27.1.11

O poder da pergunta

 Gonçalo M. Tavares foi o primeiro convidado do Café com Letras (Câmara Municipal de Oeiras) em Fevereiro de 2006. Após ter ganho entretanto diversos prémios, entre os quais o Prémio do Melhor Livro Estrangeiro 2010, em França, com o seu romance Aprender a Rezar na Era da Técnica, o escritor voltou a ser entrevistado no mesmo espaço e pelo mesmo entrevistador de então, Carlos Vaz Marques, a propósito dos seus mais recentes livros publicados, no nomeadamente, Uma viagem à Índia.

 A certa altura, falando-se de política, Gonçalo M. Tavares disse mais ou menos o seguinte (e cito de cor): Pensamos que somos livres pelo facto de podermos dizer sim ou não a uma pergunta que nos é feita, quando, pelo contrário, a verdadeira liberdade consistiria em poder escolher a própria pergunta, a nossa pergunta, pois não é certo que as perguntas que nos são feitas tenham algo que ver com os nossos problemas.

Na era do "inquérito" (Cf. Matteo perdeu o emprego, pp. 31-32), do questionário, a liberdade que resta ao sujeito parece ser apenas a de preencher um conjunto de casas vazias de perguntas já-feitas por alguém suposto saber quais são os nossos problemas e qual seria a boa solução para eles. 

Dar espaço ao sujeito para que este formule as suas perguntas e à sua maneira; eis o que é hoje também - poderíamos dizer - uma questão política.

18.1.11

Uma imensa minoria

Era o slogan de uma rádio que já não existe: para uma imensa minoria.

O senhor Manganelli, organizador das conferências do Senhor Eliot (um dos últimos livros de Gonçalo M. Tavares) começa por dizer antes de cada conferência, desculpando-se, o seguinte: Hoje não está muita gente.
 
Hoje não está muita gente nas conferências sobre poesia (quem quer saber disso em momentos de crise?). Hoje está pouca gente em quase todos os lugares onde o acontecimento não deita fumo, não faz barulho, não  explode como um homem-bomba.

Há certos lugares, até, onde não há mais do que quatro, cinco pessoas. Não obstante, se estes quatro ou cinco tiverem um desejo decidido, uma energia que não vem dos elementos, eis que podem constituir já uma imensa minoria; tanto mais que o singular - como dizia, há vários séculos atrás, quando não havia ainda televisão ou internet, Baltasar Gracián - pode por vezes ser plural, uma pessoa pode ser muitas. Resumir numa coisa ou numa pessoa uma categoria inteira é a mais intensa espécie de singularidade.

Tanta gente, afinal...

13.1.11

Nas nuvens

Não estou a ver-me proprietário de uma "nuvem". Era este o lamento de Franscisco José Viegas, no seu último Diário de ocasião (Revista Ler, Janeiro 2011), a propósito da recente criação, por parte do Google, de um leitor (ebook) de livros on line, sempre acessíveis, uma vez que não estarão alojados num determinado hardware, mas existirão virtualmente numa "nuvem". 

A nuvem (cloud) em questão, embora não existindo fisicamente, é cada vez mais a habitação dos humanos: para comunicar, para ler, para escrever, enfim, para quase tudo. Estar nas nuvens tem qualquer coisa de apelativo, que atrai os corpos para cima, como as árvores, num movimento que desafia a gravidade. Ainda assim, muitos daqueles que gostam mesmo de livros, teimam em resistir ao apelo das nuvens. A nossa vida está a mudar muito rapidamente e sinto-me um reaccionário - escrevia Francisco José Viegas.

As nuvens é uma conhecida peça de Aristófanes; mas o que nele era cómico, tornou-se ultimamente um caso  sério. Estamos a assistir, progressivamente - e a um ritmo cada vez mais acelerado - à desmaterialização do mundo. E isso pode dar-nos a ilusão de que o real - a chuva que cai realmente da nuvem - já não faz estragos. Mas faz.

11.1.11

Um pau para toda a obra

Diz-se por aqui (não sei se também é assim no Brasil ou nos outros países que falam português) que há coisas que são "paus para toda a obra". Um pau para toda a obra é uma coisa que serve para tudo, onde cabe tudo, como um recipiente sem fundo ou um armazém que se vai alargando à medida que se enche. Um armazém elástico, por assim dizer, passe a imagem "fálica".

Há palavras que são paus para toda a obra, que servem para tudo ou quase. É o caso, por exemplo, da palavra crise. Volta e meia, ela entra de novo na dança e gira como fogo preso.

Pela quantidade  e qualidade do que já se disse, dos livros e revistas que se venderam em seu nome, dos inúmeros artigos de opinião e debates televisivos consagrados ao tema, é fácil de ver que a CRISE não pára de dar frutos. É muito produtiva! Uma abundância! Há mesmo pessoas e instituições que entrariam em crise se a crise terminasse.

Mas a crise não vai terminar porque - como diz o último número da REVISTA LER (Janeiro 2001), ainda agora começou. Por isso, vai continuar a dar que PHALAR!

5.1.11

Theatro estático

Num mundo acelerado, há ainda coisas que permanecem obstinadamente lentas: ler certos autores "difíceis", fazer uma análise, escrever... Talvez a lentidão não seja a palavra certa: elas têm o seu ritmo, a sua velocidade própria. Acontece apenas que a velocidade relativa das coisas do mundo nem sempre obedece ao mesmo compasso.

Daí que o escritor M. Tavares, por exemplo, tenha dito há algum tempo, numa entrevista, que seria preciso ensinar o tédio nas escolas.

O tédio é a sensação de que nada se passa, nada está a acontecer, quando tudo, no mundo, promete ou convida ao acontecimento. Um teatro estático, como diria Pessoa.

É por isso que vale a pena ler "O Marinheiro" (agora em nova versão da Ática e com introdução, estabelecimento do texto e notas da minha amiga Cláudia F. Souza: uma apaixonada incondicional do poeta dos heterónimos).

Pessoa demonstra, aí, que a lentidão ou a imobilidade dos corpos pode atiçar a velocidade do sonho e sei lá que mais. Há "teatros estáticos" que são autênticos viveiros de acontecimentos. Ler para crer!