24.7.08

Sem-título (Cigarro com mão na porta)


É a mão que segura o cigarro ou o cigarro que segura a mão?

Sobre uma porta que se abre ou se fecha para um espaço ou um tempo (in)certos, o que resta de um vulto, aparecendo ou desaparecendo, numa Outra Cena, suspensa, é um pedaço fragmentado do corpo.

O que resta do corpo vivo, na era da ciência, são apenas fragmentos, pedaços.

São os dedos de um homem ou de uma mulher que seguram o cigarro - um objecto entre os demais - ou é este que os segura, descrevendo, em cinza e fumo, o seu destino de homens e mulheres sem qualidades?

É como se a mão, que resta, na era da tecnologia, não quisesse abrir mão do cigarro, ao menos do cigarro, ainda que digam que mata o corpo e corrói a alma.

Mas é a mão que segura o cigarro, ou este, com mão na porta, que segura a mão?

O fotógrafo não diz e a imagem não fala. Apenas des-vela, no sentido em que mostra e oculta ao mesmo tempo, o real de que se trata.

Agradecimento especial ao fotógrafo Manuel Silva.

Sem-título (uma cadeira olhando o mar)

Um banco é um objecto fabricado pela mão do Homem, que tem, em princípio, uma função delimitada: serve para nos sentarmos.

Um banco, à beira mar, é uma tentação. Apetece demorar-se nele, ouvindo o som das ondas que explodem na rocha e vendo a sua brancura festiva aí se espreguiçando.

Também fui tentado e ali me sentei por mais de uma vez. Como eu, muitos outros. Com excepção dos que têm vertigens ou receio da proximidade da água, toda a gente acaba por sentir, uma vez ou outra, o desejo de experimentar a sensação de estar ali sentado por algum tempo. Às vezes, apenas o fugaz instante de ver, de olhar o mar; outras vezes, o instante efémero de ser olhado pela objectiva fotográfica, de fazer-se olhar. Uns e outros se demoram ali, por algum tempo, até que são de novo chamados à realidade.

Quando o ciclo da semana recomeça e todos se vão embora, o banco fica sozinho...olhando o mar. É então que ele adquire uma aura e uma beleza especiais: já não serve para nada. É nesse instante que o fotógrafo, surpreso com um tal objecto , o eleva à dignidade da Coisa: vazia, inútil, espantosa.

Uma figura do espanto. No limiar da vertigem. À beira mar.

Um agradecimento especial ao fotógrafo Manuel Silva. Só o texto é meu; a máquina, o olhar e a sensibilidade fotográfica são dele.

23.7.08

Ilha das Flores

Onde se prova, por A mais B, que Deus não existe!

Um novo telemóvel ou a lógica do capitalismo

Houve quem fosse vestido de pijama para não perder o lançamento, em Portugal, da última criação da Apple: o novo iPhone 3G.

A tentação dos primeiros foi compensada com um paradoxo: uma maravilha tecnológica que não tinha algumas funcionalidades básicas de outros telemóveis comuns, por exemplo, a possibilidade de enviar um SMS. Seria isto deliberado ou um simples lapso?

Diferentemente do marxismo - que pretendia funcionar segundo uma lógica de satisfação da necessidade - o capitalismo funciona segundo uma lógica da insatisfação do desejo. Com efeito, ele não se limita a satisfazer as necessidades já existentes, mas produz sempre novas necessidades e novos objectos para as (in)satisfazer.

O capitalismo gera insatisfação, histerizando o indivíduo. Para alimentar o desejo, fabrica constantemente novos objectos que desacreditam, diminuem, desvalorizam os objectos já existentes. Se eu não tenho o último grito da tecnologia, o novo iPhone, sou infeliz; mas se eu, vestido de pijama ou em roupa normal, o adquiro, eu continuo a ser infeliz, pois ele não é perfeito. Novos objectos surgirão em breve para continuar a alimentar a máquina infernal do desejo.

É por isso que esta lógica só pode levar a mais e mais insatisfação, produzindo mais e mais infelicidade (numa era, curiosamente, em que basta esticar a mão para que a felicidade, como se diz, esteja ao nosso alcance, ao alcance da mão); infelicidade para a qual o capitalismo também se encarrega de produzir os seus remédios, as sua pílulas...da felicidade

16.7.08

O prazer da releitura


O prazer da leitura não é para todos. Em Portugal, por exemplo - a ter fé nas estatísticas - é cada vez mais para menos pessoas. Lê-se pouco e com desprazer.

No entanto, há ainda quem se reveja nesta afirmação de Marcel Proust: "Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido." (Marcel Proust, Journées de Lecture). Como eu entendo este "prazer divino" de que fala Marcel Proust!

Não sei, todavia, se o "prazer" dá inteiramente conta daquilo que nos prende aos livros. Há livros que nos agarram como uma espécie de doença, como um desprazer, sem que por isso os larguemos. Eles tornam-se parte de nós, a parte mais íntima e estranha ao mesmo tempo, como um sintoma de que não queremos curar-nos.

Na verdade, também eu leio cada vez menos livros. Ao mesmo tempo, releio cada vez mais. A releitura é não só um prazer redobrado, como a possibilidade de explorar recantos que permaneceram na sombra numa primeira leitura. Deixar-se agarrar de novo por um livro de onde já não esperávamos novidade, pode ter efeitos surpreendentes.

Uma das surpresas mais agradáveis que tive ultimamente foi um livro de Freud, que eu já não lia há vários anos: o Mal-Estar na Civilização (Relógio D'Água). É um livro de 1930. Da pré-história, pensamos.

Pois bem: quando abrimos o livro e começamos a ler, somos tomados de uma satisfação (é a palavra certa, mais do que prazer) por ver que a inteligência e a acuidade de análise por parte de Freud, não só não perderam actualidade, como mantêm a mesma frescura dos primeiros dias.

É um livro que poderia ter acabado de nascer!

10.7.08

O mito de Sísifo

Sob a aparente diferença entre a direita e a esquerda, há hoje, em Portugal, um significante-mestre ou uma palavra-de-ordem que faz elo entre ambas:sacrifício. Pede-se aos portugueses sacrifício para enfrentar as dificuldades que aí vêm ou que já estão aí.

Sacrificar uma coisa por outra, um bem por outro, faz parte integrante da própria lógica da escolha: o que quer que se escolha, há sempre algo que se perde, que se sacrifica.

O que acontece, porém, quando o sacrifício é vão ou há uma espécie de sacrifício pelo sacrifício? Quando este já não é um meio para atingir um fim, mas um fim em si mesmo, uma finalidade sem fim?

Após anos de sacrifício, para, supostamente, controlar o défice ou acertar as contas públicas - em particular desde que este governo tomou posse -, os portugueses começam a sentir que tudo foi em vão. Graças a uma conjuntura internacionalmente desfavorável, o produto do esforço, do sacrifício elevado até ao cume, resvala por aí abaixo, sem dó nem piedade.

O que prometem os novos políticos que se afiguram já no horizonte? Sacrifício, mais sacrifício. Seria bom que lessem, durante as férias, O Mito de Sísifo. O mito tem o poder de revelar a verdade, ainda que se trate de uma ficção.

6.7.08

Contra-senso

Para quem gosta de cinema e não se contenta com meras con-fusões emocionais (sem palavras), apreciações mínimas do tipo "gostei", "não gostei" ou sofisticadas reflexões estétic0-formais, geralmente desprovidas de substância, existe um autor incontornável. Não porque alguns tenham feito dele, nos últimos tempos, uma espécie de estrela Pop, mas apesar disso. Chama-se Slavoj Zizek.

Em praticamente toda a sua obra (de que uma boa parte foi vertida para português em 2006, pela Relógio D'Água) o cinema marca presença: ou porque é directamente abordado ou porque serve de fundo a outras reflexões.

Temos agora, em português, um conjunto de quatro ensaios sobre quatro cineastas (Kieslowski, Lynch, Hitchcock e Tarkovski), num volume intitulado "Lacrimae Rerum" e publicado pela Orfeu Negro.

Num estilo que mistura a anedota com o exemplo mais corriqueiro, e em que a constante digressão (arriscando fazer perder a paciência aos que preferem a linha (quase) recta das auto-estradas às curvas e contra-curvas das estradas secundárias), Slavoj Zizek consegue escrever a contra-senso, num mundo em que predomina cada vez mais o bom-senso e o senso-comum, mesmo que a ideologia new age nos faça acreditar no contrário.

5.7.08

Ver-se grego!

Um amigo meu, que está a concluir um doutoramento, revelou-me há algum tempo atrás que há noites em que sonha com frases inteiras em grego. Neste caso, o sonho fala...grego. É preciso acrescentar que o doutoramento é sobre Aristóteles;um grego, por sinal.

Pois eu, que não sonho em grego, também me vejo grego, às vezes; sobretudo em dias como hoje, às duas da manhã, em que em vez de estar a dormir ou a beber um copo, algures, estou para aqui a alinhavar palavras, em busca de uma ideia que possa abrir uma clareira na floresta.

E chegarei a concluir o meu doutoramento?

Claro que sim...pson. Homer Simpson!