As palavras não são as coisas e por isso movem-se e deslizam, prendem-se e desprendem-se umas às outras, criando, nessa movimento, novos efeitos de sentido.
O sentido flutua como um barco de papel à flor da água - como se dizia do espírito de Deus no livro do Génesis - arriscando naufragar, imergir a cada momento.
Tal como o barco de papel, o sentido é impulsionado pelo vento do uso ( e do abuso), mudando a cada instante de direcção. (Perdão: eu quis dizer: direção!)
Basta, por vezes, o bater de asas de uma borboleta, algures, para que chovam aqui novos efeitos de sentido. E toda a vida muda. Um simples bater de asas de um novo sentido pode fazer tremer a vida toda. (Perdão: eu deveria dizer não-toda, pois a vida toda é sonho de idiota; mas eu, como homem, sou também meio idiota, não? Li certa vez um livro que tinha o sugestivo título: História de um idiota contada por ele mesmo. Félix de Azúa. Um homem, por sinal. Mas além de idiota, eu não sou normal.)
O governo (em sintonia com grande parte da oposição) prepara-se para aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. É normal. Todos os ventos que sopram, de um lado e do outro, parecem estar em sintonia: é a evolução normal das coisas. Aliás, em consonância com o inconsciente freudiano - quem diria - que desconhece o Outro sexo.
Em jeito de piada, poderíamos actualizar uma velha frase de Louise Vilmorin: hoje em dia, já só os padres querem casar-se. E os homossexuais, diríamos nós!
E é normal, pois se não fossem os padres e os homossexuais, o que seria da velha e sagrada instituição do casamento com tantos divórcios e separações entre os demais?
Talvez porque as mulheres já não fiquem em casa, ou já não queiram simplesmente cuidar dos filhos ou dos maridos...como filhos. E é normal. Elas têm o mesmo direito de ir à guerra, à luta...política. É normal a igualdade. É normal a paridade, como agora se diz. Se elas não querem, obrigam-se...em nome da igualdade e da paridade, como se vê nos parlamentos nacional ou comunitário. (Espero que em nome da paridade não obriguem os homens a parir, se bem que o cinema já tenha explorado essa via).
Tudo muda. As escolas deixaram de ensinar e os alunos de aprender. O que é mais normal (mais regular) é encontrar hoje em dia cursos irregulares nas escolas. E é normal que assim seja. Se tudo muda, porque haveriam as escolas de ficar paradas?
Quando vou almoçar ao restaurante com colegas ou amigos e peço um café...normal, todos se riem de mim. O que é isso, um café normal? Se o empregado diz, um café? - todos respondem: sim, uma café cheio, a escaldar, curto, pingado, abatanado..., e eu digo simplesmente, desconsoladamente: um café normal! Já me aconteceu o empregado ficar de cabeça "abatanada" a olhar para mim, como se não tivesse bem a certeza do que eu estava a pedir.
Um bater de asas... e o sentido já não é o mesmo. O que era claro, anoitece; o que estava à superfície da corrente, submerge; o que era firme, torna-se inseguro.
E é normal!
Só eu, que teimo em pedir um café normal, decididamente não sou normal.
Será normal?
20.11.09
2.11.09
Caim
O Plano de leitura, em relação ao qual Saramago se mostrou, desde o princípio, bastante céptico, permitiu concluir o que já todos sabiam: os portugueses lêem pouco, muito pouco, quase nada. Porém, tal não os impede de falar de quase tudo e - quem diria - até dos próprios livros...que não leram. É o caso do último livro de Saramago: "Caim". A rádio, os jornais, a televisão...têm dado uma cobertura massiva à polémica em torno deste livro.
Caim está para o Antigo Testamento como O Evangelho Segundo Jesus Cristo estava para o Novo. Se num caso se tratava de humanizar o Filho do Homem, escovando-o de toda e qualquer divindade, agora trata-se de ajustar as contas com o próprio Deus, bem como com todos os demais nomes do Pai, dos Patriarcas sem vergonha da humanidade (Adão, Noé, Abraão, Moisés...) que estão dispostos, se for preciso, a sacrificar os seus próprios filhos ou o seu próprio povo para satisfazer a cruel e obscena Vontade de Deus.
Caim vai percorrendo os diversos cenários em que decorrem tais episódios bíblicos graças a uma engenhosa estratégia narrativa que consiste, por assim dizer, em "espacializar" o tempo, como se os diferentes momentos que o tecem (o antes, o depois) fossem compossíveis, isto é, pudessem coexistir ao mesmo tempo. Caim limita-se, por isso, a errar entre os diversos lugares (e momentos) célebres do Antigo Testamento como se errasse apenas entre vários "presentes".
Por meio de semelhante estratégia, o narrador vai revelando, passo a passo e de forma cada vez mais radical, sem meias tintas ou contenção nas palavras, o avesso da "história oficial". Tal propósito não deixa, aliás, de estar em consonância com toda a obra de Saramago: tratou-se sempre de dar voz (por meio do romance, do ensaio ou do ensaio de romance) e de tomar partido pelos que foram, de uma forma ou de outra, esmagados, derrubados ou excluídos pela história oficial. A função da escrita consiste, neste caso, em reescrever a história de modo a permitir que a estrutura de ficção em que esta assenta não abafe por completo o seu núcleo de verdade ou o seu grão de real.
Caim não se deixa iludir ou enganar pela dignidade ou respeitabilidade (suposta) dos nomes do Pai consagrados pela tradição bíblica. Ele sabe que há um gozo, um proveito ou usufruto por detrás dessa suposta dignidade ou respeitabilidade. Talvez por isso ele seja condenado a errar, condenado à errância. Eis por que ele nutre uma raiva, um ódio de morte ao próprio Deus. No limite, tudo o que ele faz poderia resumir-se numa única frase: "tentativas para matar o próprio deus".
Caim vai-nos sendo apresentado como um grande copulador, alguém sem problemas de erecção, que está sempre pronto para satisfazer o desejo sexual de toda e qualquer mulher, desde a mais exigente, Lilith, até às noras ou à mulher do próprio Noé. E tudo isto com a estranha condescendência de Noé e do próprio Deus, uma vez que é preciso procriar, crescer e multiplicar-se. Mas é nesta parte que a história vai ficando subitamente mais clara: em última análise, o alvo da pulsão que move Caim - também ele "levantado do chão" para onde a escolha absurda de Deus, preferindo a oferenda do seu irmão Abel, o havia escorraçado - é outro, como se quisesse f. o próprio Deus na impossibilidade de o matar.
Este é um livro que tem o ódio como personagem principal. Não é Caim (o protagonista do romance) ou o próprio Deus (judaico-cristão), mas o ódio. E uma pergunta nos fica (pelo menos a mim me ficou): a quem se endereça este ódio se Deus está morto, ou se morreu há muito tempo, tanto no dizer de Nietzsche como do próprio Saramago, ateu convicto.
A não ser que o ódio, como dizia Freud algures, não seja exactamente o contrário do amor (pois o contrário do amor é a indiferença), mas a sua continuação por outros meios. Se José Saramago abdicou de acreditar em Deus, não deixou de servir-se dele como sintoma. Deus é um dos nomes do sintoma...de Saramago, o seu amoródio por excelência: algo sobre o qual não cessou jamais de falar, de escrever, de discutir - "pois a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuam a discutir e a discutir estão ainda".
Com muito humor, é certo, mesmo se o assunto não lhe tem dado, até agora, grande vontade de rir
Caim está para o Antigo Testamento como O Evangelho Segundo Jesus Cristo estava para o Novo. Se num caso se tratava de humanizar o Filho do Homem, escovando-o de toda e qualquer divindade, agora trata-se de ajustar as contas com o próprio Deus, bem como com todos os demais nomes do Pai, dos Patriarcas sem vergonha da humanidade (Adão, Noé, Abraão, Moisés...) que estão dispostos, se for preciso, a sacrificar os seus próprios filhos ou o seu próprio povo para satisfazer a cruel e obscena Vontade de Deus.
Caim vai percorrendo os diversos cenários em que decorrem tais episódios bíblicos graças a uma engenhosa estratégia narrativa que consiste, por assim dizer, em "espacializar" o tempo, como se os diferentes momentos que o tecem (o antes, o depois) fossem compossíveis, isto é, pudessem coexistir ao mesmo tempo. Caim limita-se, por isso, a errar entre os diversos lugares (e momentos) célebres do Antigo Testamento como se errasse apenas entre vários "presentes".
Por meio de semelhante estratégia, o narrador vai revelando, passo a passo e de forma cada vez mais radical, sem meias tintas ou contenção nas palavras, o avesso da "história oficial". Tal propósito não deixa, aliás, de estar em consonância com toda a obra de Saramago: tratou-se sempre de dar voz (por meio do romance, do ensaio ou do ensaio de romance) e de tomar partido pelos que foram, de uma forma ou de outra, esmagados, derrubados ou excluídos pela história oficial. A função da escrita consiste, neste caso, em reescrever a história de modo a permitir que a estrutura de ficção em que esta assenta não abafe por completo o seu núcleo de verdade ou o seu grão de real.
Caim não se deixa iludir ou enganar pela dignidade ou respeitabilidade (suposta) dos nomes do Pai consagrados pela tradição bíblica. Ele sabe que há um gozo, um proveito ou usufruto por detrás dessa suposta dignidade ou respeitabilidade. Talvez por isso ele seja condenado a errar, condenado à errância. Eis por que ele nutre uma raiva, um ódio de morte ao próprio Deus. No limite, tudo o que ele faz poderia resumir-se numa única frase: "tentativas para matar o próprio deus".
Caim vai-nos sendo apresentado como um grande copulador, alguém sem problemas de erecção, que está sempre pronto para satisfazer o desejo sexual de toda e qualquer mulher, desde a mais exigente, Lilith, até às noras ou à mulher do próprio Noé. E tudo isto com a estranha condescendência de Noé e do próprio Deus, uma vez que é preciso procriar, crescer e multiplicar-se. Mas é nesta parte que a história vai ficando subitamente mais clara: em última análise, o alvo da pulsão que move Caim - também ele "levantado do chão" para onde a escolha absurda de Deus, preferindo a oferenda do seu irmão Abel, o havia escorraçado - é outro, como se quisesse f. o próprio Deus na impossibilidade de o matar.
Este é um livro que tem o ódio como personagem principal. Não é Caim (o protagonista do romance) ou o próprio Deus (judaico-cristão), mas o ódio. E uma pergunta nos fica (pelo menos a mim me ficou): a quem se endereça este ódio se Deus está morto, ou se morreu há muito tempo, tanto no dizer de Nietzsche como do próprio Saramago, ateu convicto.
A não ser que o ódio, como dizia Freud algures, não seja exactamente o contrário do amor (pois o contrário do amor é a indiferença), mas a sua continuação por outros meios. Se José Saramago abdicou de acreditar em Deus, não deixou de servir-se dele como sintoma. Deus é um dos nomes do sintoma...de Saramago, o seu amoródio por excelência: algo sobre o qual não cessou jamais de falar, de escrever, de discutir - "pois a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuam a discutir e a discutir estão ainda".
Com muito humor, é certo, mesmo se o assunto não lhe tem dado, até agora, grande vontade de rir
8.10.09
A era do pânico
Para além dessa coisa mais ou menos viscosa, fluída e onde cabe tudo, a que se convencionou chamar - vá-se lá saber porquê! - New Age, o que caracteriza realmente a nossa época?
Desde há vários meses, quase não se tem ouvido falar de outra coisa (salvo algumas anedotas protagonizadas pelos mais ilustres representantes da nação, da direita à esquerda): VEM AÍ A GRIPE A!
Talvez seja a falta de assunto mais relevante (pois o futebol já não desfralda bandeiras como outrora) que eleve a uma tal dignidade algo que não passa, no dizer de algumas conceituadas vozes, de uma "gripe banal".
Em Portugal, onde a verdadeira tragédia não resulta de não se lavar suficientemente as mãos - visto que passamos a vida a lavar as mãos disto e daquilo - mas de como nos (mal) conduzimos na estrada e na vida, há coisas sobre as quais o excesso de informação lança um pesado manto de silêncio.
É verdade que não se trata de um mal exclusivamente nosso. Na era da informação global, o espaço e o tempo estreitaram-se de tal modo que ficaram reduzidos à espessura de um instante: ao mesmo tempo e em toda a parte, como um deus ao contrário, o mundo inteiro ameaça cair sobre nós, esmagando-nos.
Porém, o excesso de informação não gera mais conhecimento (mesmo que se fale muito da sociedade da informação e do conhecimento, como se fossem termos equivalentes), mas gera mais pânico.
Na verdade, cada vez que ligamos a rádio ou a televisão, por exemplo, somos bombardeados pelos mais diversos cataclismos que sucedem um pouco por toda a parte no mundo. A era da informação "concentrou", por assim dizer, na dimensão do ponto e na espessura do instante o que estava outrora disperso pelos mais variados lugares do espaço e momentos do tempo. Agora, o mundo inteiro, o universo inteiro, com suas permanentes colisões ou cataclismos, cai todo sobre nós de uma só vez.
Por outro lado - e contrariamente ao que pensam ou afirmam alguns - talvez deste excesso quotidiano de informação em torno da gripe A (é um exemplo) não saiam comportamentos mais "cuidadosos", mas antes uma nova e resistente indiferença. Com efeito, falar demasiado numa coisa, segundo um modelo de fala cada vez mais "vazio", como um disco que gira e repete sempre a mesma música, não "inscreve" necessariamente um acontecimento, mas pode até, pelo contrário, gerar mais e mais indiferença.
O que vale, apesar de tudo, é que não faltarão novos fármacos e terapias diversas para combater o pânico. Haverá também um fármaco ou uma vacina contra a indiferença?
Desde há vários meses, quase não se tem ouvido falar de outra coisa (salvo algumas anedotas protagonizadas pelos mais ilustres representantes da nação, da direita à esquerda): VEM AÍ A GRIPE A!
Talvez seja a falta de assunto mais relevante (pois o futebol já não desfralda bandeiras como outrora) que eleve a uma tal dignidade algo que não passa, no dizer de algumas conceituadas vozes, de uma "gripe banal".
Em Portugal, onde a verdadeira tragédia não resulta de não se lavar suficientemente as mãos - visto que passamos a vida a lavar as mãos disto e daquilo - mas de como nos (mal) conduzimos na estrada e na vida, há coisas sobre as quais o excesso de informação lança um pesado manto de silêncio.
É verdade que não se trata de um mal exclusivamente nosso. Na era da informação global, o espaço e o tempo estreitaram-se de tal modo que ficaram reduzidos à espessura de um instante: ao mesmo tempo e em toda a parte, como um deus ao contrário, o mundo inteiro ameaça cair sobre nós, esmagando-nos.
Porém, o excesso de informação não gera mais conhecimento (mesmo que se fale muito da sociedade da informação e do conhecimento, como se fossem termos equivalentes), mas gera mais pânico.
Na verdade, cada vez que ligamos a rádio ou a televisão, por exemplo, somos bombardeados pelos mais diversos cataclismos que sucedem um pouco por toda a parte no mundo. A era da informação "concentrou", por assim dizer, na dimensão do ponto e na espessura do instante o que estava outrora disperso pelos mais variados lugares do espaço e momentos do tempo. Agora, o mundo inteiro, o universo inteiro, com suas permanentes colisões ou cataclismos, cai todo sobre nós de uma só vez.
Por outro lado - e contrariamente ao que pensam ou afirmam alguns - talvez deste excesso quotidiano de informação em torno da gripe A (é um exemplo) não saiam comportamentos mais "cuidadosos", mas antes uma nova e resistente indiferença. Com efeito, falar demasiado numa coisa, segundo um modelo de fala cada vez mais "vazio", como um disco que gira e repete sempre a mesma música, não "inscreve" necessariamente um acontecimento, mas pode até, pelo contrário, gerar mais e mais indiferença.
O que vale, apesar de tudo, é que não faltarão novos fármacos e terapias diversas para combater o pânico. Haverá também um fármaco ou uma vacina contra a indiferença?
4.10.09
Nos confins da modernidade
Foi graças ao fotógrafo contemporâneo Hans Sylvester - um alemão vivendo no sul de França e que fez a opção pelo "livro" em detrimento das galerias de arte - que estas imagens nos chegaram dos confins da civilização: uma "primitiva" tribo africana que habita as margens do Omo, um rio que atravessa a Etiópia, o Sudão e o Quénia e que faz uma arte nada "primitiva".
Contrariamente à ciência e à tecnologia, que evoluem de forma clara e irreversível, fazendo naufragar as velhas teorias, procedimentos e visões do mundo, na arte não há "evolução"; pelo menos, no mesmo sentido.
É por isso que muitos artistas contemporâneos se sentiram - e continuam a sentir - atraídos por esta arte, pelo saber fazer das tribos ditas "primitivas". É que, efectivamente, mesmo sem entrarem no rio da modernidade, elas já se banham em águas da mais pura vanguarda.
Contrariamente à ciência e à tecnologia, que evoluem de forma clara e irreversível, fazendo naufragar as velhas teorias, procedimentos e visões do mundo, na arte não há "evolução"; pelo menos, no mesmo sentido.
É por isso que muitos artistas contemporâneos se sentiram - e continuam a sentir - atraídos por esta arte, pelo saber fazer das tribos ditas "primitivas". É que, efectivamente, mesmo sem entrarem no rio da modernidade, elas já se banham em águas da mais pura vanguarda.
29.9.09
Soltar ou prender a língua?
Um pequeno artigo que tive a oportunidade de ler no último número do jornal Expresso (25 de Setembro, p. 44) chamou-me a atenção para um ensaio de Lera Boroditsky, investigadora e professora de psicologia e neurociência da Universidade de Stanford, intitulado: How Does Our Language Shape the Way We Think.
Nesse artigo, a investigadora referida demonstra que as pessoas que falam diferentes línguas pensam diferentemente. A língua afecta não só o pensamento, mas também a forma como vemos o mundo ou vivemos as nossas vidas.
Se a tese não é propriamente nova, pois já a "hipótese Sapir-Whorf" havia trilhado essa via, ela tem, não obstante, um interesse redobrado: não só porque, vindo de onde vem, possui uma consistência científica que lhe dá credibilidade, mas igualmente porque, vinda de onde vem, acaba por lançar uma nova acha para a fogueira da controvérsia que opõe aqueles que defendem a "primazia da linguagem" (Heidegger, Lacan...) e aqueles (Damásio, por exemplo) que a "secundarizam", como se esta fosse apenas um epifenómeno relativamente ao pensamento, às imagens ou aos mapas neurais.
O artigo do Expresso, por outro lado, não deixa de ter um redobrado e paradoxal interesse: é que, depois de falar de um ensaio em que é defendido o carácter determinante da língua no modo como pensamos, ele acaba por concluir o seguinte: "Por isso, todos -médicos, investigadores, cientistas, universidades, empresários, investidores e políticos - devem falar a mesma língua; a da inovação , empreendedorismo, motivação, produtividade. Portugal e a Europa beneficiarão desta qualidade."
Falar a mesma língua significa, neste contexto, pensar da mesma maneira, ou de uma maneira só. Sem alteridade.
Não é isto o que justifica que um dia depois, no seguimento do resultado de umas eleições em que o povo, soberanamente, decidiu que não queria que se falasse uma só língua no parlamento (para não se pensar de uma maneira só), algumas vozes se ergueram para dizer que vinha aí o caos, o perigo da ingovernabilidade, e que era porventura trágico o cenário que se avizinhava?
Será que o luto do salazarismo não cessa de não se efectuar entre nós? Que o "ritual" da celebração do 25 de Abril, ano após ano, como tem relembrado José Gil, não passa de uma forma vazia, de um faz de conta, de um puro simulacro?
Quando falamos uma só língua, podemos entender-nos melhor, mas aquilo que dizemos é mais pobre, mesmo que aumente a produtividade.
Um dia - lá chegaremos! - há-de falar-se na Europa (quiçá no mundo) uma só língua, pois falar várias línguas custa muito dinheiro, é improdutivo e gera um sem número de mal-entendidos.
Mas que será de nós, então, repetindo, em eco, banalidades ou meras tautologias?
Nesse artigo, a investigadora referida demonstra que as pessoas que falam diferentes línguas pensam diferentemente. A língua afecta não só o pensamento, mas também a forma como vemos o mundo ou vivemos as nossas vidas.
Se a tese não é propriamente nova, pois já a "hipótese Sapir-Whorf" havia trilhado essa via, ela tem, não obstante, um interesse redobrado: não só porque, vindo de onde vem, possui uma consistência científica que lhe dá credibilidade, mas igualmente porque, vinda de onde vem, acaba por lançar uma nova acha para a fogueira da controvérsia que opõe aqueles que defendem a "primazia da linguagem" (Heidegger, Lacan...) e aqueles (Damásio, por exemplo) que a "secundarizam", como se esta fosse apenas um epifenómeno relativamente ao pensamento, às imagens ou aos mapas neurais.
O artigo do Expresso, por outro lado, não deixa de ter um redobrado e paradoxal interesse: é que, depois de falar de um ensaio em que é defendido o carácter determinante da língua no modo como pensamos, ele acaba por concluir o seguinte: "Por isso, todos -médicos, investigadores, cientistas, universidades, empresários, investidores e políticos - devem falar a mesma língua; a da inovação , empreendedorismo, motivação, produtividade. Portugal e a Europa beneficiarão desta qualidade."
Falar a mesma língua significa, neste contexto, pensar da mesma maneira, ou de uma maneira só. Sem alteridade.
Não é isto o que justifica que um dia depois, no seguimento do resultado de umas eleições em que o povo, soberanamente, decidiu que não queria que se falasse uma só língua no parlamento (para não se pensar de uma maneira só), algumas vozes se ergueram para dizer que vinha aí o caos, o perigo da ingovernabilidade, e que era porventura trágico o cenário que se avizinhava?
Será que o luto do salazarismo não cessa de não se efectuar entre nós? Que o "ritual" da celebração do 25 de Abril, ano após ano, como tem relembrado José Gil, não passa de uma forma vazia, de um faz de conta, de um puro simulacro?
Quando falamos uma só língua, podemos entender-nos melhor, mas aquilo que dizemos é mais pobre, mesmo que aumente a produtividade.
Um dia - lá chegaremos! - há-de falar-se na Europa (quiçá no mundo) uma só língua, pois falar várias línguas custa muito dinheiro, é improdutivo e gera um sem número de mal-entendidos.
Mas que será de nós, então, repetindo, em eco, banalidades ou meras tautologias?
10.9.09
Inventar conceitos
Segundo Deleuze, a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos (O que é a Filosofia?, p. 10).
Haverá um conceito que permita pensar Portugal e os portugueses sem cair no mero senso comum, na simples anedota (mesmo se espírito não nos falta para anedotar sobre nós próprios) ou numa qualquer "psicanálise mítica do destino portugês" (E. Lourenço)?
Para José Gil, deleuziano convicto, a resposta é o conceito que ele mesmo propôs no livro Portugal, hoje - O medo de existir (Relógio D'Água, 2004): " a não- inscrição". Segundo a tese avançada nesse livro, Portugal seria o país da não-inscrição. Um país onde nada "acontece" realmente, mesmo se sucede muita coisa, se há um falatório geral, constante e mediático sobre tudo e sobre nada. Todo o acontecimento é, por assim dizer, esvaziado de substância, de conteúdo, restando dele a mera forma vazia e sem consequências.
Poderíamos pensar este conceito de "não-inscrição", em termos psicanalíticos, como uma espécie de "branco" (ou de branca) inconsciente que irradia, por contágio, a tudo o que se diz ou se faz, retirando-lhe toda e qualquer carga ou eficácia reais. A razão nuclear desta brancura, da não-inscrição e "desnorte" que a mesma implica (Cf. Em busca da identidade - o desnorte, Relógio D'Água, 2009) deve-se , segundo José Gil, ao facto de os portugueses não terem feito o luto do salazarismo (ideia repetida no último nº da revista Ler, p. 24-27). Mais do que uma não-inscrição desse luto a nível simbólico, tratar-se-ia de uma verdadeira "forclusão" do (seu) real, de tal modo que não cessamos de ritualizar, de celebrar (simbolicamente) o enterro do salazarismo - como acontece todos os anos por altura do 25 de Abril -, mas tais rituais ou celebrações não passam hoje de meras caricaturas formais sem o mínimo alcance real.
Esta fractura, esquize ou divórcio cada vez maiores entre a forma e o conteúdo está bem patente num exemplo dado por José Gil no seu último livro Em Busca da Identidade - O desnorte; um exemplo, aliás, bem conhecido de todos os portugueses. Quando mais de 100 000 professores, por duas vezes consecutivas, se manifestaram nas ruas de Lisboa contra o modelo de avaliação que o governo pretendia impôr-lhes, este respondeu com silêncio e inacção, justificando-os com esta frase: "Estamos em democracia, toda a gente tem o direito de se manifestar. Que se manifestem à vontade. Mas temos também o direito de continuar a fazer o que fazemos."
José Gil explica esta frase e a atitude que lhe subjaz da seguinte forma: "Deixando intactos os meios de contestação mas fazendo desaparecer o seu alvo, desinscreve-os do real. É uma técnica de não-inscrição. Ao separar os meios do alvo, faz-se do protesto uma brincadeira de crianças, uma não-acção, uma acção não performativa. Esta reduz-se a um puro discurso contestatário, esvaziado do conteúdo real a que reenviava. (...) Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz a "desactivação da acção". É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica política, à maneira de certos processos priscóticos." (p. 55-56).
O próprio modelo de avaliação que este governo quis impor aos professores (e não só) é um exemplo bastante eloquente da não-inscrição como técnica, estratégia ou retórica política: tenta cobrir-se com um manto de papéis, de burocracia, de infindáveis normas e procedimentos formais (que nem a Kafka lembrariam) o grande vazio de ideias que alimenta esta máquina infernal.
Só que a avaliação não é um caso meramente português (como tem mostrado sobejamente Jacques-Alain Miller, desde 2004). Com ela, outras "linhas de fuga" nos percorrem (a Europa, a Globalização), algo que vem de "fora" e que é cada vez mais difícil ou impossível de reduzir a um "dentro" (a uma qualquer "identidade" só nossa), um vórtice impulsionado pelos discursos da ciência e do capitalismo que tudo arrastam, no seu imparável movimento, até à mais impessoal e completa "desterritorialização".
Pensar Portugal e os portugueses não será ainda, neste contexto, uma tentativa desesperada, narcísisca, de suster a respiração, por assim dizer, antes da queda na vertigem da Alteridade que aí vem, que já mora em nós? Não continuamos desta forma a querer ser portugueses antes de sermos homens?
1.9.09
O preço do gozo
O número hors-série da revista francesa "Le Point" (Julho-Agosto de 2009) é integralmente consagrado a um tema milenar e caro aos tempos que correm: a felicidade.
Sobre o tema da felicidade correram já rios de tinta ao longo do tempo: quer seja "a felicidade à antiga" (Platão, Aristóteles, Epicuro, Séneca, Cícero...), a "felicidade trágica dos modernos (Rousseau, Kant, Aldous Huxley ou Camus...) ou a visão ocidental ou oriental sobre a felicidade, o que é certo é que esta não deixou de constituir matéria de reflexão e, sobretudo, de digressão. Discorre-se em torno de algo que não há: uma fórmula, uma definição única. A tradução actual deste fenómeno é a proliferação de toda uma literatura (mais ou menos light) que arrisca fórmulas atrás de fórmulas.
O que é novo, hoje, na felicidade não é o tema, mas o enfoque: ela deixou de constituir uma aspiração, um desejo para transformar-se num dever, numa obrigação. É aquilo a que o conhecido escritor e filósofo Pascal Bruckner chama, num texto introdutório, "a tirania da felicidade" (pp. 7-9). Este é um tema, aliás, que o autor já desenvolvera em livros anteriores, nomeadamente: A Euforia perpétua - Ensaio sobre o dever de felicidade 2000).
É neste texto, dedicado à tirania da felicidade, que o autor fala de uma mudança ocorrida em meados do século XX, mas que não deixou de acentuar-se ao longo das décadas seguintes: o crédito.
A concessão de crédito implicou uma mudança na forma como o sujeito se relaciona com o tempo, mas também com o gozo: até então o sujeito, para gozar (de um bem) tinha de esforçar-se, trabalhar a fim de conseguir os meios que lhe permitiriam gozar um dia, mais tarde. A consequência é que a "realidade" ia adiando o "prazer", a hora de gozar, para um futuro cada vez mais longínquo e incerto. O gozo era assim relegado, na maior parte dos casos, para o domínio do sonho, da utopia, do além (mola, afinal, de muitas religiões).
Com o crédito, o cenário inverte-se: goza-se primeiro (a crédito) antes de pagar o respectivo preço. A consequência é que, em muitos casos, é impossível pagá-lo. O crédito é a outra face da dívida. A civilização do crédito gera cada vez mais "sobre-endividados" do gozo. Um gozo impossível de pagar, de transaccionar. Um gozo onde falta a moeda do desejo.
Será o desejo (aquele mesmo de que falava Sócrates no "Banquete" de Platão) o preço certo para o gozo?
Sobre o tema da felicidade correram já rios de tinta ao longo do tempo: quer seja "a felicidade à antiga" (Platão, Aristóteles, Epicuro, Séneca, Cícero...), a "felicidade trágica dos modernos (Rousseau, Kant, Aldous Huxley ou Camus...) ou a visão ocidental ou oriental sobre a felicidade, o que é certo é que esta não deixou de constituir matéria de reflexão e, sobretudo, de digressão. Discorre-se em torno de algo que não há: uma fórmula, uma definição única. A tradução actual deste fenómeno é a proliferação de toda uma literatura (mais ou menos light) que arrisca fórmulas atrás de fórmulas.
O que é novo, hoje, na felicidade não é o tema, mas o enfoque: ela deixou de constituir uma aspiração, um desejo para transformar-se num dever, numa obrigação. É aquilo a que o conhecido escritor e filósofo Pascal Bruckner chama, num texto introdutório, "a tirania da felicidade" (pp. 7-9). Este é um tema, aliás, que o autor já desenvolvera em livros anteriores, nomeadamente: A Euforia perpétua - Ensaio sobre o dever de felicidade 2000).
É neste texto, dedicado à tirania da felicidade, que o autor fala de uma mudança ocorrida em meados do século XX, mas que não deixou de acentuar-se ao longo das décadas seguintes: o crédito.
A concessão de crédito implicou uma mudança na forma como o sujeito se relaciona com o tempo, mas também com o gozo: até então o sujeito, para gozar (de um bem) tinha de esforçar-se, trabalhar a fim de conseguir os meios que lhe permitiriam gozar um dia, mais tarde. A consequência é que a "realidade" ia adiando o "prazer", a hora de gozar, para um futuro cada vez mais longínquo e incerto. O gozo era assim relegado, na maior parte dos casos, para o domínio do sonho, da utopia, do além (mola, afinal, de muitas religiões).
Com o crédito, o cenário inverte-se: goza-se primeiro (a crédito) antes de pagar o respectivo preço. A consequência é que, em muitos casos, é impossível pagá-lo. O crédito é a outra face da dívida. A civilização do crédito gera cada vez mais "sobre-endividados" do gozo. Um gozo impossível de pagar, de transaccionar. Um gozo onde falta a moeda do desejo.
Será o desejo (aquele mesmo de que falava Sócrates no "Banquete" de Platão) o preço certo para o gozo?
31.7.09
Olhar para outra coisa
Ver não é a mesma coisa que olhar. Os cegos, por exemplo, ainda que não possam ver, podem olhar.
O olhar não se detém; é errante por natureza. Não se fixa. Ver é fixar o olhar. Para onde se dirige, então, o olhar daquele que olha, atento ou indiferente ao que vê?
Tendo, há algum tempo atrás, de deslocar-me ao Norte de Portugal por razões do foro académico, aproveitei para respirar um pouco os ares de Guimarães. Nesta bela e tranquila cidade, berço da nação portuguesa, há um castelo, como sabemos.
Havia turistas que entravam, enquanto outros saíam do castelo. Os que entravam (na verdade eu só pude transpor o limiar da entrada, visto que a hora do encerramento se aproximava) subiam, quase sem excepção, para os parapeitos das muralhas, olhando a paisagem que ficava em redor do castelo.
É algo em que muitas vezes (e em muitos lugares) eu tenho pensado. Entramos num castelo, numa torre...simplesmente para olhar...o que está cá fora. O interior e o exterior, em vez de serem lugares opostos, são como que atados, con-torcidos ou enovelados pelo fio do nosso olhar.
Não é a coisa vista que nos move, mas o olhar (para outra coisa) que ela nos suscita. É assim, também, a natureza do desejo: um desejo de outra coisa.
O olhar não se detém; é errante por natureza. Não se fixa. Ver é fixar o olhar. Para onde se dirige, então, o olhar daquele que olha, atento ou indiferente ao que vê?
Tendo, há algum tempo atrás, de deslocar-me ao Norte de Portugal por razões do foro académico, aproveitei para respirar um pouco os ares de Guimarães. Nesta bela e tranquila cidade, berço da nação portuguesa, há um castelo, como sabemos.
Havia turistas que entravam, enquanto outros saíam do castelo. Os que entravam (na verdade eu só pude transpor o limiar da entrada, visto que a hora do encerramento se aproximava) subiam, quase sem excepção, para os parapeitos das muralhas, olhando a paisagem que ficava em redor do castelo.
É algo em que muitas vezes (e em muitos lugares) eu tenho pensado. Entramos num castelo, numa torre...simplesmente para olhar...o que está cá fora. O interior e o exterior, em vez de serem lugares opostos, são como que atados, con-torcidos ou enovelados pelo fio do nosso olhar.
Não é a coisa vista que nos move, mas o olhar (para outra coisa) que ela nos suscita. É assim, também, a natureza do desejo: um desejo de outra coisa.
21.7.09
O nariz de Michael Jackson
Como todo o artista (e homem!) que se preze, Michael Jackson era um poço de contradições: ao mesmo tempo que ganhava rios de dinheiro, morreu atolado em dívidas; enquanto o seu corpo se entregava ao martírio da transmutação (de um negro vivo para um branco cadavérico), à procura da mítica beleza ou harmonia entre a imaginação e a realidade, os seus "telediscos" exploravam constantemente a fealdade mais distorcida e excêntrica; ao mesmo tempo que foi obrigado a crescer demasiado depressa, por obra e graça da "fantasia" do pai, ficou condenado a viver na "terra do nunca" (Neverland), por obra e graça da sua própria fantasia.
Michael Jackson não gostava de ver-se ao espelho (diz algures) nem de falar: fazia-se ver, expondo-se. Fazia-se olhar.
O pai (que pai era este?) costumava dizer que não era o papá de ninguém, enquanto chicoteava com o cinto o primeiro dos filhos que se atrevesse a cometer a mais pequena falha na execução musical.
Ao mesmo tempo que dava como exemplo o trabalho de Michael (ponham os olhos nele!), o pai costumava zombar do seu nariz (feio e achatado).
De todas as metamorfoses a que foi progressivamente sujeito o corpo de Michael, talvez a mais espectacular se prenda com o nariz. Michael Jackson fez literalmente o contrário do que é hábito dizer às crianças: não mexam no nariz! De facto, ao longo da vida ele não fez outra coisa: mexer e remexer no nariz.
Ele odiava tanto o seu pai que às vezes chegava a vomitar. Consta que ele foi excluído do testamento de Michael. Mas não foi a sua vida toda (ou quase) movida por isso mesmo que ele parecia odiar tanto, em particular essa frase, essa frases vociferadas por esta autêntica père-version, como diriam os franceses?
O contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença. O pai de Michael Jackson era tudo menos indiferente para este.
Michael Jackson não gostava de ver-se ao espelho (diz algures) nem de falar: fazia-se ver, expondo-se. Fazia-se olhar.
O pai (que pai era este?) costumava dizer que não era o papá de ninguém, enquanto chicoteava com o cinto o primeiro dos filhos que se atrevesse a cometer a mais pequena falha na execução musical.
Ao mesmo tempo que dava como exemplo o trabalho de Michael (ponham os olhos nele!), o pai costumava zombar do seu nariz (feio e achatado).
De todas as metamorfoses a que foi progressivamente sujeito o corpo de Michael, talvez a mais espectacular se prenda com o nariz. Michael Jackson fez literalmente o contrário do que é hábito dizer às crianças: não mexam no nariz! De facto, ao longo da vida ele não fez outra coisa: mexer e remexer no nariz.
Ele odiava tanto o seu pai que às vezes chegava a vomitar. Consta que ele foi excluído do testamento de Michael. Mas não foi a sua vida toda (ou quase) movida por isso mesmo que ele parecia odiar tanto, em particular essa frase, essa frases vociferadas por esta autêntica père-version, como diriam os franceses?
O contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença. O pai de Michael Jackson era tudo menos indiferente para este.
18.6.09
Tele-novelas
Em Portugal (e provavelmente em muitos outros países) os telejornais duram que se fartam. Parecem infindáveis. Elevam à dignidade de acontecimento a mais pequena banalidade, o assunto mais irrisório.
Numa sociedade que se pretende absolutamente "transparente", em que todos e cada um são chamados a confessar, a expor, a devassar a intimidade uns dos outros, os telejornais seguem a maré.
Onde tudo vale o mesmo, nada tem valor. Onde se faz acontecimento de tudo, nas se inscreve ou deposita. Não há sedimentação, real, das palavras que se dizem, das imagens que se agitam.
Ao mesmo tempo - e estranhamente - há coisas sobre as quais nunca se fala, pesando sobre elas um grande silêncio. É como nos vastos hipermermercados que parecem ter um pouco de tudo, mas, se procurarmos bem, há coisas que pura e simplesmente nunca lá estão. E essas coisas são, porventura, o que faz falta...
Não é a cultura, hoje, um grande, vasto e muitas vezes entediante hipermercado de ideias-feitas? Talvez seja necessário actualizar o dicionário de Flaubert!
Numa sociedade que se pretende absolutamente "transparente", em que todos e cada um são chamados a confessar, a expor, a devassar a intimidade uns dos outros, os telejornais seguem a maré.
Onde tudo vale o mesmo, nada tem valor. Onde se faz acontecimento de tudo, nas se inscreve ou deposita. Não há sedimentação, real, das palavras que se dizem, das imagens que se agitam.
Ao mesmo tempo - e estranhamente - há coisas sobre as quais nunca se fala, pesando sobre elas um grande silêncio. É como nos vastos hipermermercados que parecem ter um pouco de tudo, mas, se procurarmos bem, há coisas que pura e simplesmente nunca lá estão. E essas coisas são, porventura, o que faz falta...
Não é a cultura, hoje, um grande, vasto e muitas vezes entediante hipermercado de ideias-feitas? Talvez seja necessário actualizar o dicionário de Flaubert!
1.6.09
Sobre-voos
Há quem diga: Filipe, há muito tempo que o teu blogue está parado!
É verdade, respondo, mas a razão principal é porque eu não estou. Tenho andado em movimento.
É conhecido o gosto do nosso querido poeta, Fernando Pessoa, pelo movimento imóvel, pela viagem parada ou o teatro estático.
Eu tenho, porém, andado em movimento num outro sentido, mais exterior: por exemplo, de Lisboa a Paris, onde escutei uma conferência "memorável" de Jacques-Alain Miller, não só por razões intrínsecas (que já bastariam), mas igualmente por razões extrínsecas. Com efeito, para ouvir até ao fim não apenas o que ele disse na sua conferência, mas igualmente os comentários que esta suscitou nos ouvintes, acabei por chegar um pouco atrasado ao aeroporto. A consequência foi a seguinte: o que disse Miller no final dessa manhã (10 de Maio), durante o Congresso da New Lacanian School/Nouvelle École Lacanienne, tornou-se, para mim, na fala mais cara de sempre.
Quando contava, a colegas e amigos, o que tinha acontecido, ocorreu-me dizer "MILLAIR-FRANCE": uma espécie de avião homofónico para sobrevoar, com algum humor, o in-suportável da coisa.
Outros movimentos mais recentes ocorreram, igualmente de avião: não para ouvir, desta vez, mas para falar. Ou melhor: ouvir e falar. Pelo terceiro ano consecutivo, fui convidado para ir ao Brasil, a Curitiba, falar nas Jornadas de Direito e Psicanálise, um acontecimento verdadeiramente empolgante não só pelo carácter inédito do trabalho que aí se realiza, mas também pelo ambiente, pela atmosfera que o rodeia.
Este ano, o que serviu de base à nossa reflexão foi um livro de Clarice Lispector (A Hora da Estrela), alguém que não cessou de escrever, de acercar-se do impossível de dizer por meio da escrita, mesmo se esta - como ela própria afirma na dedicatória do livro- lhe atrapalhava a vida.
Talvez, então, aquilo que nos "atrapalha" a vida não seja simplesmente para descartar ...
É verdade, respondo, mas a razão principal é porque eu não estou. Tenho andado em movimento.
É conhecido o gosto do nosso querido poeta, Fernando Pessoa, pelo movimento imóvel, pela viagem parada ou o teatro estático.
Eu tenho, porém, andado em movimento num outro sentido, mais exterior: por exemplo, de Lisboa a Paris, onde escutei uma conferência "memorável" de Jacques-Alain Miller, não só por razões intrínsecas (que já bastariam), mas igualmente por razões extrínsecas. Com efeito, para ouvir até ao fim não apenas o que ele disse na sua conferência, mas igualmente os comentários que esta suscitou nos ouvintes, acabei por chegar um pouco atrasado ao aeroporto. A consequência foi a seguinte: o que disse Miller no final dessa manhã (10 de Maio), durante o Congresso da New Lacanian School/Nouvelle École Lacanienne, tornou-se, para mim, na fala mais cara de sempre.
Quando contava, a colegas e amigos, o que tinha acontecido, ocorreu-me dizer "MILLAIR-FRANCE": uma espécie de avião homofónico para sobrevoar, com algum humor, o in-suportável da coisa.
Outros movimentos mais recentes ocorreram, igualmente de avião: não para ouvir, desta vez, mas para falar. Ou melhor: ouvir e falar. Pelo terceiro ano consecutivo, fui convidado para ir ao Brasil, a Curitiba, falar nas Jornadas de Direito e Psicanálise, um acontecimento verdadeiramente empolgante não só pelo carácter inédito do trabalho que aí se realiza, mas também pelo ambiente, pela atmosfera que o rodeia.
Este ano, o que serviu de base à nossa reflexão foi um livro de Clarice Lispector (A Hora da Estrela), alguém que não cessou de escrever, de acercar-se do impossível de dizer por meio da escrita, mesmo se esta - como ela própria afirma na dedicatória do livro- lhe atrapalhava a vida.
Talvez, então, aquilo que nos "atrapalha" a vida não seja simplesmente para descartar ...
14.4.09
Felicidade e contingência
Há cada vez mais livros (eventos, programas, workshops...) que se propõem revelar a fórmula ou a receita da felicidade. O princípio (quando a coisa é minimamente séria e não mera charlatanice) é que existe uma fórmula (ou um método) passível de ser transmitido de "mestre" a "discípulo", mas também que cada um de nós é ou pode tornar-se "digno" ou "merecedor" da felicidade.
É contra esta ideia (ingénua, absurda ou oportunista) que se insurge, por exemplo, o filósofo italiano Giorgio Agamben num pequeno texto intitulado "Magia e Felicidade". Segundo ele, a felicidade teria mais a ver com uma certa "magia", impossível de prever ou controlar, e que não resulta de qualquer espécie de prémio ou merecimento por um trabalho bem feito. A felicidade, quando acontece, tem algo de excessivo, fora da norma e perfeitamente contingente e inesperado.
Num lugar à beira rio, na cidade de Lisboa, há um bar com uma esplanada. Chama-se: À Margem. Como estava frio lá fora, decidimos ficar na parte de dentro daquela autêntica janela aberta para o rio Tejo.
Entretanto, começou a chover. O sol a pôr-se banhava o rio a jusante enquanto chuva, a montante, escurecia o seu lado oposto.
De súbito, os presentes soltam um "oh" de admiração, encaminhando-se mecanicamente, um após outro, em direcção à rua. Foi então que reparámos, com assombro, naquela verdadeira epifania: por entre a chuva e a luz, o céu envolto em nevoeiro e a dança das ondas, um arco-íris, de cores magistrais, re-pousava nas águas mesmo à nossa frente. E como se não bastasse, um segundo arco-íris, embora menos nítido, veio juntar-se ao primeiro.
Os elementos concertaram-se entre si para criar aquele momento de "magia". Saíram todos, felizes - e não só os que mereciam - de telemóvel em riste para fixar aquele momento único.
Nós também ficámos, felizes, a olhar. Sem máquina fotográfica, sem telemóvel, pois há momentos, únicos, que têm mesmo de ser vividos.
Nunca tínhamos visto nada assim!
É contra esta ideia (ingénua, absurda ou oportunista) que se insurge, por exemplo, o filósofo italiano Giorgio Agamben num pequeno texto intitulado "Magia e Felicidade". Segundo ele, a felicidade teria mais a ver com uma certa "magia", impossível de prever ou controlar, e que não resulta de qualquer espécie de prémio ou merecimento por um trabalho bem feito. A felicidade, quando acontece, tem algo de excessivo, fora da norma e perfeitamente contingente e inesperado.
Num lugar à beira rio, na cidade de Lisboa, há um bar com uma esplanada. Chama-se: À Margem. Como estava frio lá fora, decidimos ficar na parte de dentro daquela autêntica janela aberta para o rio Tejo.
Entretanto, começou a chover. O sol a pôr-se banhava o rio a jusante enquanto chuva, a montante, escurecia o seu lado oposto.
De súbito, os presentes soltam um "oh" de admiração, encaminhando-se mecanicamente, um após outro, em direcção à rua. Foi então que reparámos, com assombro, naquela verdadeira epifania: por entre a chuva e a luz, o céu envolto em nevoeiro e a dança das ondas, um arco-íris, de cores magistrais, re-pousava nas águas mesmo à nossa frente. E como se não bastasse, um segundo arco-íris, embora menos nítido, veio juntar-se ao primeiro.
Os elementos concertaram-se entre si para criar aquele momento de "magia". Saíram todos, felizes - e não só os que mereciam - de telemóvel em riste para fixar aquele momento único.
Nós também ficámos, felizes, a olhar. Sem máquina fotográfica, sem telemóvel, pois há momentos, únicos, que têm mesmo de ser vividos.
Nunca tínhamos visto nada assim!
26.3.09
Um chapéu bonito não promove ideias na cabeça
Um bairro é em princípio habitado por pessoas vivas que têm a capacidade de se mover dentro do bairro, de um lado para o outro, de entrar ou sair dele.
De vez em quando há pessoas que saem e não voltam: ou porque mudaram definitivamente de bairro, tendo ou não mudado de vida, ou porque faleceram, não tendo já, por isso, meio de mudar.
Num certo sentido, morrer não equivale a deixar de "existir": as "almas mortas" (como diria Gogol) continuam a ex-sistir simbolicamente, enquanto o poder do Verbo as levantar do "chão do mundo".
Podemos imaginar todo um bairro habitado por "almas mortas" que agem (fazem movimentos, conversam - mesmo que seja apenas consigo mesmas - passeiam ou interrogam-se...) graças unicamente ao poder do Verbo, da Palavra, em particular da Palavra escrita.
É um bairro assim que o escritor Gonçalo M. Tavares (a quem Saramago vaticinou o prémio Nobel da literatura e de quem disse que escrevia tão bem que até lhe apetecia bater-lhe) imaginou e tem vindo a concretizar desde o ano de 2002.
O bairro é habitado por um conjunto de "senhores", poetas e escritores de renome, como o Senhor Valéry, o Senhor Calvino ou o Senhor Breton , entre outros.
É possível ver, na planta do bairro, que há casas prontas para receber os novos inquilinos que aí virão morar. Eles já estão de algum modo presentes, sob a forma de um nome próprio que os aguarda, ainda que não tenham chegado efectivamente ao bairro. Tal como na vida, há algo que dispõe, que determina previamente os lugares que cada um vai ocupar. Quando e como serão efectivamente ocupados é assunto que depende do "ritmo" da escrita - depurada e acutilante - de Gonçalo M. Tavares, cujo estilo veio soprar uma aragem fresca sobre a literatura portuguesa.
É saboroso voltar a ler alguém que abdica de todo e qualquer artificialismo estéril (o seu modo de escrever é limpo, escorreito, clássico, como já não se via há muito na literatura portuguesa recente, sempre em busca de suprir a ausência de ideias com arabescos formais), para dizer o que há de mais estranho, imprevisível e sem nome na poesia e na vida.
Um dos últimos habitantes deste bairro singular é "O Senhor Breton". Sentado, em casa, o senhor Breton puxa do cigarro, fuma um pouco, liga o gravador e dá início à "entrevista". Na verdade, uma auto-entrevista, toda feita de perguntas sem resposta, como se cada uma das questões que ele vai desfiando tivesse unicamente o propósito de abrir fissuras no campo da linguagem por onde espreitem "as fendas do mundo".
Daí que uma "chave de fendas" - como diz algures, o "Senhor Breton", com a ironia e o humor subtil que o estilo de Gonçalo M. Tavares lhe empresta - seja um instrumento mais precioso, porventura, que os olhos ou a inteligência abstracta.
Ficam três fragmentos, como aperitivo, da "entrevista" que o "senhor Breton" se faz:
"A vida inteira encontra-se, assim, recoberta por palavras. Apenas com vinte e seis letras se dá o nome a todas as coisas do mundo e se explicam os inteiros movimentos de todas as coisas do mundo. O que se conseguiria, então, se o alfabeto tivesse vinte e sete letras? Há quem considere, aliás, que o brutal desconhecimento de Deus se deve precisamente à ausência desta última letra do alfabeto. E a qualquer língua falta uma última letra." (4ª Pergunta, p. 23).
"De resto, parece-me que o importante no mundo é existir a compreensão de que um chapéu bonito não promove ideias na cabeça. Ou seja: a estética é um assunto que pouco dialoga com o raciocínio. Um homem a dançar pode ser bonito, mas um homem a pensar nunca é bonito. E se um homem dançar enquanto pensa esse homem terá pensamentos estúpidos, e se um homem pensar enquanto dança, trocará os pés e acabará por tropeçar. Não é uma regra, mas poderia ser uma regra: dançar é incompatível com a resolução de uma equação de segundo grau." (7ª Pergunta, p. 42).
"Mas voltemos à questão, senhor Breton (...): atendendo a certos nomes, não se pensa de imediato em certos acontecimentos? Como a chave de fendas, por exemplo. Não é lógico associar-se este nome a um acontecimento mítico, capaz de abrir as fendas do mundo, porventura mesmo a fenda mais negra, que é aquela por onde se vê, ao fundo, a morte? Não será esta chave de fendas apenas uma especialidade desse instrumento maior?" (Idem).
De vez em quando há pessoas que saem e não voltam: ou porque mudaram definitivamente de bairro, tendo ou não mudado de vida, ou porque faleceram, não tendo já, por isso, meio de mudar.
Num certo sentido, morrer não equivale a deixar de "existir": as "almas mortas" (como diria Gogol) continuam a ex-sistir simbolicamente, enquanto o poder do Verbo as levantar do "chão do mundo".
Podemos imaginar todo um bairro habitado por "almas mortas" que agem (fazem movimentos, conversam - mesmo que seja apenas consigo mesmas - passeiam ou interrogam-se...) graças unicamente ao poder do Verbo, da Palavra, em particular da Palavra escrita.
É um bairro assim que o escritor Gonçalo M. Tavares (a quem Saramago vaticinou o prémio Nobel da literatura e de quem disse que escrevia tão bem que até lhe apetecia bater-lhe) imaginou e tem vindo a concretizar desde o ano de 2002.
O bairro é habitado por um conjunto de "senhores", poetas e escritores de renome, como o Senhor Valéry, o Senhor Calvino ou o Senhor Breton , entre outros.
É possível ver, na planta do bairro, que há casas prontas para receber os novos inquilinos que aí virão morar. Eles já estão de algum modo presentes, sob a forma de um nome próprio que os aguarda, ainda que não tenham chegado efectivamente ao bairro. Tal como na vida, há algo que dispõe, que determina previamente os lugares que cada um vai ocupar. Quando e como serão efectivamente ocupados é assunto que depende do "ritmo" da escrita - depurada e acutilante - de Gonçalo M. Tavares, cujo estilo veio soprar uma aragem fresca sobre a literatura portuguesa.
É saboroso voltar a ler alguém que abdica de todo e qualquer artificialismo estéril (o seu modo de escrever é limpo, escorreito, clássico, como já não se via há muito na literatura portuguesa recente, sempre em busca de suprir a ausência de ideias com arabescos formais), para dizer o que há de mais estranho, imprevisível e sem nome na poesia e na vida.
Um dos últimos habitantes deste bairro singular é "O Senhor Breton". Sentado, em casa, o senhor Breton puxa do cigarro, fuma um pouco, liga o gravador e dá início à "entrevista". Na verdade, uma auto-entrevista, toda feita de perguntas sem resposta, como se cada uma das questões que ele vai desfiando tivesse unicamente o propósito de abrir fissuras no campo da linguagem por onde espreitem "as fendas do mundo".
Daí que uma "chave de fendas" - como diz algures, o "Senhor Breton", com a ironia e o humor subtil que o estilo de Gonçalo M. Tavares lhe empresta - seja um instrumento mais precioso, porventura, que os olhos ou a inteligência abstracta.
Ficam três fragmentos, como aperitivo, da "entrevista" que o "senhor Breton" se faz:
"A vida inteira encontra-se, assim, recoberta por palavras. Apenas com vinte e seis letras se dá o nome a todas as coisas do mundo e se explicam os inteiros movimentos de todas as coisas do mundo. O que se conseguiria, então, se o alfabeto tivesse vinte e sete letras? Há quem considere, aliás, que o brutal desconhecimento de Deus se deve precisamente à ausência desta última letra do alfabeto. E a qualquer língua falta uma última letra." (4ª Pergunta, p. 23).
"De resto, parece-me que o importante no mundo é existir a compreensão de que um chapéu bonito não promove ideias na cabeça. Ou seja: a estética é um assunto que pouco dialoga com o raciocínio. Um homem a dançar pode ser bonito, mas um homem a pensar nunca é bonito. E se um homem dançar enquanto pensa esse homem terá pensamentos estúpidos, e se um homem pensar enquanto dança, trocará os pés e acabará por tropeçar. Não é uma regra, mas poderia ser uma regra: dançar é incompatível com a resolução de uma equação de segundo grau." (7ª Pergunta, p. 42).
"Mas voltemos à questão, senhor Breton (...): atendendo a certos nomes, não se pensa de imediato em certos acontecimentos? Como a chave de fendas, por exemplo. Não é lógico associar-se este nome a um acontecimento mítico, capaz de abrir as fendas do mundo, porventura mesmo a fenda mais negra, que é aquela por onde se vê, ao fundo, a morte? Não será esta chave de fendas apenas uma especialidade desse instrumento maior?" (Idem).
16.3.09
Tratamentos do real
Freud era fascinado por arte clássica, sobretudo pintura e literatura, mas parecia indiferente à coisa musical. Já Theodor Reik, um dos seus venerandos discípulos, era um perfeito melómano, apaixonado em particular pela música de Gustave Mahler, em torno da qual escreveu algumas "variações psicanalíticas".
Quer seja a pintura, a literatura ou a música, a arte em geral interessa, tem interessado e não pode deixar de interessar a psicanálise. Não porque esta vá no encalço de uma espécie de "psicologia" do autor ou da obra (como tantas vezes se pensou e muitas se praticou), mas porque o artista (o seu saber-fazer) tem algo a mostrar à psicanálise. De alguma forma - é a tese de Lacan - ele precede o psicanalista, trazendo à tona formas inéditas de tratamento do real.
Eis o que exploram dois livros recentes: "Le savoir de l'artiste et la psychanalyse" (Hervé Castanet) e "Glenn Gould, ou l'invention nécessaire" (Vários). Não se trata, em qualquer caso, de "psicologizar" a obra, de dar-lhe um "sentido", mas de pôr em evidência modos inéditos, inventivos, de "tratar o real", para aquém ou para além do sentido.
Quanto à emoção, por exemplo, de escutar Glenn Gould, ela mantém-se intacta. Talvez até um pouco mais viva. Lembro-me ainda, como se fosse hoje, da primeira vez que o vi, na televisão, tocando as "Variações Goldberg", de Bach: aquele jeito desajeitado de sentar-se ao piano e trautear as notas, à medida que ia tocando, ficarão para sempre gravadas na minha alma, essa mesma que Musil dizia retirar-se perante as fórmulas algébricas.
1.3.09
No lugar dos olhos
Viver todos os dias cansa. É o título de um livro de Pedro Paixão.
Uma menina de 11 anos, a pequena Coraline (ou Caroline?), dá-nos a sua versão das coisas: o que cansa mesmo é viver todos os dias com as as mesmas pessoas que não parecem ligar-nos patavina, de tal forma estão ocupadas com outros afazeres mais urgentes. É este o caso, por exemplo, do pai e da mãe da pequena Coraline: seres "planos", a "duas dimensões", aborrecidos e cheios de trabalho, como todos os pais " a sério"...
É num desses dias, em que o aborrecimento toma conta da pequena Coraline, que ela decide explorar os recantos à casa, acabando por descobrir uma porta secreta que dá acesso a uma outra realidade. Aí encontra o mesmo "cenário" (uma casa em tudo parecida com a primeira, um pai e uma mãe como os seus), embora pintado com outras tintas (o pai e a mãe são agora seres maravilhosos, "arejados" e inteiramente disponíveis para satisfazer, plena e imediatamente, todos os desejos da menina). Não há lugar para o tédio nesse mundo perfeito, de tal modo que a pequena Coraline se põe a sonhar como seria bom permanecer para sempre naquele mundo maravilhoso, sem ter de acordar na sua velha casa, junto aos seus pais "a sério".
Há só um pequeno pormenor que faz "mancha" no quadro, destoando do conjunto: no lugar dos olhos do pai e da mãe maravilhosos, há dois botões cosidos. É perante a proposta de trocar os seus lindos olhos por um par de botões (o que tornaria possível ficar para sempre naquele mundo maravilhoso, dando cumprimento ao seu desejo) que a pequena Coraline fica horrorizada, apercebendo-se do embuste em que caíra ao atravessar a "porta secreta" . É o instante em que o sonho de um mundo perfeito e maravilhoso cai por terra, revelando ser, afinal, um pesadelo.
Também nós, espectadores, somos tomados da vertigem de um outro mundo, a três dimensões (colocados que são os óculos especiais para o efeito), longe da "planura" do quotidiano. Também nós acordamos do sonho...
Os filmes que um pai ou uma mãe " a sério" têm de ver quando há filhos pequenos... Graças a Deus!
28.2.09
O Leitor (The Reader)
Fui ver o filme. Tinham-me falado muito bem a seu respeito. Não desiludiu. Obra prima? talvez não...
Com grande mestria, num constate vai e vem entre o presente e o passado, Stephen Daldry conduz-nos através de um labirinto de segredos, de enigmas que teimam em furtar-se à nossa compreensão. O desempenho dos actores - nomeadamente a magistral interpretação de Kate Winslet, a mesma do "charoposo" Titanic, mas que diferente! - contribui para elevar progressivamente a tensão dramática deste filme, baseado na obra com o mesmo título de Bernhard Schlink.
Em 1961, Hannah Arendt é enviada a Israel, pela revista The New Yorker, com o objectivo de cobrir o mediático julgamento de Adolf Eichmann, responsável por uma série de crimes de genocídio contra os judeus. Com base no que pôde escutar ao longo do julgamento, bem como na sua já longa e profunda reflexão político-filosófica, ela escreveu um livro cujo título, e em particular o subtítulo, se tornaram famosos: Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil. Segundo a autora, Adolf Eichmann não apresentava características de uma pessoa com um caráter distorcido ou doentio, tendo agido como agiu por mero desejo de ascender na sua carreira profissional e os seus actos resultaram apenas do cumprimento de ordens superiores. Ele era um simples burocrata que procurava realizar com zelo e eficiência as ordens recebidas.
Hannah Schmitz, a protagonista do filme, ex-guarda do campo de concentração de Auschwitz, parece incarnar, até certo ponto, a "banalidade do mal" de que fala Hannah Arendt no seu livro: cumprindo com zelo e eficiência as tarefas que lhe são incumbidas (traço que se mantém durante e após o holocausto - veja-se a forma como ela é felicitada por manter a sua folha de serviço, de revisora, impecável!), ela parece guiar-se na sua acção pelo sentido do dever cumprido. Quando é interrogada, em pleno tribunal, sobre a a razão do seu comportamento, que levaria à morte centenas de judeus, ela devolve a questão ao juíz, perguntando: e você, o que faria? Como se a máxima que a guiou na sua acção pudesse ser universalizada!
Porém, o cumprimento do dever tem aqui o seu avesso. Ele revela-se igualmente na cena,
decisiva, do tribunal. Acusada de ser a principal responsável pela redacção do documento que ordenava o referido crime , ela começa por negar a acusação; porém, quando lhe é pedido que escreva algo numa folha de papel em branco, com vista a aferir a sua letra com a do documento em questão, ela vacila, faz um compasso de espera, tenso, e acaba por declarar-se responsável. Saberemos, entretanto, pela boca de Michael Berg (o jovem com quem ela se relacionara sexualmente alguns anos antes, quando ainda adolescente) que Hannah Schmitz não é movida, no seu gesto, por uma qualquer moral kantiana, do dever, mas por vergonha: ela prefere assumir a culpa dos crimes contra a humanidade (o que a condenaria a prisão perpétua, desfigurando-a completamente) do que reconhecer a sua incapacidade de ler e escrever.
É este o fio de Ariadne que liga as diversas partes da trama: objecto de vergonha (por incapacidade) e de fascínio (escolhendo como parceiros amorosos - segundo um claro traço pedófilo - aquele(s) que são, que podem ser "leitor(es)" para ela). Eis o que comanda, que determina toda uma vida: a pequena "caixa vazia" onde vêm inscrever-se toda uma série de pessoas ou acontecimentos aparentemente aleatórios.
Quando, finalmente, Hannhah aprende a ler, já é demasiado tarde, a não ser para descalçar os sapatos (numa clara identificação ao que restava dos judeus mortos, no campo de Auchwitz), subir para o monte de livros por si improvisado e deixar-se cair como letra morta. Uma letra que não chega ao seu destino, no simbólico, ao nível do reconhecimento da falha, mas que acaba por escavar um buraco no real. Aqui jaz Hannah Schmitz.
24.2.09
"Sabedorias" light
O último número, extra-série, da revista Le Nouvel Observateur é consagrado aos "pensamentos do oriente", tais como: zen, taoismo, confucionismo, entre outros. Acompanhando a inflação de publicações, sites, cursos, workshops diversos sobre a "revolução espiritual" que parece estar a abalar o mundo, ela procura responder ao interesse crescente em relação a tais "sabedorias" e "práticas" manifestado por um número cada vez maior de pessoas. Aparentemente, o que parece ser a mola principal de semelhante interesse é a busca de uma nova espiritualidade, como reacção ao hiperconsumo que tem assolado o mundo nas últimas décadas.
Um dos paradoxos, na (nova) era de globalização em que vivemos, é que a atenção dos ocidentais se volta para os "pensamentos do oriente" quando, precisamente, os pensamentos do oriente (e sobretudo dos orientais) estão cada vez mais focalizados, dobrados, convertidos ao "capitalismo" ocidental.
O que leva os ocidentais a aderir de forma tão entusiasta aos pensamentos e práticas do oriente? Na verdade, como entender que o extremo individualismo ocidental, todo ele apegado- cada vez mais - à plena realização de si mesmo, se volte para "práticas" (como o budismo, por exemplo) que assentavam no desapego e esvaziamento do Eu?
Tal como o "ecologista" dos "tempos hipermodernos", que apregoa a defesa da "natureza" sem abandonar os produtos mais requintados da "civilização", também o mais feroz adepto do individualismo ocidental se volta para o oriente sem abandonar as ideologia do consumo e a mitologia da plena, concordante e feliz realização de si mesmo. Trata-se menos de uma "revolução espiritual" que de uma nova figura do hiperconsumo (Lipovestky).
Com efeito, nas antigas sabedorias tratava-se de despojar totalmente o homem, de ultrapassar o Eu confinado à estrita individualidade, libertando-o dos seus vãos apetites. Elas implicavam uma completa mudança de vida, passando por exercícios espirituais repetidos, indiferença ao mundo e uma verdadeira - e muitas vezes dolorosa - performance ascética. Pelo contrário, o que se procura actualmente junto dos "mestres" (ou que se fazem passar por tal) são receitas para maximizar o prazer, a satisfação e o pleno desenvolvimento "físico" e "psicológico" de si mesmo. Trata-se mais de um help self que de uma anulação ou apagamento do self. E todos se deixam embalar neste doce canto de sereia, até mesmo a digníssima igreja católica, apostólica e romana que não tem cessado, nos últimos tempos, de "psicologizar" cada vez mais o seu vocabulário. O "afecto", a "emoção", a "realização de si"...têm vindo a subtituir-se à "fé", à "culpa", ao "pecado"...como nas demais esferas da existência.
Por todos os lados há novos "mestres" e "guias" da "auto-ajuda" (contradição?). Os novos gurus crescem tão rapidamente como as novas tendências da moda ou os novos restaurantes exóticos. A atracção pelos "pensamentos do oriente" é a mesma que se tem por um novo restaurante. Trata-se sempre de "consumir" alguma coisa, de "experimentar" algo de novo, de "sentir tudo de todas as maneiras". Desapegadamente, de preferência.
O que diria de tudo isto, por exemplo, um "verdadeiro" mestre zen? Talvez risse apenas, com sarcasmo. Ou interrompesse o silêncio com um pontapé. Ou atirasse tudo contra o muro!
9.2.09
O matema da emoção
Não me canso de ouvir. Há amores que duram enquanto outros fenecem.
Caíram as folhas outonais. Caiu a chuva sobre nós.
A terra girou em torno do seu eixo. Em torno do sol.
O sol girou em torno de outro sol.
O universo girou?
Girou a vida, girou a morte.
E enquanto girando girava
tudo gerou
outra coisa.
E eu não me canso de ouvir
este som
este silêncio
esta mágica mistura de som e silêncio
este concerto como água correndo
de colónia.
Obrigado Keith.
Jarret.
29.1.09
Enjoy life!
Apesar de não vir a Portugal, o chamado "autocarro ateu" anda por aí. Já passou em Espanha, aparentemente sem grande alarido. Com indiferença, até. As pessoas parecem andar mais preocupadas com a crise económica (essa mesma que não lhes deixa desfrutar a vida como gostariam!) do que com autocarros ateus ou cristãos.
Trata-se de uma campanha que começou em Londres (salvo erro), e que apela, em grandes letras, a que se goze a vida, visto que provavelmente Deus não existe.
Vivemos na época da marcha e do orgulho; coube, desta vez, ao orgulho ateu fazer também a sua marcha.
Confesso que para quem leu Nietzsche ou Dostoiévski, este "probably" está a mais. Há muito tempo que Nietzsche havia declarado, sem precisar de letras garrafais para o efeito, que "Deus está morto". Mas nem por isso um deus morto deixa de ser eficaz. Aliás, ao sujeitar-se voluntariamente à morte, em vez de fechar as portas para o gozo, não as terá escancarado, como mostram todos os anos aqueles filipinos...que se deixam fustigar e crucificar voluntariamente?
Mais longe foi Saramago - um ateu, por sinal - ao dizer que Deus não desaparecerá enquanto não desaparecer o nome de Deus. Mesmo que Deus não exista, que seja um puro vazio, enquanto a linguagem o fizer ex-sistir, Deus ex-sistirá. Certainly! A frase escrita no autocarro é uma prova da existência de Deus.
Importa, contudo, ir um pouco além dos prós e dos contras para avaliar o alcance que estes pequenos acontecimentos do quotidiano revelam da transformação, da mudança no estado do mundo: passámos de um discurso que assentava na predominância do não (não faças isto ou aquilo!) para um discurso baseado no sim (faz isto ou aquilo!). Neste caso, goza, desfruta, aproveita a vida!
Confrontados com um imperarativo deste tipo, das duas uma: ou se diz explicitamente qual é a boa, a forma correcta de gozar a vida (o que dá azo ao surgimento de todo tipo de novos mestres e gurus, baseando a eficácia das suas "receitas" no poder da "sugestão") ou, pelo contrário, se mergulha o sujeito na angústia (de ter de gozar a todo o custo sem saber como) ou na "culpa" (não porque lhe seja proibido gozar, mas por não gozar suficiente, adequadamente bem...como é suposto ter de se gozar).
Talvez o que falte pôr a circular não seja um autocarro do gozo, mas um eléctrico chamado desejo...
28.1.09
A máquina da avaliação
Afinal, eles querem ou não querem ser avaliados? É uma pergunta que se faz por aí...
Para a opinião pública, cansada de tanta greve e manifestação, o que eles não querem é ser avaliados; já os sindicatos - e demais professores - fazem questão de dizer, quando isso é questão: mas nós queremos ser avaliados!
Seria, talvez, necessário ir um pouco mais longe - ou mais fundo - e perguntar: onde radica esta vontade de avaliar (ou de ser avaliado), esta poderosa máquina retórica que tende a alastar não apenas à educação, mas também à saúde (física ou psíquica) e demais domínios da existência humana?
Em 2004, quando os ventos do furor avaliativo tinham já lançado, em França, as primeiras rajadas, Jacques-Alain Miller (em colaboração com Jean-Claude Milner) dava a seguinte resposta: "(...) pode dizer-se que a avaliação está em marcha desde a emergência do discurso da ciência. A avaliação, por todo o lado, não é um acidente, um avatar, é um momento necessário da grande "cifragem" (chiffrage) do ser que começou, pelo menos segundo Heidegger, com Descartes" (Cf. Voulez-vous être évalué? Paris: Bernard Grasset, 2004, p. 65).
Relativamente a esta razão objectivante, calculadora... que Heidegger (cada vez mais actual) não cessou de evidenciar, somos todos subjugados; os promotores das actuais políticas da educação (saúde, etc.) não menos do que nós, mesmo que finjam, que façam de conta, do alto da sua obstinação, que são mestres e senhores do jogo.
26.1.09
O avesso da banalidade
"Acho que tudo nesse mundo, essa crise imensa do Ocidente, nos leva a dizer que a arte ainda é um caminho possível, que ela é uma trajetória, um modo de pensar, de transformar a realidade e de lidar com o núcleo do sujeito muito mais intenso, veemente e eficaz do que os outros modos de construção da linguagem" (Tunga).
17.1.09
Relação perfeita?
A publicidade diz muito sobre o estado do mundo.
Num spot publicitário em voga, um homem declara para a sua pasta (comprada numa grande loja de venda de produtos informáticos e de escritório): "amo-te"; ao que ela responde: "eu também te amo".
Será esta a "relação" que parece não existir entre homens e mulheres: cada um com a sua "pasta", com o seu quinhão de gozo idiota?...
Num mundo em que os nós se desatam e os laços se quebram facilmente, seremos todos "idiotas"...com pasta?
10.1.09
Como chamar a isto?
Vêem-se por aí homens e mulheres estátua, fazendo profissão de estar imóveis num mundo que acelera dia após dia, aumentando sempre mais a velocidade.
As empresas buscam "fidelizar" os seus clientes, atribuíndo por exemplo cartões que dão pontos e pontos que dão descontos, num mundo em que os clientes são cada vez mais infiéis.
Diz-se procurar o crescimento e a beleza interior num mundo onde a cosmética e a cirurgia plástica se propõem restaurar e rejuvescecer o aspecto exterior. É engraçado ver pessoas bonitas falando de "beleza interior" após se terem sujeitado a uma plástica!
Tenta dar-se a cada um a ilusão de que ele é original, mestre e senhor da sua vida, de que pode escolher à vontade, "personalizando" tudo a seu gosto, num mundo padronizado, cada vez mais uniforme, em que nos limitamos a vestir a roupa que nos propõem. Se ela não serve, se não se ajusta ao corpo, a culpa é do corpo. Há que mudar de corpo, fazer dieta, não comer coisas que fazem mal...à roupa que nos querem obrigar a vestir. Eis que nos tornamos rapidamente mestres e senhores da dieta. Somos originais: conformamo-nos à "forma" (no sentido culinário do termo) em que nos vamos (nos vão) enformando. Somos arrastados pela corrente do mundo, pensando estar a remar conta a corrente.
É nesta sociedade de consumo, de hiperconsumo que decidimos (livremente) não consumir um sem número de coisas porque fazem mal, engordam ou prejudicam. Como chamar a isto?
6.1.09
Des(confiança)
Ontem, após a entrevista concedida pelo primeiro ministro, José Sócrates, discutia-se no programa Prós e Contras (RTP1) se ele teria dado confiança aos portugueses, se o seu discurso tinha sido confiável.
Um dos jornalistas presentes, sem responder claramente à questão, disse a certa altura o seguinte: o primeiro ministro demonstrou um grande poder comunicativo no uso da palavra; por isso, a dra Ferreira Leite (líder do maior partido da oposição) que se cuide!
Estamos longe de um discurso em que a palavra dada, a palavra de honra, era signo de garantia. Num mundo em que a crise de confiança alastrou à própria a econonia, a palavra é simplesmente parte do jogo comunicativo, televisivo.
A verdade que se cuide!
Ou não fará hoje a verdade também parte do jogo, da ficção dos media, do grande espectáculo do mundo?
2.1.09
A alma do negócio
Há "segredos" bem guardados. Que o diga o escritor José Saramago que não quis revelar, até agora, o título do livro (romance, conto...?) que está a escrever.
Pelo contrário, o livro "o segredo" propunha-se, desde o princípio, revelar algo.
Há títulos assim: prometedores! Mesmo sem abrir o livro, a alma humana já começa a salivar, como diria Pavlov se tivesse "espírito"!
Pela quantidade de arremedos a que foi sujeito (o segredo do segredo, o segredo do segredo do segredo...) parece mesmo que aquilo que fascina mais em coisas deste género não é tanto o "conteúdo" revelado (banal e insípido), mas o significante enigmático que promete abrir as portas da...felicidade.
Daí, talvez, o paradoxo: numa era de absoluto predomínio da ciência, a "ideologia" e o "discurso" correntes não cessam de produzir "crenças" cada vez mais estranhas ao espírito científico.
Ou, então, a misturar no mesmo prato - como sói fazer-se em experiências culinárias cada vez mais eclécticas - ciência e crendice, ao gosto de cada um.
Haja, ao menos, bom gosto!
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