Pelo segundo ano consecutivo, desloquei-me a Curitiba, a capital do Paraná (Brasil), a pretexto das V Jornadas de Direito e Psicanálise, promovidas pelo Núcleo de Direito e Psicanálise da Universidade Federal do Paraná.
Cada uma das jornadas anteriores teve como "objecto-pretexto" uma obra de um grande autor da literatura universal (por exemplo, "O Processo", de Kafka ou "O Mercador de Veneza", de Shakespeare). Este ano, o cenário mudou, tendo sido escolhido o livro de um autor "menor", ainda que constitua um verdadeiro sucesso de vendas a nível mundial. Evidentemente, o sucesso comercial não garante a profundidade ou a qualidade intrínseca de uma obra; caso contrário, o Segredo" (The Secret) seria garantidamente uma das maiores obras de sempre. Mesmo se a espécie humana gosta de alimentar e correr atrás de segredos - não só os de Fátima! - é claro que uma tal conclusão seria ilegítima.
Porém, como ensinou Duchamp, até certo ponto o "objecto", qualquer que ele seja, acaba por ser indiferente. Muita coisa interessante tem sido dita (e escrita) sobre o fenómeno que constitui o Segredo, por exemplo; da mesma forma, o autor e a obra, aparentemente menores, deste ano não impediram que se tivesse assistido, em Curitiba, a um trabalho de excelente qualidade, em nada inferior àquele em que tive o prazer de colaborar no último ano.
O título original do romance, The Kite Runner, foi vertido diferentemente para o português falado no Brasil e em Portugal: enquanto os brasileiros o traduziram por Caçador de Pipas (o que não deixou de provocar-me o riso, pois imaginava alguém caçando "pipas" de vinho), os portugueses, menos fiéis à letra (quem sabe se devido ao "espírito" do vinho!) optaram por um título inócuo: "O Menino de Cabul". Na realidade, ambos estão certos, na medida em nenhum está certo: quer sejam "pipas" (como dizem os brasileiros) ou "papagaios de papel" (como dizemos nós) são apenas "modos de dizer" a coisa, sem nome, de que se trata.
Numa altura em que se tenta fazer mais um acordo ortográfico, é bom saber que o desacordo não é apenas (orto)gráfico, mas também sintáctico, semântico e pragmático. A língua é um animal vivo que não se mata por decreto. De um modo ou de outro, nas suas imensas veredas, labirintos ou linhas de fuga, todos os que falam a "língua portuguesa" vão continuar a divergir, trilhando novas sonoridades e novos caminhos. Isto enquanto uma outra língua qualquer (o inglês?) não matar todas as outras. Só "o amor da língua" (Milner) poderá salvá-la do aniquilamento. Quer seja no português de aquém ou de além mar, amemos, por isso, a língua, como a nós mesmos. Não falar (ou não ser falado) é deixar de existir.
2 comentários:
A propósito do acordo, Saramago disse em entrevista ao programa "Diga lá Excelência", mais ao menos, isto: "compreendo a necessidade(deste acordo)embora me vá ser difícil habituar. Mas ao longo da minha vida passei por vários acordos. Aprendi a escrever mãi e depois passou a ser mãe. Felizmente, para mim, ela continuou a ser a mesma."
E pronto, está tudo dito.
Ou quase...
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