22.9.07

Tropeçar na felicidade

Vivemos um tempo extremamente paradoxal: ao mesmo tempo que se fala, como nunca, na "sociedade de consumo" (segundo a expressão, já consagrada, de Baudrillard) ou "hiperconsumo" (Lipovetsky), não paramos de assistir a fenómenos em que parece haver, cada vez mais, um medo ou um receio de consumir. Abundam os produtos "light: a cerveja sem álcool, o café sem cafeína...e por aí adiante. Produtos leves que nos mantêm leves, cada vez mais leves.

Aliás, este fenómeno é geral: não diz apenas respeito à comida, para o estômago, mas também ao alimento para o espírito. Queremos livros, por exemplo, que não cansem demasiado, que sejam fáceis de digerir. Devem poder ler-se de um só fôlego, sem demasiadas pausas para respirar, e sobretudo não provocar insónias.

Nesta cultura "light", uma das ideias mais extraordinárias que frutificou e se expandiu, como uma praga, foi a de que a felicidade é algo que está aí ao abrir da mão. Mais : só não é feliz quem não quer. Mais ainda: é obrigatório ser feliz. Da mesma forma que podemos beber um café sem cafeína ou uma cerveja sem álcool, podemos ser felizes se quisermos.

Um dos preços a pagar por esta ideia é que andamos todos cada vez mais deprimidos, mais infelizes. A prova é o consumo, sempre crescente, de medicamentos. Se eu não sou verdadeiramente feliz, devo ter um problema. Se às vezes me sinto profundamente triste é porque ainda estou pesado e devo, quanto antes, libertar-me desse peso. Se o peso se mantém, apesar de tudo, é porque...não fiz a "dieta" indicada.

Trata-se, no fundo, de uma mudança assinalável em relação a toda a tradição do pensamento ocidental. Com efeito, se para Aristóteles, por exemplo, a felicidade era um desejo de todo o homem, para nós ela tornou-se uma obrigação. A felicidade tornou-se numa espécie de "escolaridade obrigatória": tal como somos obrigados a frequentar a escola, durante x anos, também somos obrigados a a ser felizes.

O problema é que a felicidade é um pouco como Deus: estás em toda a parte, diz-se, mas nunca o vemos em parte alguma. Como diz Daniel Gilbert, o autor de Tropeçar na Felicidade (Stumbling on Hapiness), "quando aquilo que tínhamos projectado finalmente se realiza, o nosso bom humor não dura tanto como esperávamos. E, apesar da nossa obsessão com a felicidade, nunca seremos tão felizes como a nossa imaginação nos promete" (Estrela Polar, 2007).

Segundo o autor, tal deve-se ao facto, cientificamente demonstrado, que a nossa imaginação sofre uma espécie de "ilusão de óptica" quando projecta o futuro.

Ora, para uma "ilusão de óptica", não seria melhor consultar o oftalmologista em vez de mergulhar, de cabeça, na literatura "light" da auto-ajuda e afins?

É uma proposta "light"...para um tempo "light".

2 comentários:

Fernando Borges de Moraes disse...

Pois é, isso nos conduz diretamente a idéia de "cura", não é? A psicanálise não curaria propriamente, eis que não há "cura" para a existência. Sobre a patologização da existência, lembro-me de interessante entrevista de Deleuze. A fantasia pode ser um oásis que nos permite seguir caminhando nesse deserto...

Filipe Pereirinha disse...

Lacan dizia que a felicidade é a traição do desejo...