a esta diferença. Não é, porém, o que tem acontecido.

A "lei do mercado" revela aqui a sua face real: sem lei. O mercado não tem lei, a não ser aquela que lhe impõem os especuladores. Uma lei insensata, selvagem, que parece não ter limites. Estamos aqui em pleno reino do "simulacro" (Baudrillard) ou do "semblant" (Lacan).

O paradoxo é que este reino do "simulacro", de especulação generalizada em que vivemos desde há alguns anos, tem consequências bem reais. Em vez de se opor ao real, é ele mesmo que o produz. Todos os dias lhe sentimos os efeitos...

O que fazemos nós, perante isso? Andamos preocupados com a questão de saber se o primeiro ministro fumou ou não fumou numa viagem que fez a Caracas e sentimo-nos confortados quando ele pede desculpa pelo facto.

Pequenas vitórias, imaginárias, de quem perdeu a capacidade de agir no real?

Fumo...

4.4.08

A fórmula do sucesso



Df= (M+P)/N
A onda "positivista" que varre o mundo, do "homem sem qualidades" (Musil), quantitativa e quantificável, tem em Portugal os seus representantes. Uma boa introdução é o livro do sr. Secretário de Estado da Educação, Valter Lemos, intitulado "O Critério do Sucesso", dissecado por Maria Filomena Mónica, num texto de que apresento, a seguir, alguns extractos, sem outro comentário:

"(...)
"Chegada aqui, deparei-me com uma problema: como saber o que pensa do mundo este senhor? Depois de buscas por caves e esconsos, descobri um livro seu, O Critério do Sucesso: Técnicas de Avaliação da Aprendizagem. Publicado em 1986, teve seis edições, o que pressupõe ter sido o mesmo aconselhado como leitura em vários cursos de Ciências da Educação. Logo na primeira página, notei que S. Excia era um lírico. Eis a epígrafe escolhida: "Quem mais conhece melhor ama." Afirmava seguidamente que, após a sua experiência como formador de professores, descobrira que estes não davam a devida importância ao rigor na "medição" da aprendizagem. Daí que tivesse decidido determinar a forma correcta como o docente deveria julgar os estudantes. Qualquer regra de bom senso é abandonada, a fim de dar lugar a normas pseudocientíficas, expressas num quadrado encimado por termos como "skill cognitivos". Navegando na maré pedagógica que tem avassalado as escolas, apresenta depois várias "grelhas de análise". Entre outras coisas, o docente teria de analisar se o aluno "interrompe o professor", se "não cumpre as tarefas em grupo" e se "ajuda os colegas". Apenas para dar um gostinho da sua linguagem, eis o que diz no subcapítulo "Diferencialidade": "Após a aplicação do teste e da sua correcção deverá, sempre que possível, ser realizado um trabalho que designamos por análise de itens e que consiste em determinar o índice de discriminação, [sic para a vírgula] e o grau de dificuldade, bem como a análise dos erros e omissões dos alunos. Trata-se portanto, [sic de novo] de determinar as características de diferencialidade do teste." Na página seguinte, dá-nos a fórmula para o cálculo do tal "índice de dificuldade e o de discriminação de cada item". É ela a seguinte: Df= (M+P)/N em que Df significa grau de dificuldade, N o número total de alunos de ambos os grupos, M o número de alunos do grupo melhor que responderam erradamente e P o número de alunos do grupo pior que responderam erradamente. O mais interessante vem no final, quando o actual secretário de Estado lamenta a existência de professores que criticam os programas como sendo grandes demais ou desadequados ao nível etário dos alunos. Na sua opinião, "tais afirmações escondem muitas vezes, [sic mais uma vez] verdades aparentemente óbvias e outras vezes "desculpas de mau pagador", sendo difícil apoiá-las ou contradizê-las por não existir avaliação de programas em Portugal". Para ele, a experiência dos milhares de professores que, por esse país fora, têm de aplicar, com esforço sobre-humano, os programas que o ministério inventa não tem importância. Não contente com a desvalorização do trabalho dos docentes, S. Excia decide bater-lhes: "Em certas escolas, após o fim das actividades lectivas, ouvem-se, por vezes, os professores dizer que lhes foi marcado serviço de estatística. Isto é dito com ar de quem tem, contra a sua vontade, de ir desempenhar mais uma tarefa burocrática que nada lhe diz. Ora, tal trabalho, [sic de novo] não deve ser de modo nenhum somente um trabalho de estatística, mas sim um verdadeiro trabalho de investigação, usando a avaliação institucional e programática do ano findo." O sábio pedagógico-burocrático dixit. O que sobressai deste arrazoado é a convicção de que os professores deveriam ser meros autómatos destinados a aplicar regras. Com responsáveis destes à frente do Ministério da Educação, não admira que, em Portugal, a taxa de insucesso escolar seja a mais elevada da Europa. Valter Lemos reúne o pior de três mundos: o universo dos pedagogos que, provindo das chamadas "ciências exactas", não têm uma ideia do que sejam as humanidades, o mundo totalitário criado pelas Ciências da Educação e a nomenklatura tecnocrática que rodeia o primeiro-ministro." (Maria Filomena Mónica)

18.3.08

Aquiles e a tartaruga

Segundo o velho pensador Zenão de Eleia, num dos seus famosos paradoxos, o mais rápido corredor da Grécia, Aquiles, jamais poderia alçançar um animal tão lento como a tartaruga.

O seu argumento para tão inverosímil conclusão era o seguinte: Aquiles nunca poderia alçançar a tartaruga, porque na altura em que atingisse o ponto de onde a tartaruga partira, ela ter-se-ia deslocado para outro ponto; na altura em que alçançasse esse segundo ponto, ela ter-se-ia deslocado de novo; e assim sucessivamente ad infinitum (Kirk e Raven).

Independentemente das explicações matemáticas para semelhante paradoxo (e é verdade que matemáticos famosos lhe dedicaram a atenção), interessa-me a teoria do espaço que está aqui implícita: a de que ele é infinitamente divisível. Ou seja, entre um ponto A e um ponto B, há uma tal infinidade de pontos, de passos, de distâncias... que, no limite, não há movimento. É esse, aliás, o objectivo de Zenão: demonstrar que todo o movimento é ilusório.
O actual modelo de avaliação dos professores (ensinos básico e secundário) é de tal forma "burocratizado", implicando uma infinidade de pontos, passos, distâncias, procedimentos, normas... para chegar ao ponto B (se chamarmos assim ao ensino-aprendizagem) que se revela uma perfeita demonstração do paradoxo de Zenão: mesmo quando parece que se está a mexer, que se corre muito de um lado para o outro, o que existe, na prática, é a imobilidade.

A burocracia imobiliza o desejo. Onde medra a norma, a ética definha.

E, no entanto, para alguns, trata-se apenas de transpor o limiar do ADMIRÁVEL MUNDO NOVO.




6.3.08

Música ambiente

Ela: "Como consegues estar em casa sem música?"

Eu: "Desligo o rádio para ouvir... a música ambiente".

É verdade que sem música, como dizia Niezsche, a vida seria insuportável. O que acontece é que nos habituámos de tal forma à música "instrumental" que nos esquecemos de que a própria natureza nos "dá" música. Claro: nós damos-lhe o ouvido e a predisposição.

Há momentos em que me canso de ouvir Mozart(eu que gosto tanto de Mozart), de ouvir Bach(mesmo que me encha a alma) ou até Messiaen (que procurou imitar o canto dos pássaros).

Há momentos em que prefiro mesmo ouvir os pássaros. Se não não há pássaros em volta, oiço o vento que brisa ou que sopra. Nestes últimos dias, o vento tem soprado muito. Se não há vento, há outros ruídos. O mundo está cheio de sons e ruídos diversos.

Como o carteiro de Pablo Neruda, que "colheu", da natureza, alguns sons para enviar ao poeta, ou John Cage, que fez silêncio por alguns minutos, para que se ouvisse o som ambiente, ou Erik Satie, que elevou o "intervalo" à dignidade da música... eu desligo, às vezes, o rádio ou o CD para escutar a música ambiente.

E não me refiro, como é óbvio, à música criada com esse nome, a qual é apenas uma tela a mais, encobridora, para que não possamos escutar... a verdadeira música ambiente.

Claro que, outras vezes, também me canso da música ambiente...

29.2.08

Professores sem qualidade

Tem havido, no discurso sobre a a avaliação do desempenho dos professores, uma insistência no "mérito". O mérito é uma "qualidade".

Acontece, porém, que vivemos hoje na era do "homem sem qualidades", para usar a expressão que deu título ao famoso romance de Robert Musil: um romance a que o escritor dedicou quase 30 anos de sua vida e que ficou inacabado.

O Homem sem qualidades é a alegoria da modernidade: o triunfo da razão numérica, a tentativa de reduzir a complexidade do real ao matema.

Quando se pretende casar o matema (sem qualidade) com o mérito (uma qualidade), o resultado é a"retórica da avaliação": só têm qualidade aqueles que preencherem determinados parâmetros quantitativos.

A consequência (previsível) é o imobilismo burocrático: a morte do desejo. À "histerização" dos professores (que se queixam cada vez mais), vai suceder - se me permitem o termo - uma "obsessivação".

Numa completa alienação ao pedido e à exigência do Outro (esmagados pela máquina burocrática da avaliação), os professores vão esquecer o desejo que os move: ensinar.

Mas que desejo é esse?

2.2.08

As teias da lei

A Propósito de algumas críticas que têm surgido de vários quadrantes relativamente à actuação da ASAE, a resposta tem sido, de uma forma geral, a seguinte: "limitamo-nos a fazer cumprir a lei".

Fazer cumprir a lei e legislar profusamente (veja-se, por exemplo, o furor legislativo que tem inundado, nos últimos tempos, como um autêntico dilúvio, a educação, designadamente no que concerne à avaliação dos professores) parecem ser uma clara aposta deste governo.

A lei é uma forma de lidar com os excessos do real: ordenando-os, limitando-os, confinando-os, uniformizando-os, normalizando-os. Como todos os mantos, ela não cobre todo o real e deixa sempre algo a descoberto. Por isso, é necessário continuar a legislar cada vez com maior intensidade e desaforo: remendando, acrescentando, corrigindo, adendando...até à exaustão

A tal ponto que, a certa altura, somos levados a perguntar se a lei, em vez de limitar ou reduzir os excessos do real, não será ela mema o próprio excesso, o excesso fundamental...

Eis onde o direito confina com a psicanálise.

10.1.08

Dualismos

Parece que no seguimento de um conjunto de escândalos que têm abalado nos últimos tempos o meio financeiro português, em particular no domínio dos grandes bancos, a questão se coloca cada vez mais em termos de uma lógica dual do tipo: ou eu ou tu.

"Luta de puro prestígio", como diria Hegel, trata-se de saber quem detém os cordelinhos do poder: se a"Opus Dei" ou a "Maçonaria".

Não andamos todos um poucos fartos deste jogo do tipo Benfica-Sporting? Desta matemática simplista que começa e acaba no número dois?

É preciso aprender a contar a partir do número três. A saber, usando as mesmas cordas, dar outros nós.

8.1.08

Dar tempo ao tempo

Há uma experiência mais ou menos trivial, a que tive a ocasião de assistir ainda recentemente, que consiste no seguinte: alguém faz uma pergunta a uma criança e, se ela não responde logo e com presteza, fazendo por assim dizer um compasso de espera (que bonita expressão para medir o incomensurável do tempo!), os adultos - ou alguns adultos, para ser justo - apressam-se a responder por ela, como se não suportassem aquele momento de silêncio, de vazio, que faz ex-sistir o tempo enquanto...tempo.

Na verdade, é ainda o "horror do vazio", da não resposta, do silêncio o que angustia aqui estes adultos. O silêncio faz surgir um sujeito não completamente objectivável (por exemplo a criança que não responde logo), mas que gostaríamos de reduzir a um objecto (um alter ego nosso, que falasse como nós, segundo o mesmo compasso).

Não é tanto o silêncio dos espaços infinitos, como diria Pascal, o que aí nos incomoda, mas a possibilidade de que esse silêncio fale, por assim dizer, que diga algo...que não gostaríamos de ouvir. O silêncio incomoda porque ele, em vez de ser uma ausência de fala, é uma das suas formas mais eloquentes. Só aquele que tem o dom da fala, tem, igualmente, o dom do silêncio.

Experimentemos, então, não encher apressadamente o vazio que o silêncio cava no tempo. Demos tempo...ao tempo! E, já agora, às crianças que não respondem logo e traçam um compasso de espera...