25.9.07
Um nada que é tudo
O meu filho tem um gosto aparentemente bizarro: colecciona pedras. Toda a pedrinha que encontra no chão é objecto do seu interesse.
Mas será um gosto assim tão bizarro?
A minha tese é que ele já apreendeu o "o segredo"de toda a arte pós-Duchamp: qualquer coisa serve - um urinol, uma pá, uma roda, uma pedra...não interessa.
Qualquer coisa serve para ocupar provisoriamente o vazio da Coisa: essa coisa que perdemos quando começamos a falar.
Aliás, este gosto, aparentemente infantil, é afinal o que move grande parte das realizações humanas. Caso contrário, não se perceberia o entusiasmo, a paixão com que a tecnociência contemporânea não cessa de produzir, num ritmo alucinante, novos objectos. Já não se chamam pedras, mas telemóveis, computadores, ipods... e um sem número de outras nomes.
Dei por mim a pensar nestas coisas quando assistia, ontem, ao programa "Prós e Contras" (RTP1) e ao entusiasmo "infantil" com que os participantes falavam do admirável mundo novo da tecnologia.
Pedras, pedras no caminho...
24.9.07
Arte da prudência
Descartes acreditava ser necessário um método para bem conduzir o pensamento e a vida. O que fazer, porém, quando o barco da vida perdeu o Norte e navega agora num mar de incerteza e contingência, sem um Grande Outro (seja Deus ou a Razão) que lhe sirva guia?
Talvez a resposta seja aquilo a que Baltasar Gracián chamava a "Arte da Prudência". Ser "prudente" significa, neste caso, saber-fazer com a incerteza e a contingência. "Saber-fazer" não é a mesma coisa que "saber". Contrariamente à fantasia hegeliana de um "saber absoluto", há algo que é impossível de saber; não porque o fechemos à chave ou lhe dificultemos o acesso (é a nossa fantasia), mas porque há, estruturalmente, um saber que não se sabe. Que ninguém sabe.
Trata-se, então, de saber-fazer com o não saber. E como as razões se acabam depressa, como diria Wittgenstein, temos de agir sem elas.
Talvez a resposta seja aquilo a que Baltasar Gracián chamava a "Arte da Prudência". Ser "prudente" significa, neste caso, saber-fazer com a incerteza e a contingência. "Saber-fazer" não é a mesma coisa que "saber". Contrariamente à fantasia hegeliana de um "saber absoluto", há algo que é impossível de saber; não porque o fechemos à chave ou lhe dificultemos o acesso (é a nossa fantasia), mas porque há, estruturalmente, um saber que não se sabe. Que ninguém sabe.
Trata-se, então, de saber-fazer com o não saber. E como as razões se acabam depressa, como diria Wittgenstein, temos de agir sem elas.
22.9.07
Tropeçar na felicidade
Vivemos um tempo extremamente paradoxal: ao mesmo tempo que se fala, como nunca, na "sociedade de consumo" (segundo a expressão, já consagrada, de Baudrillard) ou "hiperconsumo" (Lipovetsky), não paramos de assistir a fenómenos em que parece haver, cada vez mais, um medo ou um receio de consumir. Abundam os produtos "light: a cerveja sem álcool, o café sem cafeína...e por aí adiante. Produtos leves que nos mantêm leves, cada vez mais leves.
Aliás, este fenómeno é geral: não diz apenas respeito à comida, para o estômago, mas também ao alimento para o espírito. Queremos livros, por exemplo, que não cansem demasiado, que sejam fáceis de digerir. Devem poder ler-se de um só fôlego, sem demasiadas pausas para respirar, e sobretudo não provocar insónias.
Nesta cultura "light", uma das ideias mais extraordinárias que frutificou e se expandiu, como uma praga, foi a de que a felicidade é algo que está aí ao abrir da mão. Mais : só não é feliz quem não quer. Mais ainda: é obrigatório ser feliz. Da mesma forma que podemos beber um café sem cafeína ou uma cerveja sem álcool, podemos ser felizes se quisermos.
Um dos preços a pagar por esta ideia é que andamos todos cada vez mais deprimidos, mais infelizes. A prova é o consumo, sempre crescente, de medicamentos. Se eu não sou verdadeiramente feliz, devo ter um problema. Se às vezes me sinto profundamente triste é porque ainda estou pesado e devo, quanto antes, libertar-me desse peso. Se o peso se mantém, apesar de tudo, é porque...não fiz a "dieta" indicada.
Trata-se, no fundo, de uma mudança assinalável em relação a toda a tradição do pensamento ocidental. Com efeito, se para Aristóteles, por exemplo, a felicidade era um desejo de todo o homem, para nós ela tornou-se uma obrigação. A felicidade tornou-se numa espécie de "escolaridade obrigatória": tal como somos obrigados a frequentar a escola, durante x anos, também somos obrigados a a ser felizes.
O problema é que a felicidade é um pouco como Deus: estás em toda a parte, diz-se, mas nunca o vemos em parte alguma. Como diz Daniel Gilbert, o autor de Tropeçar na Felicidade (Stumbling on Hapiness), "quando aquilo que tínhamos projectado finalmente se realiza, o nosso bom humor não dura tanto como esperávamos. E, apesar da nossa obsessão com a felicidade, nunca seremos tão felizes como a nossa imaginação nos promete" (Estrela Polar, 2007).
Segundo o autor, tal deve-se ao facto, cientificamente demonstrado, que a nossa imaginação sofre uma espécie de "ilusão de óptica" quando projecta o futuro.
Ora, para uma "ilusão de óptica", não seria melhor consultar o oftalmologista em vez de mergulhar, de cabeça, na literatura "light" da auto-ajuda e afins?
É uma proposta "light"...para um tempo "light".
Aliás, este fenómeno é geral: não diz apenas respeito à comida, para o estômago, mas também ao alimento para o espírito. Queremos livros, por exemplo, que não cansem demasiado, que sejam fáceis de digerir. Devem poder ler-se de um só fôlego, sem demasiadas pausas para respirar, e sobretudo não provocar insónias.
Nesta cultura "light", uma das ideias mais extraordinárias que frutificou e se expandiu, como uma praga, foi a de que a felicidade é algo que está aí ao abrir da mão. Mais : só não é feliz quem não quer. Mais ainda: é obrigatório ser feliz. Da mesma forma que podemos beber um café sem cafeína ou uma cerveja sem álcool, podemos ser felizes se quisermos.
Um dos preços a pagar por esta ideia é que andamos todos cada vez mais deprimidos, mais infelizes. A prova é o consumo, sempre crescente, de medicamentos. Se eu não sou verdadeiramente feliz, devo ter um problema. Se às vezes me sinto profundamente triste é porque ainda estou pesado e devo, quanto antes, libertar-me desse peso. Se o peso se mantém, apesar de tudo, é porque...não fiz a "dieta" indicada.
Trata-se, no fundo, de uma mudança assinalável em relação a toda a tradição do pensamento ocidental. Com efeito, se para Aristóteles, por exemplo, a felicidade era um desejo de todo o homem, para nós ela tornou-se uma obrigação. A felicidade tornou-se numa espécie de "escolaridade obrigatória": tal como somos obrigados a frequentar a escola, durante x anos, também somos obrigados a a ser felizes.
O problema é que a felicidade é um pouco como Deus: estás em toda a parte, diz-se, mas nunca o vemos em parte alguma. Como diz Daniel Gilbert, o autor de Tropeçar na Felicidade (Stumbling on Hapiness), "quando aquilo que tínhamos projectado finalmente se realiza, o nosso bom humor não dura tanto como esperávamos. E, apesar da nossa obsessão com a felicidade, nunca seremos tão felizes como a nossa imaginação nos promete" (Estrela Polar, 2007).
Segundo o autor, tal deve-se ao facto, cientificamente demonstrado, que a nossa imaginação sofre uma espécie de "ilusão de óptica" quando projecta o futuro.
Ora, para uma "ilusão de óptica", não seria melhor consultar o oftalmologista em vez de mergulhar, de cabeça, na literatura "light" da auto-ajuda e afins?
É uma proposta "light"...para um tempo "light".
16.9.07
A novela do real
O real é traumático, impossível de suportar. Quando uma criança "desaparece" do mundo (por morte, rapto ou outra razão qualquer) somos confrontados, de um modo ou de outro, com esse real. Nada é mais difícil de suportar do que este súbito e brutal congelamento do futuro que a vida de uma criança representa.
Acontece que hoje, graças aos media, este real traumático acaba por ser banalizado. A força da repetição enfraquece progressivamente os sentimentos. O que havia de "real", impossível, transforma-se em "realidade" fabricada, insignificante, inofensiva. Ouvimos e vemos a novela do real como quem bebe um café...descafeinado.
Tal como em outras novelas, também nesta o amor cede rapidamente lugar ao ódio. E há, sobretudo, uma velha equação, de raiz grega, que continua a funcionar: a equivalência entre o belo e o bom. Com efeito, se o caso da menina "desaparecida" no Algarve levou a uma tal "identificação" por parte das pessoas relativamente aos pais da criança (contrariamente ao que acontecera em milhares e milhares de outros casos) é porque se tratava de "gente bonita", como se diz. E gente bonita não faz coisas feias. Até o santo padre continua afectado por esta equação de raiz grega entre o bom e o belo, a ética e a estética.
A função do belo (que as televisões mediatizam até à exaustão) é poupar-nos o confronto com o impossível de suportar, com o real. Porém, tal como pode haver beleza no mal (como mostrou Baudelaire), também existe "maldade" na beleza.
A gente bonita também é capaz de coisas feias.
Acontece que hoje, graças aos media, este real traumático acaba por ser banalizado. A força da repetição enfraquece progressivamente os sentimentos. O que havia de "real", impossível, transforma-se em "realidade" fabricada, insignificante, inofensiva. Ouvimos e vemos a novela do real como quem bebe um café...descafeinado.
Tal como em outras novelas, também nesta o amor cede rapidamente lugar ao ódio. E há, sobretudo, uma velha equação, de raiz grega, que continua a funcionar: a equivalência entre o belo e o bom. Com efeito, se o caso da menina "desaparecida" no Algarve levou a uma tal "identificação" por parte das pessoas relativamente aos pais da criança (contrariamente ao que acontecera em milhares e milhares de outros casos) é porque se tratava de "gente bonita", como se diz. E gente bonita não faz coisas feias. Até o santo padre continua afectado por esta equação de raiz grega entre o bom e o belo, a ética e a estética.
A função do belo (que as televisões mediatizam até à exaustão) é poupar-nos o confronto com o impossível de suportar, com o real. Porém, tal como pode haver beleza no mal (como mostrou Baudelaire), também existe "maldade" na beleza.
A gente bonita também é capaz de coisas feias.
10.9.07
O que fazer com o nariz
Há um livro fantástico de Luigi Pirandello, Um, Ninguém, Cem Mil, cuja personagem principal, Vitangelo Moscarda, acaba progressivamente por enlouquecer com base num pormenor aparentemente insignificante: graças a um reparo da sua mulher, descobre, espantado, que o seu nariz tem uma ligeira inclinação para a direita.
Esta simples constatação torna-se num espécie de bola de neve que vai arrastando, à medida que rebola, todo o tipo de certezas subjectivas e desencadeando um autêntica revolução interior no protagonista. Toda a percepção de si mesmo e dos outros fica irremediavelmente abalada.
Claro que isto é um romance (mesmo se a vida está lá toda) e a moral da história é que a criação implica uma certa forma de "loucura" ou histerização do sujeito, no sentido em que as certezas e os baluartes que o protegem quotidianamente são de alguma forma abalados.
Dei por mim a pensar neste livro de Pirandello (tal é a lógica da associação de ideias) quando lia um artigo na última edição da revista Sábado sobre "as loucuras no mundo das plásticas" (cf. nº 175 - 6 a 12 de Setembro de 2007). Pensei: hoje, em vez de meditar ou filosofar sobre o ligeira inclinação do nariz para a direita, Vitangelo Moscarda teria simplesmente pedido uma plástica para corrigir a imperfeição.
Aliás, a ideia habitual que nós temos da cirurgia plástica é simplesmente essa: corrigir as imperfeições. Mesmo se, no limite, um tal desejo se revele impossível de satisfazer, como mostra o caso de alguém que já fez 16 cirurgias e pretende continuar (p. 42-43). Mesmo assim, isso ainda parece normal: trata-se de corrigir, por meio da arte, certas imperfeições da natureza. Ou perfazer o trabalho que a natureza começou. Num certo sentido, como diria Aristóteles, trata-se ainda, de alguma forma, de imitar a perfeição que a natureza poderia ter produzido se levasse a bom porto o seu trabalho.
Mas o que dizer de alguém que pede, não um aperfeiçoamento ou uma correcção desta ou daquela parte do corpo, mas antes um "desvio lateral do nariz" (p. 43), o mesmo que custara a sanidade mental à personagem de Pirandello?
Um e outro caso demonstram, embora por caminhos diametralmente opostos, que o corpo do sujeito que fala e que é falado (para o qual Lacan inventou o termo de parlêtre) é irremediavelmente um corpo pervertido, desnaturado, incómodo.
7.9.07
Aqui há rato...
Tem-se falado ultimamente de ratos a propósito da praga que assola a vizinha Espanha e que, segundo alguns, pode chegar a Portugal. Seria uma variação interessante do velho ditado: de Espanha, nem bons ventos, nem bons...ratos!
Veio mesmo a calhar o filme "Ratatouille", actualmente em exibição nas salas de cinema. Não que o significado do termo tenha algo a ver com ratos, pois o ratatouille é um prato rústico, típico da região de Provence. Pouco importa: o que conta, independentemente do significado, é que quando ouvimos o significante, em português, não conseguimos deixar de pensar em ratos. E com razão, pois os protagonistas do filme são, na verdade, ratos, em especial um que se chama Rémy. Eu sei disso porque fui "obrigado" a ver o filme duas vezes por causa da paixão que o meu filho, de cinco anos, lhe consagrou. Aliás, por causa disso (a função paterna?) tenho visto inúmeros filmes para "crianças", mas raramente com tanto prazer como este último.
O argumento poderia resumir-se da seguinte maneira: trata-se do encontro, improvável, entre duas coisas que não podem estar mais afastadas entre si: ratos e cozinha. Seguindo a máxima do malogrado chef Auguste Gusteau, segundo a qual "todos podem cozinhar" (até um rato), Remy, um rato "atópico", isto é, desenquadrado do seu meio natural, torna-se num verdadeiro criador da arte culinária. De tal forma que até o maior crítico do meio, Anton Ego, fica rendido.
A cena é comovente: quando o crítico, reticente, após ter pedido algo que o surpreenda, prova o "ratatouille" feito pelo pequeno Remy (embora não sabendo que está a comer comida feita por um rato), é tomado por uma espécie de vertigem do espaço-tempo que o leva de regresso à infância. O que vemos, então, é a súmula de todo o filme e resume-se numa frase: não há cozinhados como os da mamã.
Com efeito, o que vemos nesse flash retrospectivo é o pequeno Anton Ego a ser alimentado pela sua mamã, saboreando, com todo o prazer, o seu (primeiro?) "ratatouille". Que possamos deliciar-nos, também nós (e não só as crianças...) com esse espectáculo de "imagens", é a prova de que há, para além da mera necessidade, uma outra satisfação que é igualmente alimentada.
4.9.07
O "segredo" do segredo
Após ler imensos disparates sobre o último best seller a nível mundial, "O segredo", dei comigo a perguntar: estaremos nós tão desesperados que até a merda nos parece luzidia como o ouro?
Deixando de lado o oportunismo da autora, Rhonda Byrne, que já encheu os cofres à custa do desespero humano, creio que eu mesmo descobri o "segredo" do segredo. Mesmo se não há sentido do sentido ou verdade da verdade (pois tanto o sentido como a verdade deixam sempre um resto), há "segredo" do segredo. E qual é então, o segredo do segredo?
O segredo do segredo é a abolição do real. O real é o que oferece resistência ao pensamento. Aquilo a que o psicanalista francês Jacques Lacan (cujos escritos são também da ordem do real porque oferecem resistência ao pensamento) chamava: forclusion. Na verdade, ele usava este termo para falar do mecanismo envolvido em certos distúrbios psiquiátricos, enquanto abolição de um significante no simbólico. No caso presente, trata-se de uma abolição do próprio real, isto é, do que oferece resistência ao pensamento.
Com efeito, o que diz o "segredo"? Que basta acreditar e pensar positivo.
1.9.07
Second Life
Ao ler, algures, um artigo sobre o aumento exponencial do número de utilizadores da chamada "Second life", dei por mim a pensar no seguinte: o que é mais espantoso não é que as pessoas, de uma forma geral, queiram ter uma "segunda vida" (pois, como é costume dizer, a que se tem deixa sempre a desejar), mas antes que essa "segunda vida" seja, afinal, tão parecida com a "primeira".
Aliás, esta parece ser mesmo a filosofia da coisa: que tudo pareça tão "real", isto é, tão parecido com a "realidade" quotidiana, quanto possível.
Isto, sim, dá que pensar!
Aliás, esta parece ser mesmo a filosofia da coisa: que tudo pareça tão "real", isto é, tão parecido com a "realidade" quotidiana, quanto possível.
Isto, sim, dá que pensar!
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