O Plano de leitura, em relação ao qual Saramago se mostrou, desde o princípio, bastante céptico, permitiu concluir o que já todos sabiam: os portugueses lêem pouco, muito pouco, quase nada. Porém, tal não os impede de falar de quase tudo e - quem diria - até dos próprios livros...que não leram. É o caso do último livro de Saramago: "Caim". A rádio, os jornais, a televisão...têm dado uma cobertura massiva à polémica em torno deste livro.
Caim está para o Antigo Testamento como O Evangelho Segundo Jesus Cristo estava para o Novo. Se num caso se tratava de humanizar o Filho do Homem, escovando-o de toda e qualquer divindade, agora trata-se de ajustar as contas com o próprio Deus, bem como com todos os demais nomes do Pai, dos Patriarcas sem vergonha da humanidade (Adão, Noé, Abraão, Moisés...) que estão dispostos, se for preciso, a sacrificar os seus próprios filhos ou o seu próprio povo para satisfazer a cruel e obscena Vontade de Deus.
Caim vai percorrendo os diversos cenários em que decorrem tais episódios bíblicos graças a uma engenhosa estratégia narrativa que consiste, por assim dizer, em "espacializar" o tempo, como se os diferentes momentos que o tecem (o antes, o depois) fossem compossíveis, isto é, pudessem coexistir ao mesmo tempo. Caim limita-se, por isso, a errar entre os diversos lugares (e momentos) célebres do Antigo Testamento como se errasse apenas entre vários "presentes".
Por meio de semelhante estratégia, o narrador vai revelando, passo a passo e de forma cada vez mais radical, sem meias tintas ou contenção nas palavras, o avesso da "história oficial". Tal propósito não deixa, aliás, de estar em consonância com toda a obra de Saramago: tratou-se sempre de dar voz (por meio do romance, do ensaio ou do ensaio de romance) e de tomar partido pelos que foram, de uma forma ou de outra, esmagados, derrubados ou excluídos pela história oficial. A função da escrita consiste, neste caso, em reescrever a história de modo a permitir que a estrutura de ficção em que esta assenta não abafe por completo o seu núcleo de verdade ou o seu grão de real.
Caim não se deixa iludir ou enganar pela dignidade ou respeitabilidade (suposta) dos nomes do Pai consagrados pela tradição bíblica. Ele sabe que há um gozo, um proveito ou usufruto por detrás dessa suposta dignidade ou respeitabilidade. Talvez por isso ele seja condenado a errar, condenado à errância. Eis por que ele nutre uma raiva, um ódio de morte ao próprio Deus. No limite, tudo o que ele faz poderia resumir-se numa única frase: "tentativas para matar o próprio deus".
Caim vai-nos sendo apresentado como um grande copulador, alguém sem problemas de erecção, que está sempre pronto para satisfazer o desejo sexual de toda e qualquer mulher, desde a mais exigente, Lilith, até às noras ou à mulher do próprio Noé. E tudo isto com a estranha condescendência de Noé e do próprio Deus, uma vez que é preciso procriar, crescer e multiplicar-se. Mas é nesta parte que a história vai ficando subitamente mais clara: em última análise, o alvo da pulsão que move Caim - também ele "levantado do chão" para onde a escolha absurda de Deus, preferindo a oferenda do seu irmão Abel, o havia escorraçado - é outro, como se quisesse f. o próprio Deus na impossibilidade de o matar.
Este é um livro que tem o ódio como personagem principal. Não é Caim (o protagonista do romance) ou o próprio Deus (judaico-cristão), mas o ódio. E uma pergunta nos fica (pelo menos a mim me ficou): a quem se endereça este ódio se Deus está morto, ou se morreu há muito tempo, tanto no dizer de Nietzsche como do próprio Saramago, ateu convicto.
A não ser que o ódio, como dizia Freud algures, não seja exactamente o contrário do amor (pois o contrário do amor é a indiferença), mas a sua continuação por outros meios. Se José Saramago abdicou de acreditar em Deus, não deixou de servir-se dele como sintoma. Deus é um dos nomes do sintoma...de Saramago, o seu amoródio por excelência: algo sobre o qual não cessou jamais de falar, de escrever, de discutir - "pois a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuam a discutir e a discutir estão ainda".
Com muito humor, é certo, mesmo se o assunto não lhe tem dado, até agora, grande vontade de rir
7 comentários:
Bom... com tanto ódio, fiquei mesmo com vontade de não ler o livro. Depois do teu texto, vejo que a temática do livro de Saramago não faz sentido para mim, e, como não é de leitura obrigatória, no meu contexto profissional, passo-lhe ao lado.Contudo, não digo "desta água não beberei".
Apesar de não gostar da escrita de Saramago (perdoe a minha falha curricular), gosto de ler você comentando o livro dele.
Pois eu gosto muito de ler ambos, cada um no seu estilo.
Finalmente uma crítica interessante ao livro mais polémico dos últimos tempos.
Obrigado pelos elogios, mas talvez convenha mesmo ir "beber dessa água" às fontes originais, embora não seja obrigatório...
"Òdio"... é a primeira vez que ouço/leio que é a personagem principal! Reforcei o apetite de ler o célebre CAIM.
Não tinha pensado em ler Caim. Já li muitos livros de Saramago e agora achei que não me interessa mais lê-lo. Mas essa provocação do ódio, me deu curiosidade! De qualquer modo é o Saramago ou o Filipe que quero ler?
Os livros que realmente amei do Saramago foram Memorial do convento e O ano da morte de Ricardo Reis. Mas houve outros.
Até amanhã!
As três grandes paixões: o amor, o ódio e a ignorância. Parece que, neste caso, triunfa o ódio. Ou será "enamoródio" (hainamoration?) Pelo menos causou o desejo de ler. Para sair da ignorância?
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