Um bairro é em princípio habitado por pessoas vivas que têm a capacidade de se mover dentro do bairro, de um lado para o outro, de entrar ou sair dele.
De vez em quando há pessoas que saem e não voltam: ou porque mudaram definitivamente de bairro, tendo ou não mudado de vida, ou porque faleceram, não tendo já, por isso, meio de mudar.
Num certo sentido, morrer não equivale a deixar de "existir": as "almas mortas" (como diria Gogol) continuam a ex-sistir simbolicamente, enquanto o poder do Verbo as levantar do "chão do mundo".
Podemos imaginar todo um bairro habitado por "almas mortas" que agem (fazem movimentos, conversam - mesmo que seja apenas consigo mesmas - passeiam ou interrogam-se...) graças unicamente ao poder do Verbo, da Palavra, em particular da Palavra escrita.
É um bairro assim que o escritor Gonçalo M. Tavares (a quem Saramago vaticinou o prémio Nobel da literatura e de quem disse que escrevia tão bem que até lhe apetecia bater-lhe) imaginou e tem vindo a concretizar desde o ano de 2002.
O bairro é habitado por um conjunto de "senhores", poetas e escritores de renome, como o Senhor Valéry, o Senhor Calvino ou o Senhor Breton , entre outros.
É possível ver, na planta do bairro, que há casas prontas para receber os novos inquilinos que aí virão morar. Eles já estão de algum modo presentes, sob a forma de um nome próprio que os aguarda, ainda que não tenham chegado efectivamente ao bairro. Tal como na vida, há algo que dispõe, que determina previamente os lugares que cada um vai ocupar. Quando e como serão efectivamente ocupados é assunto que depende do "ritmo" da escrita - depurada e acutilante - de Gonçalo M. Tavares, cujo estilo veio soprar uma aragem fresca sobre a literatura portuguesa.
É saboroso voltar a ler alguém que abdica de todo e qualquer artificialismo estéril (o seu modo de escrever é limpo, escorreito, clássico, como já não se via há muito na literatura portuguesa recente, sempre em busca de suprir a ausência de ideias com arabescos formais), para dizer o que há de mais estranho, imprevisível e sem nome na poesia e na vida.
Um dos últimos habitantes deste bairro singular é "O Senhor Breton". Sentado, em casa, o senhor Breton puxa do cigarro, fuma um pouco, liga o gravador e dá início à "entrevista". Na verdade, uma auto-entrevista, toda feita de perguntas sem resposta, como se cada uma das questões que ele vai desfiando tivesse unicamente o propósito de abrir fissuras no campo da linguagem por onde espreitem "as fendas do mundo".
Daí que uma "chave de fendas" - como diz algures, o "Senhor Breton", com a ironia e o humor subtil que o estilo de Gonçalo M. Tavares lhe empresta - seja um instrumento mais precioso, porventura, que os olhos ou a inteligência abstracta.
Ficam três fragmentos, como aperitivo, da "entrevista" que o "senhor Breton" se faz:
"A vida inteira encontra-se, assim, recoberta por palavras. Apenas com vinte e seis letras se dá o nome a todas as coisas do mundo e se explicam os inteiros movimentos de todas as coisas do mundo. O que se conseguiria, então, se o alfabeto tivesse vinte e sete letras? Há quem considere, aliás, que o brutal desconhecimento de Deus se deve precisamente à ausência desta última letra do alfabeto. E a qualquer língua falta uma última letra." (4ª Pergunta, p. 23).
"De resto, parece-me que o importante no mundo é existir a compreensão de que um chapéu bonito não promove ideias na cabeça. Ou seja: a estética é um assunto que pouco dialoga com o raciocínio. Um homem a dançar pode ser bonito, mas um homem a pensar nunca é bonito. E se um homem dançar enquanto pensa esse homem terá pensamentos estúpidos, e se um homem pensar enquanto dança, trocará os pés e acabará por tropeçar. Não é uma regra, mas poderia ser uma regra: dançar é incompatível com a resolução de uma equação de segundo grau." (7ª Pergunta, p. 42).
"Mas voltemos à questão, senhor Breton (...): atendendo a certos nomes, não se pensa de imediato em certos acontecimentos? Como a chave de fendas, por exemplo. Não é lógico associar-se este nome a um acontecimento mítico, capaz de abrir as fendas do mundo, porventura mesmo a fenda mais negra, que é aquela por onde se vê, ao fundo, a morte? Não será esta chave de fendas apenas uma especialidade desse instrumento maior?" (Idem).
1 comentário:
Um livro muito interessante que nos leva a pensar na maquinaria das palavras.
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