1.9.09

O preço do gozo

O número hors-série da revista francesa "Le Point" (Julho-Agosto de 2009) é integralmente consagrado a um tema milenar e caro aos tempos que correm: a felicidade.

Sobre o tema da felicidade correram já rios de tinta ao longo do tempo: quer seja "a felicidade à antiga" (Platão, Aristóteles, Epicuro, Séneca, Cícero...), a "felicidade trágica dos modernos (Rousseau, Kant, Aldous Huxley ou Camus...) ou a visão ocidental ou oriental sobre a felicidade, o que é certo é que esta não deixou de constituir matéria de reflexão e, sobretudo, de digressão. Discorre-se em torno de algo que não há: uma fórmula, uma definição única. A tradução actual deste fenómeno é a proliferação de toda uma literatura (mais ou menos light) que arrisca fórmulas atrás de fórmulas.

O que é novo, hoje, na felicidade não é o tema, mas o enfoque: ela deixou de constituir uma aspiração, um desejo para transformar-se num dever, numa obrigação. É aquilo a que o conhecido escritor e filósofo Pascal Bruckner chama, num texto introdutório, "a tirania da felicidade" (pp. 7-9). Este é um tema, aliás, que o autor já desenvolvera em livros anteriores, nomeadamente: A Euforia perpétua - Ensaio sobre o dever de felicidade 2000).

É neste texto, dedicado à tirania da felicidade, que o autor fala de uma mudança ocorrida em meados do século XX, mas que não deixou de acentuar-se ao longo das décadas seguintes: o crédito.

A concessão de crédito implicou uma mudança na forma como o sujeito se relaciona com o tempo, mas também com o gozo: até então o sujeito, para gozar (de um bem) tinha de esforçar-se, trabalhar a fim de conseguir os meios que lhe permitiriam gozar um dia, mais tarde. A consequência é que a "realidade" ia adiando o "prazer", a hora de gozar, para um futuro cada vez mais longínquo e incerto. O gozo era assim relegado, na maior parte dos casos, para o domínio do sonho, da utopia, do além (mola, afinal, de muitas religiões).

Com o crédito, o cenário inverte-se: goza-se primeiro (a crédito) antes de pagar o respectivo preço. A consequência é que, em muitos casos, é impossível pagá-lo. O crédito é a outra face da dívida. A civilização do crédito gera cada vez mais "sobre-endividados" do gozo. Um gozo impossível de pagar, de transaccionar. Um gozo onde falta a moeda do desejo.

Será o desejo (aquele mesmo de que falava Sócrates no "Banquete" de Platão) o preço certo para o gozo?

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