31.1.07

Acerca do referendo

Começo por esclarecer a minha posição para que não restem mal-entendidos, ainda que o mal-entendido faça parte integrante da condição do ser falante (e falado).

No próximo dia 11 de Fevereiro, votarei sim. Não, pela hipocrisia.

Dito isto, lanço três questões em forma de dúvida:

1. Não seria o referendo desnecessário se houvesse um pouco mais de coragem política?

2. Num país onde nascem cada vez menos crianças (nota-se já nas escolas secundárias e nas universidades onde a oferta execede largamente a procura) e onde as que nascem encontram cada vez mais dificuldades e faltas de apoio ( são raros os infantários condignos e a preços acessíveis para as famílias que têm, como dizia hoje o nosso ministro da economia na China, Manuel Pinho, "baixos salários") será que o "aborto" é a prioridade, a grande questão mobilizadora do país?

Não deixa de ser irónico que o governe se prepare, dizem alguns, para acabar com o subsídio de nascimento e dar luz verde ( quem sabe se um subsídio) às clínicas privadas que entretanto se vão (ou já estão) a instalar no país.

Em breve, por este andar, a grande dificuldade não vai ser abortar mas convencer alguém a ter um único filho que seja! Conheço cada vez mais casais que "decidiram" não ter filhos...

Diferentemente do que Freud acreditava, a mãe é cada vez menos "certa". As mulheres são cada vez menos mães. "Já tenho de aturar os filhos dos outros e não são pera doce", dizia uma.

3. Tem-se visto (ou ouvido) a nível argumentativo uma certa confusão entre "despenalização" e "desculpabilização". No entanto, os dois termos não querem dizer a mesma coisa nem são redutíveis um ao outro. A despenalização remete para uma lei (que deve ser alterada); a desculpabilização, pelo contrário, é de uma outra natureza. A culpa (ou a desculpa) não se referenda, não começa nem acaba com a mudança (formal) da lei, por mais desadequada ou injusta que ela seja. A culpa pressupõe um sujeito que seja capaz (mesmo que inconscientemente, isto é, não o reconhecendo como tal, mas manifestando-o de um modo ou de outro) de responder por um acto.

Interromper "voluntariamente" a gravidez é, além de tudo o mais, um acto...que carece de subjectivação, seja qual for a lei em vigor.

26.1.07

Lost In Translation

Mesmo se o filme de Sofia Coppola alude a várias dificuldades de "tradução" e não apenas a linguística (os protagonistas americanos, Bob Harris e Charlotte, que têm dificuldade em comunicar com os respectivos parceiros, acabam por se des-encontrar num "lugar estranho" - Tóquio - onde a dificuldade de entender o "japonês" apenas reflecte e encarna essa primeira dificuldade), ele poderia servir de mote para uma reflexão, cada vez mais actual e urgente, sobre as línguas da Europa.

São já mais de vinte e tenderão a aumentar com a entrada progressiva de novos membros para a Comunidade Europeia. Cada novo membro contribui um pouco mais para a "babelização" da Europa. As despesas de tradução constituem já 1% do Orçamento Comunitário.

Mais cedo ou mais tarde, o problema económico-financeiro que uma tal despesa representa vai, com certeza, aumentar o sintoma e provocar a crítica. A tentação de adoptar (ou impor) uma língua única será grande. É já grande, aliás. Do ponto de vista económico, as "línguas" são um desperdício.

Do ponto de vista cultural, elas são uma "riqueza": uma das poucas que restam à Europa. Mas que importa ao "discurso da ciência" ou à "globalização económica" (neste aspecto irmanados) uma tal riqueza? É um mero gozo, inútil, que não serve para nada.

Porém, tal como mostra o filme da Sofia Coppola, a dificuldade de comunicar não resulta principalmente de uns e outros (um sexo e outro, por exemplo) falarem línguas diferentes, mas antes de não se entenderem... na mesma língua.

Isto porque uma língua, qualquer que ela seja, é feita principalmente de equívocos, de mal-entendidos. É disso que padecemos. É isso que faz com que o amor seja, ao mesmo tempo, um "lugar estranho" e familiar.

24.1.07

Um sintoma cultural

O sintoma é cultural, a medida, política.
O efeito é a progessiva rasura da filosofia, em particular no ensino secundário.

A quem incomoda a filosofia?

Será a filosofia a grande culpada pelo "insucesso" dos alunos portugueses (de que agora tanto se fala), ou foi ela, pelo contrário, um dos poucos baluartes contra a progressiva degradação do nível de exigência no ensino a que se assistiu nestes últimos anos, graças a um conjunto de políticas avulsas, contraditórias e facilitistas, emanadas de sucessivos ministérios da educação?

Talvez por essa exigência (ou dificuldade) que ela constitui para os alunos (os actuais e os que já passaram por lá), há quem a pretenda pura e simplesmente eliminar. A extinção dos exames nacionais, a eliminação da obrigatoriedade da filosofia no 12º ano, a exclusão da filosofia nos novos cursos profissionais (como se um pouco de reflexão fizesse mal aos bons profissionais - ou será que neste mundo onde somos todos escravos do capital, até mesmo os capitalistas, reflectir um pouco não é preciso?)

Chame-se ou não a "isso" filosofia, o lugar que esta disciplina tem ocupado nos currículos do secundário é absolutamente singular e insubstituível: nenhuma outra teve (ou tem) a mesma vocação "integradora" dos conhecimentos.

Se ela desaparecer, ficará um "buraco".

É mais fácil dissolver um problema do que resolvê-lo. De tal forma que até alguns filósofos (como Wittgenstein) caíram na asneira de pensar que os problemas filósóficos não se resolvem, antes se dissolvem. Há quem dê uma ajudinha!

O problema é que também esta "dissolução", esta eliminação da filosofia é...uma atitude filosófica, das mais criticáveis.

Um pequeno passo para alguns (iluminados), um grande (sobre) salto para a (des) humanidade.

Veremos aonde isto nos conduz.

21.1.07

Homenagem


"O tempo faz e desfaz a vida", escreveu Fiama Hasse Pais Brandão.

Quando morre um poeta, a vida (da língua) também estremece e moribunda.

A poesia é a vida da língua.

18.1.07

O que é um pai?

Foi condenado a seis anos de prisão um militar que se recusou a entregar a filha «adoptiva» ao pai biológico. A juíza considerou que o arguido sequestrou a criança de quatro anos de quem cuida desde os três meses.

Que o tema é candente, polémico e ultrapassa este caso em particular, provam-no as múltiplas e divergentes "declarações" por parte de juízes, advogados, "especialistas", pessoas comuns...sobre o assunto. A TSF, por exemplo, dedicou-lhe o Fórum de hoje.

A questão é a seguinte: o que é um verdadeiro pai - o que copula ou o que cria, o biológico ou o adoptivo, o que dá o sémen ou a lei?

Talvez a questão não resida tanto em saber se devemos optar pelo "biológico" ou pelo "adoptivo" (alternativa habitual), mas antes: não é preciso que todo o pai, mesmo o "biológico", seja "adoptivo", isto é "adopte" e seja "adoptado", reconheça e seja reconhecido?

Importa pouco, deste ponto de vista, fazer um teste de ADN: ele não prova que um pai seja reconhecido como tal (simbolicamente); apenas que ele foi o dador do "espermatozóide".

E ninguém chama pai a um espermatozóide!

Os juízes (mesmo quando são juízas) deveriam saber disto.

14.1.07

Mensagem

Quando finda o velho e começa um novo ano, é costume fazer balanços sobre o que passou e projectar o que vem aí. Elege-se, por exemplo, o que fez (ou foi) acontecimento, o que deixou uma marca no tempo.

De entre esses acontecimentos, li algo que me chamou a atenção pelo carácter mais ou menos recorrente do mesmo: já o tinha visto escrito algures, mais do que uma vez.

Trata-se de um certo elogio feito às mulheres e, em particular, às mulheres portuguesas que - dizendo as coisas friamente e de forma sucinta - se matam a trabalhar pelos homens e pelos filhos, tanto fora como dentro de casa. É a isso que Mário Crespo, e outros homens, chamam o "milagre" das mulheres portuguesas.

Fica bem este elogio das mulheres (recebi inclusivamente um e-mail de uma mulher que me dizia que se os homens pensassem deste modo, haveria menos divórcios).

Mas eu pergunto: quem agradece mais este elogio? As mulheres ou os homens (portugueses)? Quem retira dele uma maior satisfação: as mulheres porque vêem o trabalho reconhecido ou os homens a quem interessa manter, sem questionar, o statu quo, o estado em que as coisas estão?

Ao reconhecer o "milagre" das mulheres (continuando a reduzi-las, sem dúvida, a uma certa posição "maternal", de abnegação, etc.) não são os homens (portugueses) que ficamos a conhecer melhor?

Vem ao caso dizer, parafraseando Lacan, que também aqui o sujeito (masculino) recebe do Outro (de quem faz o elogio) a sua própia mensagem sob forma invertida.

6.1.07

Variação interessante de uma velha questão

Ontem, por um mero acaso, feliz, liguei a televisão e ouvi, da boca de uma mulher, creio que no "genérico" de apresentação de um qualquer programa da Sic Mulher, talvez o Eles e Elas, a frase que reproduzo a seguir. Não cheguei a saber se a mesma era da lavra da mulher que a proferiu ou a reprodução de uma frase que alguém (homem? mulher?) terá dito. De qualquer modo, achei a variação interessante.

Freud, até ao fim da vida andou, por assim dizer, atormentado com uma questão: o que quer a mulher?

Que a questão não seja completamente ociosa, prova-o o facto de que ela continua a incomodar as próprias mulheres, como demonstra o título que Susie Orbach e Luise Eichenbaum deram, em 1983, a um livro sobre esta matéria: What Do Women Want? (traduzido para portugês em 2004, pela Sinais de Fogo).

A frase que eu ouvi na televisão dizia: O que é que as mulheres querem... que os homens pensem... que elas querem.

A pontuação (reticências) é minha.

3.1.07

Mais duas pérolas

A relação entre a psicanálise e a filosofia esteve sempre longe de ser fácil ou evidente. O encontro (possível) entre as duas traduziu-se, a maior parte do tempo, num desencontro ou, até, algumas vezes, num mau encontro.

Do lado da Filosofia, por exemplo, após um breve período de algum "namoro", fascínio ou, nalguns, encantamento em relação à coisa psicanalítica, foi o silêncio quase absoluto. Salvam-se, aqui e além, breves - e geralmente sarcásticas - anotações.

Do lado da psicanálise, a grande preocupação parece ter sido, quase sempre, a de demarcar-se da filosofia: aquilo que nós, os psicanalistas, fazemos, não é uma visão do mundo, nem uma filosofia, nem nada que se pareça.

Tudo isto é justo. Há que pôr os pontos nos is e marcar as diferenças.

Contudo, como sublinhava há algum tempo uma psicanalista, Marie-Hélène Brousse, num artigo dedicado precisamente a um filósofo, Descartes, importa talvez rever a questão da psicanálise e da filosofia, na justa medida em que se considere que a psicanálise não é "toda" terapêutica e que uma experiência analítica levada até ao seu termo diz mais respeito à ética ("Variations sur le cogito", in Des philosophes à l'envers. Horizon. Nº Hors-Série. Janeiro 2005).

Slavoj Zizek, simultaneamente filósofo e psicanalista, tem dado corpo, à sua maneira - e de forma singular - a esta "revisão".

É por esta e outras razões que é de saudar a publicação, pela Relógio de Água, de mais dois livros seus.