Os media têm-se encarregado de continuar, por outros meios, a devastação que o tsunami causou nos corpos e nas almas. Mas não é o fim do mundo. A excessiva proximidade turva a visão. Quando a tempestade deixar de ser notícia e tudo for relativizado, o que vai restar será apenas, talvez, um fragmento, uma frase ou imagem solta, como o o toro (não confundir com a figura topológica homónima), o tronco de árvore flutuando solitário no mar de destroços.
Uma imagem solta que me vem à memória é, por exemplo, a daquela mãe que ficou petrificada no seu grito mudo quando foi apanhada pela câmara fotográfica em pleno êxtase da dor, defronte do seu filho morto, nos braços do pai.
O que é mais gritante nesta imagem é a sua mudez, a contrastar com o excesso de ruído mediático: um grito tão sobre-humano que não se pode ouvir! É por isso que ela me faz lembrar uma outra imagem, inspirada igualmente num grande fenómeno da natureza ocorrido em finais do século XIX: a erupção na ilha Indonésia de Cracatoa. Munch, inspirando-se neste fenómeno, conseguiu elevá-lo à dignidade de um ícone através dessa imagem impressionante a que deu o nome o grito (1893). Tal como na imagem anterior, o que impressiona mais aqui é o olhar que não vê - tal a intensidade do "grito enorme, infinito da natureza" - e a voz muda de angústia e dor, como se o silêncio, e não o som, fosse a própria essência da voz.
A preto e branco (as cores da fotografia saída no jornal) ou em tons variegados e intensos (como é o caso da pintura de Munch), o que ressalta é uma extrema proximidade, através do belo, com o horrível da condição humana, onde o humano, demasiado humano, toca nas franjas do inumano.
É por isso que as imagens mais gritantes me parecem ser as do tríptico que Francis Bacon, um outro pintor (não confundir com toucinho defumado, ainda que a carne fosse uma das suas obsessões pictóricas) criou em 1944, dando-lhe o nome de Três Estudos para Figuras na Base de uma Crucificação.
Se uma imagem diz mais do que mil palavras, como é costume dizer-se - e é verdade que as imagens anteriores nos deixam um pouco desamparados de palavras - seria talvez melhor mostrar a imagem e deixá-la "falar" por si.
Não o faço, para já, por duas razões: em primeiro lugar porque tenho um amigo cego que não consegue ver imagens, mas gosta que se lhe fale delas. Em segundo lugar - razão para mim fundamental - porque estas imagens, é a minha aposta!, só podem ser verdadeiramente apreciados por cegos, como se fosse necessário formatar a visão antes de poder olhar para elas.
O que se vê nas imagens deste tríptico, sobre um fundo monocromático laranja, é impossível de identificar, tal a sua estranheza, mas, ao mesmo tempo, é impossível que nos deixe indiferentes, como se desse expressão a algo que é ao mesmo tempo estranho e familiar (Unheimlich, segundo Freud), humano e animal. São três figurações de um único grito impossível de calar, mas impossível de ouvir.
É evidente que, dada a proximidade com o acontecimento da segunda guerra mundial, poderíamos relacionar
estas figuras estranhas e impossíveis de identificar com a própria besta inumana que habitava o coração humano e que a guerra soltou. Mas nenhuma pintura (muito menos a de Bacon) é a pura imitação ou reprodução da realidade, ainda que esta lhe possa servir de pretexto. A única coisa que se poderá dizer, como faz Luigi Ficacci num texto da Taschen que veio recentemente a público com o Público, é que "Três Estudos é a lacerante expressão de um grito, independentemente da sua essência e causa. É um grito reduzido à sua força bruta, aquém da necessidade humana normal de identificar e resolver as causas do mal-estar. Mais animal do que humano (...) ele é a expressão do horror em si, superior a qualquer causa transitória e específica".
Em suma, o que parece ser mais gritante nestas imagens é, paradoxalmente, o seu próprio silêncio.
Sem comentários:
Enviar um comentário