16.9.07

A novela do real

O real é traumático, impossível de suportar. Quando uma criança "desaparece" do mundo (por morte, rapto ou outra razão qualquer) somos confrontados, de um modo ou de outro, com esse real. Nada é mais difícil de suportar do que este súbito e brutal congelamento do futuro que a vida de uma criança representa.

Acontece que hoje, graças aos media, este real traumático acaba por ser banalizado. A força da repetição enfraquece progressivamente os sentimentos. O que havia de "real", impossível, transforma-se em "realidade" fabricada, insignificante, inofensiva. Ouvimos e vemos a novela do real como quem bebe um café...descafeinado.

Tal como em outras novelas, também nesta o amor cede rapidamente lugar ao ódio. E há, sobretudo, uma velha equação, de raiz grega, que continua a funcionar: a equivalência entre o belo e o bom. Com efeito, se o caso da menina "desaparecida" no Algarve levou a uma tal "identificação" por parte das pessoas relativamente aos pais da criança (contrariamente ao que acontecera em milhares e milhares de outros casos) é porque se tratava de "gente bonita", como se diz. E gente bonita não faz coisas feias. Até o santo padre continua afectado por esta equação de raiz grega entre o bom e o belo, a ética e a estética.

A função do belo (que as televisões mediatizam até à exaustão) é poupar-nos o confronto com o impossível de suportar, com o real. Porém, tal como pode haver beleza no mal (como mostrou Baudelaire), também existe "maldade" na beleza.

A gente bonita também é capaz de coisas feias.

6 comentários:

Fernando Borges de Moraes disse...

A identificação de ética com estetética parece-me próprio da construção o imaginário infantil. Que assim se continue a pensar ao longo da vida, tem-se a infantilização da maturidade. De todo modo, aqui no Brasil, convive-se diariamente justamente com a violência mais nua e crua, que, banalizada e marcada pela segregação social, deixa de chocar. As vítimas são pretos e pobres. Os algozes também, ainda que servindo ao perverso sistema do "castelo" (sim, kafkiano) que pode ser Brasília e o que ela representa a serviço do capitalismo selvagem.

Filipe Pereirinha disse...

Quero agradecer-lhe todos os comentários "impertinentes" que tem deixado neste blogue, em especial as amáveis palavras que lhe dedicou no seu próprio blogue. Além disso, atreveu-se a mostrar a imagem que eu, por pudor, não quis mostrar.
F.P.

Fresquinha disse...

Discípula de Fernando Borges de Moraes não pude deixar de divulgar o seu excelente artigo sobre uma temática, raramente "conversada" e de forma tão sucinta e interessante.

Filipe Pereirinha disse...

Obrigado pelo elogio e pela divulgação, apesar de isso me "responsabilizar" mais.
Um abraço
F.P.

Simone Iwasso disse...

fernando também me trouxe até aqui. e te repito o que escrevi no blog dele: não é fácil sair do lugar comum e ser coerente ao mesmo tempo. seus textos têm essa capacidade. vou virar mais uma leitura brasileira sua! um beijo!

Filipe Pereirinha disse...

Obrigado pelas amáveis palavras.É o desejo de "bem dizer" o que me guia aqui. Para que o bem-dizer não seja pura arte de retórica, ele tem de fazer cócegas no "real".
F.P.