23.6.07

"A ponte"


A tentação mais usual tem sido comparar " A Ponte" (o filme-documentário de Eric Steel) aos "reality-shows" em voga nas televisões de todo o mundo. Percebe-se a razão: durante todos os dias de 2004, câmaras dispostas em vários ângulos registaram os últimos momentos de uma série de suicidas que se atiraram da famosa Golden Gate Bridge, em São Francisco.

Que fosse por um certo pudor (relativamente à intimidade) ou devido às reservas (éticas) levantadas por alguns críticos de cinema por quem eu nutro um certo respeito (por exemplo, João Lopes), resisti, até hoje, a ir ver o documentário.

Acontece que depois de ver o filme, tornou-se nítida, para mim, uma diferença crucial entre "A ponte" e um simples "reality-show": neste há a ilusão de tudo mostrar, de tudo dar a ver; naquele, pelo contrário, o que surge, a cada passo, é a impossibilidade de tudo mostrar, de tudo dar a ver.

Quando pensamos numa série de câmaras dispostas de modo a tudo captar - como se fosse possível filmar a "verdade" da própria morte - só podemos sentir-nos defraudados, pois o que vemos é um conjunto de transeuntes que passeiam sobre a ponte mais famosa do mundo, sendo que, alguns deles, a certa altura, passam ao acto, caindo como farrapos. Há pouca diferença, em termos de imagem, entre a queda destas pessoas e a da garrafa atirada borda fora, sobre a baía, por um dos transeuntes.

Se fosse apenas isso, o documentário seria a coisa mais enfadonha do mundo; porém, ele é entrelaçado por falas diversas (desde os familiares e amigos mais próximos de alguns dos suicidas até um dos "suicidas" sobreviventes) que vão pontuando as imagens, como se houvesse nelas uma tentativa de compreender, de "simbolizar", de dar um sentido à insensatez do acto. Mas, também aqui, as razões (familiares, sociais, psicológicas, psiquiátricas, afectivas, genéticas...) parecem deixar um resto: é como se cada uma das testemunhas vivesse uma espécie de dilema (por que não dizer ético) em relação ao que fazer, sabendo que, em última análise, sobretudo em determinados casos (pois a passagem ao acto parece não ter a mesma natureza em todos os casos) não há grande coisa a fazer.

A grande diferença, a meu ver, entre um "reality show" (tipo Big-Brother) e este documentário é a seguinte: aquele mostra a a realidade tal como ela é enquanto este se instala no limiar, no limite (na borda da ponte) onde a realidade toca no real, no impossível de ver. Quando olhamos, há algo que escapa à visão e é aí, precisamente, que isso nos toca, nos olha, nos concerne.

Nem todo o "real" (da morte) é racional, racionalizável, simbolizável.

Os suicidas escolheram não "atravessar a ponte" (contrariamente ao que sugere, real e simbolicamente, o seu nome), mas atirar-se dela. E o que, finalmente, é mais "chocante" neste filme, não é o que ele revela sobre a morte, mas o buraco que cava na vida dos vivos.

A prova de que ele tem pouco a ver com um simples reality show é que este tipo de programas tem sempre muita audiência, enquanto " A Ponte (The Bridge) estava quase às moscas. Havia, para além de mim, mais cinco pessoas.

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