23.12.05
O senhor e o escravo
Numa entrevista que deu em Buenos Aires a María Esther Gilio*, o psicanalista Jacques-Alain Miller recordava, a propósito da situação política naquele país, uma frase bíblica que me parece bem oportuna relativamente ao que tem acontecido na pré-campanha eleitoral que está actualmente a decorrer no nosso país.
Eis a frase, em espanhol, tal como Miller a disse: "El hombre es amo de sus silencios y esclavo de sus palabras" (sic). O homem é senhor dos seus silêncios e escravo das suas palavras.
Será desnecessário identificar quem tem sido, nesta história, o homem senhor dos seus silêncios e o homem escravo das suas palavras...
Àquele que se cala, supõe-se saber (mesmo que não saiba), ao que fala "barato", des-supõe-se.
Costuma dizer-se também que "pela boca morre o peixe" (fish, em inglês, como se dizia, no tempo das vacas gordas, do candidato que se colou demasiado ao nome que lhe deram).
* http://www.antroposmoderno.com/antro-articulo.php?id_articulo=410
21.12.05
Feliz Natal e um paradoxo
Um dos muitos paradoxos que enxameiam o nosso tempo tem a ver com a família: ao mesmo tempo que não cessamos de passar-lhe uma certidão de óbito – e é verdade que ela se decompõe e afunda cada vez mais – assistimos igualmente, o que não deixa de ser estranho, a uma crescente reivindicação por parte de muitos homossexuais a poder casar e “ter” filhos, ou seja – não consigo, de momento, encontrar outro nome – a constituir “família”.
Não importa se esta família é bizarra aos olhos da tradição, se dá que pensar ou causa polémica. O desejo que a habita é ainda “familiar”, queira-se ou não.
Talvez porque a família tenha sido, historicamente, uma poderosa e inventiva solução para os problemas que o real nos coloca. Tão poderosa e inventiva que ainda não perdeu, por completo, o seu poder de atracção.
Veja-se, a título de exemplo, o que resta do Natal depois que os deuses debandaram: a festa da “família”.
13.12.05
A fonte da cultura
DUCHAMP, Marcel, Fonte, 1968
Num texto recentemente publicado pelas Éditions du Seuil, « Mon einseignement, sa nature et ses fins » (in Mon Einseignement, 2005), Jacques Lacan diz o seguinte : « Diferentemente do que se passa em todos os domínios do reino animal (…) o homem caracteriza-se na sua natureza pelo extraordinário embaraço que lhe dá – como chamar isso? Meu Deus, da maneira mais simples – a evacuação da merda” (p. 82).
É uma passagem onde se fala da TV como um veículo que permitirá, de ora em diante, a cada um de nós chegar a todo o instante à cena do mundo (antes da hegemonia da televisão, dir-se-ia o palco) para estar ao corrente de tudo o que é cultural. Nada do que é cultural nos escapará.
Relacionar o mais “sublime” da espécie humana com o mais “abjecto”, não deixa de ser paradoxal. No entanto, Marcel Duchamp não fez outra coisa, ao virar toda a cultura do avesso para a fazer beber numa “fonte” de água muito pouca benta: o seu famoso “urinol”.
Quando ontem, na Sic, ao fazer um zapping entre o sexo dos anjos (a conversa fiada dos políticos) e o Absexo (conversa desfiada sobre sexual -idades), deparo com um sujeito – chamo-lhe assim porque desconheço o seu nome (não tenho muita cultura televisiva) – sentado em cima de uma sanita a dizer coisas sobre…merda. Usando metáforas, metonímias e outros quejandos retóricos, ele falou, durante um bom pedaço de tempo, das várias formas de evacuar e dos prazeres ou desprazeres a isso associados.
Eis para que serve a TV: para dar a merda a ver (pois os olhos também comem) como um prato culturalmente requintado!
Isso obra, isso fala, isso faz falar, isso dá que falar. É toda uma cultura, todo um mundo imundo.
10.12.05
@ coisa sexual
MAGRITTE, R., A Filosofia no Quarto de Dormir, 1966
Dizia Lacan, numa conferência que deu em 1967, que há qualquer coisa que mudou, desde Freud, no que toca à sexualidade: esta tornou-se bastante “mais pública”*.
No que a nós, portugueses, diz respeito, mostra-se e fala-se disso como nunca. Programa televisivo que não tenha, de forma mais ou menos explícita, uma componente sexual, parece fora de moda.
A TVI tem dado cartas nesta matéria. A sua última jogada chama-se “AB…Sexo”, que é como quem diz: um contributo “sexológico” para tirar os portugueses da “iliteracia” sexual, ensinando-lhes o respectivo alfabeto do prazer.
No momento em que se continua a discutir a introdução nas escolas de uma disciplina de Educação Sexual, a TVI antecipa-se na educação sexual dos portugueses. Tudo ali parece ter solução. Se disfunciona, faz-se funcionar: por meio de um conselho psicológico, de uma técnica “erótica”, de uma prótese ou de um fármaco.
A cada um o seu quinhão de gozo!
O problema – um dos problemas – é que no ser humano, bicho estranho, o gozo emaranha-se no desejo, o desejo no gozo, embaraçando-se mutuamente. Como dizia uma convidada da última semana, muitas vezes os problemas nascem do outro, de o nosso desejo está enganchado no desejo do Outro. É aí que a prótese inconsciente, que na espécie humana supre a ausência de instinto, começa a fazer das suas. Para mal ou bem dos nossos pecados.
*LACAN, Jacques., “Place, origine et fin de mon enseignement”, in Mon enseignement. Paris : Seuil, 2005, p. 28.
4.12.05
O mel da tristeza
Music, Zoran, Poltrona Grigia, 1998
Estudos recentes parecem revelar que nós, portugueses, somos dos mais tristes da Europa. É como se houvesse mel na tristeza, uma espécie de néctar que nos atrai.
Será isto “cobardia moral” ou o nome do sintoma, por excelência, que nos habita?
Sermos habitados pelo ver(me)bo que nos corrói e dilacera, deixa-nos um pouco tristes.
A crer no que Jorge Calado escreveu no último expresso (Revista Única, 3 de Dezembro de 2005, pp. 24-28), a propósito da monumental exposição que decorre actualmente em Paris sobre este tema, a melancolia não é nossa nem de agora, mas uma espécie de constante que resiste ou subjaz às diversas metamorfoses por que passou ao longo do tempo e das diversas abordagens de que foi alvo: Bílis Negra, Acedia, Spleen, depressão, etc. Mudam-se os tempos e os nomes, mas ela, permanece.
Não será a melancolia um dos nomes do sintoma (ou, como escrevia Lacan, Sinthoma) incurável que nos habita? Se assim for, então não se trata apenas de saber como fazê-la desaparecer, mas como usá-la bem. Parafraseando G. Perec, poderíamos dizer: melancolia, modos de usar.
É em torno desses modos de usar da melancolia que gira o dossiê consagrado ao tema pelo nº 8, Hors-Série, do Magazine Littéraire (Outubro-Novembro de 2005). Vale a pena ler!
Para informações complementares: www.magazine-litteraire.com
Estudos recentes parecem revelar que nós, portugueses, somos dos mais tristes da Europa. É como se houvesse mel na tristeza, uma espécie de néctar que nos atrai.
Será isto “cobardia moral” ou o nome do sintoma, por excelência, que nos habita?
Sermos habitados pelo ver(me)bo que nos corrói e dilacera, deixa-nos um pouco tristes.
A crer no que Jorge Calado escreveu no último expresso (Revista Única, 3 de Dezembro de 2005, pp. 24-28), a propósito da monumental exposição que decorre actualmente em Paris sobre este tema, a melancolia não é nossa nem de agora, mas uma espécie de constante que resiste ou subjaz às diversas metamorfoses por que passou ao longo do tempo e das diversas abordagens de que foi alvo: Bílis Negra, Acedia, Spleen, depressão, etc. Mudam-se os tempos e os nomes, mas ela, permanece.
Não será a melancolia um dos nomes do sintoma (ou, como escrevia Lacan, Sinthoma) incurável que nos habita? Se assim for, então não se trata apenas de saber como fazê-la desaparecer, mas como usá-la bem. Parafraseando G. Perec, poderíamos dizer: melancolia, modos de usar.
É em torno desses modos de usar da melancolia que gira o dossiê consagrado ao tema pelo nº 8, Hors-Série, do Magazine Littéraire (Outubro-Novembro de 2005). Vale a pena ler!
Para informações complementares: www.magazine-litteraire.com
1.12.05
O beijo da polémica
Klimt Gustav, O Beijo
Algures, numa escola do país, duas jovens são vistas a beijar-se.
Estala a polémica e muitos comentadores se dão ao trabalho de tecer considerações sobre o facto (até o consagrado António José Saraiva lhe dedica, no Expresso, algumas linhas).
A perspectiva adoptada pela generalidade dos que tomam a palavra tem um cariz “moral”: deve ou não permitir-se, tolerar-se, etc. que duas jovens se beijem em frente de outros, nomeadamente os seus colegas de escola, funcionários ou professores.
O que faz aqui sintoma?
É verdade que beijos entre alunos sempre houve desde há muitos anos – sobretudo depois que a revolução de Abril soltou o beijo – mas agora trata-se de um beijo entre alunas. É, portanto, um beijo homossexual. É a homossexualidade, nomeadamente entre mulheres, que aqui faz (ainda) sintoma.
Por outro lado, se os beijos entre alunos sempre existiram, eles eram furtivos, clandestinos, jogando às escondidas com os outros: professores, funcionários, pais. A sua magia parecia residir no interdito, no fruto proibido. Os enamorados retiravam-se para onde o olhar do Outro (é ainda o tema glosado por Orwell no seu 1984) não os pudesse surpreender.
É por isso que talvez valha a pena, em vez de enfileirar na polémica moralizante, mudar de ângulo e tentar perceber se neste gesto banal do quotidiano não se revela uma mudança de paradigma que vai mais além de saber se o beijo é homo ou heterossexual.
Não vivemos nós numa “sociedade transparente” (G. Vattimo) ou do “espectáculo” (G. Debord) onde tudo tem de ser mostrado, exibido, onde a intimidade é esconjurada como um demónio ou espírito maligno? Não passamos nós a viver numa “servidão voluntária” perante o olhar imperial do Outro (quer ele se chame panóptico, big-brother, televisão, Internet e sei lá que mais)?
Um novo imperativo passou a comandar-nos: Mostra!
É de um gozo escópico que aqui se trata.
Algures, numa escola do país, duas jovens são vistas a beijar-se.
Estala a polémica e muitos comentadores se dão ao trabalho de tecer considerações sobre o facto (até o consagrado António José Saraiva lhe dedica, no Expresso, algumas linhas).
A perspectiva adoptada pela generalidade dos que tomam a palavra tem um cariz “moral”: deve ou não permitir-se, tolerar-se, etc. que duas jovens se beijem em frente de outros, nomeadamente os seus colegas de escola, funcionários ou professores.
O que faz aqui sintoma?
É verdade que beijos entre alunos sempre houve desde há muitos anos – sobretudo depois que a revolução de Abril soltou o beijo – mas agora trata-se de um beijo entre alunas. É, portanto, um beijo homossexual. É a homossexualidade, nomeadamente entre mulheres, que aqui faz (ainda) sintoma.
Por outro lado, se os beijos entre alunos sempre existiram, eles eram furtivos, clandestinos, jogando às escondidas com os outros: professores, funcionários, pais. A sua magia parecia residir no interdito, no fruto proibido. Os enamorados retiravam-se para onde o olhar do Outro (é ainda o tema glosado por Orwell no seu 1984) não os pudesse surpreender.
É por isso que talvez valha a pena, em vez de enfileirar na polémica moralizante, mudar de ângulo e tentar perceber se neste gesto banal do quotidiano não se revela uma mudança de paradigma que vai mais além de saber se o beijo é homo ou heterossexual.
Não vivemos nós numa “sociedade transparente” (G. Vattimo) ou do “espectáculo” (G. Debord) onde tudo tem de ser mostrado, exibido, onde a intimidade é esconjurada como um demónio ou espírito maligno? Não passamos nós a viver numa “servidão voluntária” perante o olhar imperial do Outro (quer ele se chame panóptico, big-brother, televisão, Internet e sei lá que mais)?
Um novo imperativo passou a comandar-nos: Mostra!
É de um gozo escópico que aqui se trata.
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